terça-feira, 14 de junho de 2011

O LOBO DA ESTEPE

Título original: Der Steppenwolf
Autor: Hermann Hesse (1877-1962)
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Record
Assunto: Romance
Edição: 35ª
Ano: 2010
Páginas: 238

Sinopse: 'O Lobo da Estepe' foi escrito em 1927 quando Hesse tinha 50 anos, como seu personagem, e estava influenciado pela psicanálise.

A primeira parte do livro é o pesadelo do lobo Harry Haller, sua depressão e sua incapacidade de se comunicar, que está na base da crueldade e da autodestruição. Na segunda parte, Harry se humaniza através da entrada de Hermínia, que tenta reaproximá-lo do mundo, neste caso, uma comunidade simplória, com salas de baile poeirentas e bares pobres.

Enredo: “Era uma vez um certo Harry. (...) Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo da estepe. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de BM entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida (...) nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dando ao outro, e, quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem o seu fardo.

O livro conta a história de Harry Haller, um misantropo de cinqüenta anos, alcoólatra e intelectualizado, angustiado e que não vê saída para sua tormentosa condição, autodenominando-se “lobo da estepe”. Mas alguns incidentes inesperados e fantásticos o conduzem lenta porém decisivamente ao despertar de seu longo sono: conhece Hermínia, Maria e o músico Pablo. E então a história se desenvolve de forma surpreendente.

O erudito Harry Haller vive o tempo toda a tensão entre a vida sublime de seus grandes poetas e músicos - Goethe e Mozart, mormente, com os quais inclusive tem encontros imaginários. A vida da alta cultura, do espírito, dos Imortais, e a vida das profundezas da superficialidade, do sensual, da carne, a que é conduzido por Hermínia, mulher da noite que conhece em um bar e alter ego de um amigo de infância que muito o impressionou. Vive, portanto, atraído por dois pólos magnéticos opostos, um representado pela vida noturna, pelo álcool, pelos cigarros, pelo jazz, pelas meretrizes e pelo despertar ao meio dia; o outro pela vida ascética, diurna, tranqüila, de jardins bem cuidados da família vizinha que admira logo no primeiro capítulo como alguém que sente nostalgia por um paraíso perdido.

Porém, para além da dupla personalidade, Haller descobre ter mil almas, que além dos dois pólos pelos quais se sente atraído, uma infinidade de pulsões interiores e exteriores atua sobre o seu ser, engendrando múltiplas personalidades, mal contidas pela frágil unidade de seu ego. Mas Haller admite no delírio final do romance a coordenação das mil almas, mil personalidades em torno de um eixo central que dá unidade à pluralidade de personas.

O Lobo da estepe é um romance que narra a desintegração da personalidade num homem maduro, ou quiçá o fracasso ou a resignação ante a impossibilidade de formação de uma personalidade coesa e sólida na voragem de um tempo de transmutação de valores, de fragmentação e velocidade. Haller vive entre as trevas e a luz, o sensual e o espiritual, o moderno e a tradição, o profano e o sagrado, numa interminável e aguda crise. Não é feliz. A certa altura, no clímax de uma sensual festa de máscaras, imerso na multidão, já desfigurado, sem passado, sem face, sem personalidade, sente seu ego, sua individualidade dissolvida na unio mystica da alegria. Harry Haller experimenta uma espécie de transcendência espiritual às avessas.

O livro parece deixar uma conclusão pessimista quanto à possibilidade de formação da unidade pessoal. Mas Hesse, em nota de 1961 para uma reedição do romance, diz que não descarta no romance a esperança oculta de uma síntese transcendente, que integre o santo e o libertino, o que parece estar prefigurado na demonstração da unidade oculta das mil almas no capítulo final da obra.

Nota do autor (1961): Os escritos poéticos podem ser compreendidos e incompreendidos de muitas maneiras. Na maior parte dos casos o autor não constitui a autoridade mais indicada para decidir até que ponto o leitor compreende e onde começa a incompreensão. Não são poucos aqueles a cujos leitores sua obra pareceria muito mais clara do que a eles próprios. Além do mais, as incompreensões até que podem ser frutíferas sob certas circunstâncias.
Hermann Hesse em 1927
Contudo parece-me que de todas as minhas obras, O Lobo da Estepe é a que vem sendo mais freqüente e violentamente incompreendida, e o curioso é que, em geral, a incompreensão parte dos leitores mais entusiastas e satisfeitos com o livro do que dos leitores que o rejeitaram. Em parte, mas só em parte, isso pode ocorrer com tal freqüência em razão de este livro, escrito quando eu tinha cinqüenta anos e tratando, como trata, de problemas peculiares a essa idade, cair não raro em mão de leitores muito jovens.

Mas, entre os leitores da minha própria idade, também tenho encontrado com freqüência alguns que – embora bem impressionados com o livro – só percebem estranhamente apenas uma parte do que pretendi. Tais leitores, ao que me parece, reconheceram-se no Lobo da Estepe, identificaram-se com ele, sofreram suas dores e sonharam os seus sonhos; mas não deram o devido valor ao fato de que este livro fala e trata também de outras coisas, além de Harry Haller e de seus problemas, que fala a propósito de um outro mundo mais elevado e indestrutível, muito acima daquele em que transcorre a problemática da vida de meu personagem. O Tratado do Lobo da Estepe e outros trechos do livro que versam questões do espírito abordam assuntos de arte e mencionam os “imortais”, opõem-se ao mundo sofredor do Lobo da Estepe com a afirmativa de um mundo de fé, sereno, multipersonalístico e atemporal. O livro trata, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é o livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê.

É claro que não posso nem pretendo dizer aos meus leitores como devem entender a minha história. Que cada um nele encontre aquilo que lhe seja de alguma utilidade! Mas eu me sentiria contente se alguns desses leitores pudessem perceber que a história do Lobo da Estepe, embora retrate enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, a redenção.

Comentário do tradutor: Diz o tradutor no prefácio que O lobo da estepe é um livro que não se lê inocuamente ou por mera distração, porque é um livro que mexe, que altera, que subverte a estrutura psíquica do leitor. Recomenda aqueles que já o leram em outras fases da vida que façam a releitura para descobrirem nas sutilezas de sua trama, na profundidade de suas cogitações, no intrincado de sua simbologia, outras revelações que a experiência da vida ou a apuração da sensibilidade literária lhes fará reconhecer.



Recomendação ao leitor: Ler a trilogia de Hermann Hesse, preferencialmente, na seguinte seqüência: 1º) “Demian”; 2º) “O lobo da estepe”; 3º) “O jogo das contas de vidro”. (AOliynik)

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quarta-feira, 18 de maio de 2011

O OUTONO DA IDADE MÉDIA


Título original: Herfsttij der Middeleeuwen
Autor: Johan Huizinga (1872-1945)
Tradução: Francis Petra Jansen
Editora: Cosac Naify
Assunto: História
Edição: 1ª
Ano: 2010
Páginas: 656

Sinopse: O outono da Idade Média é um grande clássico da historiografia ocidental. Publicado em 1919, é a obra-prima de Johan Huizinga (1872-1945) e foi traduzido desde então para mais de vinte línguas. Raras vezes um período histórico foi apresentado de maneira tão viva e colorida. Aqui, a Idade Média é vista na plenitude de seus contrastes, distante do lugar-comum segundo o qual ela não passaria de uma transição, longa e letárgica, entre o brilho da Antiguidade e do Renascimento.

Escreveu certa vez o historiador holandês: “Que tipo de idéia podemos formar de uma época se não olharmos para as pessoas que a viveram? Se oferecermos explicações generalizantes, criaremos apenas um deserto e chamaremos isso de história”. Estampada no subtítulo, a expressão formas de vida e de pensamento é um catalisador que permite, a um só tempo, evitar as formulações vazias e dar sentido ao turbilhão de personagens e acontecimentos. Tais formas incluem a cultura, a arte, a religião e o pensamento, mas, além disso, constituem a própria pulsação do dia a dia medieval, nos modos de expressão da felicidade, do sofrimento, do amor e do medo da morte. Huizinga utilizou métodos e fontes históricas pouco usuais em sua época. Combinando a crença no poder revelador da obra de arte e um olhar muito semelhante ao de um antropólogo, ele se tornou um pioneiro do que mais tarde se denominou história das mentalidades.

Pela primeira vez, O outono da Idade Média é vertido em língua portuguesa a partir do holandês, bem como do resultado de pesquisas que, passados cerca de oitenta anos, reestabeleceram o texto tal como foi concebido. Ricamente ilustrada, a presente edição também reúne uma entrevista de Jacques Le Goff e um ensaio biográfico de Peter Burke.


Sobre o autor: Johan Huizinga (Groninga, 7 de dezembro de 1872 — De Steeg, 1 de fevereiro de 1945) foi um professor e historiador holandês, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e o Renascimento.
Os seus estudos destacam-se pela qualidade literária e pela análise dos acontecimentos, abordando aspectos da história da França e Países Baixos, durante os séculos XIV e XV, como ilustração sobre a última etapa da Idade Média.
Sua obra clássica, O outono da Idade Média, foi publicada em 1919.
Na sua bibliografia também se encontram trabalhos da juventude sobre a literatura e a cultura da Índia, uma biografia de Erasmo (1924) e outras obras de cunho histórico.
Destaca-se ainda a sua principal contribuição: o Homo Ludens, escrito por ele no ano de 1938.
O regime nazista o manteve preso de 1942 até sua morte em 1945.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O ENIGMA QUÂNTICO: Desvendando a Chave Oculta

Título original: The Quantum Enigma: Finding the Hidden Key
Autor: Wolfgang Smith
Tradução: Raphael De Paola (Prefácio à Ed. Brasileira: Olavo de Carvalho)
Editora: Vide Editorial
Assunto: Filosofia da ciência
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 277


Sinopse: Após a destruição da imagem clássica do mundo pelas descobertas da mecânica quântica, os físicos propuseram uma variedade de visões de mundo alternativas. Esse livro começa pelo importante reconhecimento de que cada uma delas sofre de um certo “cartesianismo residual”, inconscientemente admitido. Quando essa premissa oculta e problemática é descartada, a teoria quântica passa a fazer sentido, de uma forma jamais vista. Como demonstra o autor, agora é possível pela primeira vez integrar as descobertas da física quântica numa visão de mundo que não é nem forçada, nem sustentada em hipóteses ad hoc, mas em conformidade permanente com as intuições da humanidade.
Escrito de maneira clara, O Enigma Quântico destina-se tanto ao cientista quanto ao leitor que não está familiarizado com os conceitos técnicos da física nem com os debates sobre o mundo quântico.

Olavo de Carvalho, prefaciador da obra, assim se expressa a respeito do livro: "A coisa mais tímida que me ocorre dizer dessa descoberta do Prof. Wolfgang Smith é que ela foi uma das maiores realizações intelectuais do século XX".

Sobre o autor: Wolfgang Smith formou-se aos 18 anos em Física, Filosofia e Matemática pela Universidade de Cornell. Suas pesquisas em aerodinâmica e seus artigos sobre campos de difusão forneceram a chave técnica para a solução dos problemas de reentrada na atmosfera em viagens espaciais. Depois de receber um Ph.D em matemática na Universidade de Columbia, foi professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e na Universidade da Califórnia. Além de numerosas publicações técnicas, relacionadas a topologia diferencial, Dr. Smith é autor de três livros e muitos artigos sobre questões interdisciplinares e epistemológicas, sempre preocupado em desmascarar certas concepções amplamente admitidas como verdades científicas.


PALESTRA DE LANÇAMENTO

Palestrante: Raphael De Paola (tradutor da obra)



PALESTRA OLAVO DE CARVALHO
PREFACIADOR DA OBRA
 
PARTE 1/2



PARTE 2/2


domingo, 6 de março de 2011

ALMAS MORTAS

Título original: Мёртвые души
Autor: Nikolai Vasilievitch Gogol (1809-1852)
Tradução: Tatiana Belinky
Editora: Abril Cultural
Assunto: Romance
Edição: 1a
Ano: 2003
Páginas: 494
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Sinopse: Escrito em 1841, Almas Mortas conta a história de um aventureiro que compra, a baixo preço, os camponeses russos mortos desde o último censo, mas ainda vivos nas listas do fisco. Uma trapaça que permite traçar um panorama da vida da província e um esboço do homem russo por inteiro, pelo seu lado negativo. Gógol escreveu um segundo volume da obra, mas em um momento de angústia acabou queimando-o. A segunda parte, inacabada e póstuma, foi publicada em 1852.

Resumo da narrativa: Pável Ivánovitch Tchitchikov chega a uma aldeia para comprar almas mortas, ou seja, servos que já morreram, mas ainda não foram registrados nos censos de óbitos que eram realizados a cada cinco anos. À primeira vista este negócio parece inverossímil e todos se riem com estranheza medrosa do seu negócio. Todavia há uma intenção ilícita oculta por trás dela.

Comentários: O primeiro livro de Almas Mortas resume-se aos encontros de Tchitchikov com os proprietários rurais para lhes comprar os servos mortos. O grande enigma: Para que Tchitchikov quer servos mortos? Tchitchikov quer comprar as almas mortas para poder levantar um empréstimo bancário dando as almas como garantia as quais, na realidade, não garantem nada, pois elas não existem de fato, estão mortas. Com esse estratagema ele quer reconstituir a sua vida econômica e social e tornar-se um cidadão respeitável no meio social.

Na Rússia daquela época, a cada cinco anos, todo proprietário rural era obrigado a comunicar às autoridades do fisco quantas almas possuía, pois assim eram chamados os camponeses, que trabalhavam em regime de servidão. Com base neste número era fixado o patrimônio do proprietário e os impostos por ele devidos nos próximos cinco anos, independente do número de baixas ou de aquisições que ocorresse no período. Não se considerava mortes por guerra, peste ou o que quer que fosse e isto poderia ser um prejuízo para alguns proprietários.

Tchitchikov teve a idéia de viajar por toda a Rússia em busca de "almas mortas", que ainda constavam dos registros. Pagava preços insignificantes por elas e deixava seus proprietários curiosos de saber para que serviriam tais almas. Não desconfiavam que o objetivo dele fosse, com isto, se tornar, também, um proprietário de grande número de almas, que seriam "transferidas" para algum lugar remoto da Rússia. Sendo proprietário de tantas almas, não lhe seria difícil obter junto aos bancos, volumosos empréstimos, que teriam como garantia sua propriedade fictícia.

A idéia central do romance, sugerida por Púshkin após a leitura de uma nota jornalística, permitiu a Gógol pintar uma variedade de personagens, cuja força reside em seu poder de caracterização do universal pelo específico, o que levou Púshkin a dizer, apesar de toda comicidade ali destilada – “eu não ri, chorei; Deus, como é triste a nossa Rússia”. Assim, a denominação 'almas mortas' constitui não apenas a metáfora de um golpe ou de uma prática ardilosa, mas ainda uma expressão de até onde pode ir o decaimento do espírito humano, a contradição em que ele pode entrar com todo o padrão ético e fundamento religioso da existência.

Gogol descreve uma cidade provinciana, alegorizando a figura dos proprietários de terra desta província, os "proprietários da vida", que respondem pela sorte do povo. Descreve, também, as características gerais do funcionalismo público da época, corrupto, inapto e inconseqüente.

As personagens são incríveis, a começar por Tchitchikov. Nele, Gogol descreveu um sujeito cara de pau e trambiqueiro de primeira. Esta personagem é perfeita e, em torno dela, Gogol teceu a temática que lhe foi sugerida por Puchkin com uma maestria digna de um gênio! Via Tchitchikov, Gogol faz uma profunda reflexão sobre a moral e a ética daquele tipo de sociedade na Rússia do século XIX.

Cada uma destas personagens tem uma característica marcante e é a partir de tais características que Gogol formou os seus nomes, a começar pelo nome da personagem central: de acordo com o dicionário "Grande Tolkoviy", Tchitchikov significa: pessoa que persegue a abundância e prosperidade a qualquer preço; pessoa que devota a vida à aquisição de riqueza, vantagens, lucro.

Para dar nomes a outras personagens segue a mesma técnica. Assim, tem-se: Manilov: nome que evoca gentileza, boas maneiras.

A personagem Manilov participa de negociações sempre rápidas e cordiais com Tchitchikov, concordando em lhe ceder, sem cobrar nada, todos os servos mortos. Gógol formou este nome a partir do verbo "manit'", que significa atrair ou seduzir. De acordo com o Dicionário Russo de Sinônimos, a palavra Manilov significa sonhador, maquinador, que fantasia, utópico. Relativo a autor de projetos atraentes, cativantes, fascinantes, encantadores, mas impraticáveis.

Sentido da obra: Almas Mortas foi planejada para ter três partes e das quais só temos a primeira e os fragmentos da segunda e que podem conter fragmentos da terceira. Não temos como saber disso. Portanto, este aspecto está irremediavelmente perdido.

O que parece, embora não se possa garantir isso de modo nenhum, é que Gogol queria fazer uma espécie de Divina Comédia russa, começando então com o Inferno, passando pelo Purgatório e terminando com o Paraíso. Essa teria sido a idéia central ou o modelo original. Todavia isso é apenas uma especulação porque nós não temos elementos concretos disso. Temos indícios, mas não elementos concretos.

Por isso há uma dificuldade enorme para interpretar Almas Mortas porque se trata de uma obra incompleta. A primeira parte, ou o primeiro livro foi escrito entre 1837-38 e publicado parcialmente em 1842. A segunda e terceira partes nunca foram terminadas.

Na primeira parte do livro podemos fazer a analogia de Tchitchikov com o próprio Diabo porque ele compra almas como o Diabo compra.

A segunda parte é confusa e truncada. Podemos fazer uma analogia com o Purgatório onde Tchitchikov teria que passar por uma série de situações, reveses e vivenciar essas amarguras.
Na terceira parte Tchitchikov teria se regenerado completamente, transformado num novo homem, num sujeito decente.

Se partirmos dessa perspectiva em que Tchitchikov num primeiro momento é o Diabo encarnado; na segunda parte passaria por uma série de provações (a prisão que ele sofre seria um exemplo dessa analogia), e na terceira, depois de purificado, Tchitchikov iria produzir uma vida com conotações divinas, um sujeito rico de origem honesta que recuperou a sua consciência moral poderemos validar a tese da Divina Comédia russa.

Este é o esquema fundamental nos romances de Dostoiévski. Acredito que Dostoiévski se inspirou em Gogol para adotar esse esquema do vilão, depois penitente e finalmente purificado pela conversão e pelo arrependimento real e sincero. Todavia, Dostoiévski foi um escritor de primeira grandeza e conseguia reproduzir esse esquema com uma eficácia incrível. Basta ler “Crime e Castigo”, “Os Demônios”, “Os Irmãos Karamázov” e “O Idiota” para ver traços evidentes desse modelo que foi inaugurado por Gogol. Todavia, Gogol não tinha a força de Dostoiévski para completar os seus enredos. Talvez esse seja o motivo de Gogol ter queimado a segunda parte de Almas mortas, depois reescrito e fragmentado e destruído a terceira parte. Provavelmente não gostou do desfecho ou não conseguiu produzir o desfecho esperado.

Em Dostoiévski a única possibilidade de redenção que há o mundo é pelo sofrimento. Não há redenção alguma fora do sofrimento. O ser humano está preso a esta vicissitude.

Tchitchikov é um ressentido. Na verdade, um humilhado-ofendido. Abandonado pelos pais aprendeu que só se consegue sucesso na vida ensinado pelas circunstâncias da vida, sendo pragmático e dinheirista.

É o humilhado-ofendido que produz as revoluções. O humilhado-ofendido apóia aquele que parece que não humilha e não ofende. Incluem-se nesta característica o pequeno burocrata, o pequeno jornalista, o pequeno funcionário que, por serem justamente pequenos têm o sonho de grandeza do poder. Quem produz as revoluções são estas pessoas. Este é o conteúdo central desta história de Gogol. Ele está dizendo que são estas as pessoas que produzirão de alguma maneira as grandes modificações sociais.

As revoluções não são feitas por líderes consolidados, não são feitas por líderes que têm alguma coisa a perder, mas por um grupo que de alguma maneira está desprestigiado e que tem muito a ganhar com a revolução. As posições de poder que virão em seguida são o principal elemento motivador do humilhado-ofendido revolucionário.

Quem milita no partido é o humilhado-ofendido. Quem domina a militância de esquerda é justamente o humilhado-ofendido que sonha com o poder totalitário, porque ele vê na tomada do poder uma oportunidade para solução para a sua auto-estima baixa.

É isto que está em Gogol, embora ele não nos diga com clareza.

Sobre o autor: GOGOL (Nikolai Vasilievitch), romancista e dramaturgo russo (Sorotchintsi, 1809 - Moscou, 1852). Considerado o “pai” da literatura russa do século XIX. Suas histórias notabilizam-se por suas caricaturas grotescas, românticas e humorísticas, e por seu estilo brilhante, exagerado e vigoroso. Considera-se com freqüência a sua comédia, O Inspetor-Geral (1836), uma sátira moral contra os maus funcionários do governo, como a maior peça do teatro russo. Seus personagens cômicos e suas situações divertidas deram-lhe popularidade. Seu maior romance, Almas Mortas, e seu famoso conto, O Capote, foram ambos escritos em 1842. Escreveu também novelas como Taras Bulba (1935).

Gogol nasceu e educou-se na Ucrânia e, aos 19 anos, foi para São Petersburgo. Fracassando em seus esforços para tornar-se um ator famoso, passou a trabalhar como funcionário público e como professor de história. Sua primeira coletânea de contos, Noites numa Fazenda Perto de Dikanka (1831), atraiu a atenção dos leitores e do poeta Alexandre Puchkin, que o incentivou em suas pretensões literárias.

De 1836 a 1844, viveu no exterior, especialmente em Roma. Voltava à Rússia somente por períodos curtos. Escreveu nessa época Almas Mortas. Em seus últimos anos, Gogol teve seu poder criativo abalado. Vitimado por uma doença mental, acreditava possuir uma missão divina para reformar os seus compatriotas pecadores. Procurando consolo em peregrinações religiosas, dedicou-se igualmente a práticas ascéticas. Numa crise de depressão, queimou o manuscrito da segunda parte de Almas Mortas e atribuiu sua atitude, em seguida, a uma brincadeira do demônio. Depois desse episódio, deixou-se invadir pela melancolia, ficou doente e morreu.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O IDIOTA

Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Editora: Editora 34
Edição: 1ª
Ano: 2002
Páginas: 672

Sinopse: Nesta obra, Dostoiévski constrói um dos personagens mais impressionantes de toda a literatura mundial — o humanitário e epilético príncipe Míchkin, mescla de Cristo e Dom Quixote, cuja compaixão sem limites vai se chocar com o desregramento mundano de Rogójin e a beleza enlouquecedora de Nastácia Filíppovna. Entre os três se agita uma galeria de personagens de extrema complexidade, impulsionados pelos sentimentos mais contraditórios — do amor desinteressado à canalhice despudorada —, conferindo a cada cena uma intensidade alucinante que nunca se dissipa nem perde o foco. O enredo revela o drama da condição humana, a dúvida entre o bem e o mal, o desejo e a renúncia, o altruísmo e o apego profundo de si.

Resumo da Narrativa: Trata-se da história de um príncipe pobre que chega de trem em São Petersburgo, à procura de parentes que nunca viu. No trem, conhecera um jovem grosseiro que se tornara milionário com a morte do pai e um funcionário público escorregadio como sabonete. Apesar de não dar muita importância ao fato, Michkin também está para receber uma herança. Ficara distante de sua amada Rússia por mais de cinco anos, sendo tratado na Suíça de ataques de epilepsia que o levavam ao esquecimento e à idiotia. Tem uma obsessão: o último dia de um condenado. Fala muito de uma execução a que assistira em Paris, preocupado com o que sente a pessoa que sabe que vai morrer, um segundo antes da morte (situação que Dostoievski conhecia bem, porque quase fora executado na prisão. Chegou a ter os olhos vendados para ser morto, mas os soldados não completaram o ato).

No dia de sua descida do trem, Michkin vive o que poderia ser vivido em meses ou mesmo anos. Apresenta-se aos parentes; causa paixões, enternecimentos e ódios; apaixona-se por um retrato; conhece uma família em desespero pela desonra da penúria; é ludibriado; propõe casamento à mulher considerada por toda São Petersburgo uma grandessíssima, cobiçada e belíssima ordinária; vê cenas que desnudam a alma suja dos homens que vivem em função de aparências ou de dinheiro. E não sai incólume.

Em todo o enredo da obra as pessoas se chocam, se traem, se devoram, presas pelos grilhões de suas emoções. Até que as ventanias sociais e a profundidade dos maus e bons sentimentos nos levam ao final trágico, que fará com que Michkin volte ao estado de idiotia do qual se libertara na Suíça. Seu transbordamento de amor é mal compreendido. Ele quer ajudar, mas ninguém quer ajuda. Todos estavam condenados à condição humana.

Comentários: O Idiota começou a ser redigido em 14 de setembro 1867 em Genebra, Suíça, e foi concluído a 25 de janeiro de 1868, em Florença, Itália. A obra teve uma elaboração difícil e tortuosa. Em meio às piores dificuldades, foi escrita e reescrita muitas vezes até a redação definitiva. A obra foi inspirada na figura de Dom Quixote, de Cervantes e Cristo. Dom Quixote porque representa a consumação das melhores qualidades da pessoa humana, o apego a justiça e à bondade. Cristo porque somente Ele é uma “personagem positivamente bela”. “O belo é um ideal, e o ideal está longe de ser criado.” O Idiota é, talvez, o romance mais típico de Dostoiévski, provocou perplexidade nos meios intelectuais da época. A obra foi elogiada por Tolstoi, que a achou de grande força dramática e beleza literária.

“O idiota” é um dos livros mais duros de Dostoievski. Não há lugar para um Cristo no mundo. Única obra na qual Dostoiévski descreveu o que um epilético sente antes de cair no chão, através dela compartilhamos de sua visão desesperada e sublime. Até os santos se queimam em humanas fogueiras.

Todo grande romance de Dostoiévski tem um crime. Um crime que põe em xeque a misericórdia do homem e sua relação com Deus. Tem, também, extremos de loucura, dor, orgulho, cobiça, luxúria. Ou do mais puro amor cristão. Dostoiévski era assim, vivia no limite. Homem irritadiço, exaltado, dado a ataques de fúria, podia ser muito sedutor quando queria. Padecia de culpas, mas era tocado pela graça divina. Por ser epilético, tinha visões, que o fizeram escrever vertiginosas obras-primas.

Dostoiévski viveu na terra o céu e o inferno. Fama, glória, doença, prisão, dívidas. E talvez seja por isso que tenha criado personagens magníficos. Como ele, todos se encontravam no limite, andando no fio da navalha. Mesmo o Cristo que criou não escapou de ser posto no olho de um rodamoinho de emoções. Tão fortes, que ao vivenciá-las sua mente estalou. Curado da idiotia, se fez idiota novamente. O Cristo de Dostoiévski, todo compreensão, coração a nu, era um ser inapto para viver entre os homens. Preferia a paz e a névoa da loucura à realidade.

Dostoievski se dispôs a dar vida no papel a um homem absurdamente bom, que aceitasse todas as falhas humanas. Capaz de perdoar o assassino da mulher que amava, Nastácia Filíppovna. O imenso carinho que Michkin sentia por Nastácia nascia da certeza de que um dia ela seria morta brutalmente. Ou se mataria.

São muitos os personagens de Dostoievski que vivem entre a morte e a vida, no limiar de uma execução, de um assassinato ou do suicídio. Muitos temem o sono, pois o sono é a morte. Mas namoram a morte. Como refrigério, alívio, fuga de situações insuportáveis para a lucidez. Tamanha a carga do horror que os circunda ou que sentem por si mesmos.

Como o próprio Dostoievski, seus personagens são bons e maus. Têm terríveis problemas éticos. Alçam-se às nuvens e ao mesmo tempo são capazes de agirem como bestas. Só o príncipe Michkin é a bondade absoluta. Transparente como o filho de Deus crucificado no Gólgota. Ler “O idiota” exerce sobre nós um impacto imenso, deixando-nos marcados para sempre. O encontro com este livro nos muda por dentro. Mesmo que não entendamos de imediato tudo o que Dostoievski está querendo transmitir. E que, a respeito de algumas passagens, fiquemos apenas na intuição. Pois assim estaremos mais próximos de Michkin, que se guiava pelo tumulto da fútil sociedade de Petersburgo usando como bússola apenas sua intuição de homem santo extremamente humano. Santo a ponto de ser considerado idiota pelos espertos. Aqueles que vivem com o pé na terra. Os que não sentem a alma voar com o sopro do vento nas folhas. Os que não temem o pó. (Cecília Costa)

Conclusão: Michkin quer nos dizer que, se o ser humano tivesse absoluta consciência de que pode morrer a qualquer momento, de que está nas mãos do acaso, no sentido de que é mortal, ele teria uma apreensão da vida totalmente outra. O ser humano se esquece o tempo inteiro de que é mortal. Ele só quer sobreviver, e isto é o mal funcionando nele, porque faz com que perca o foco. Daí a idéia de que a modernidade é um investimento em Satanás.

Sobre o autor: Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu em Moscou a 30 de outubro de 1821, e estreou na literatura com Gente pobre, em 1844. Após ser preso e condenado à morte pelo regime czarista em 1849, teve sua pena comutada para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, experiência retratada em Recordações da casa dos mortos (1861). Após esse período, escreve uma seqüência de grandes romances, culminando com a publicação de Os irmãos Karamázov em 1880.
Reconhecido como um dos maiores autores de todos os tempos, Dostoiévski morreu em São Petersburgo, a 28 de janeiro de 1881.

Sobre o tradutor: Paulo Bezerra estudou língua e literatura russa na Universidade Lomonóssov, em Moscou, e foi professor de teoria da literatura na UERJ e de língua e literatura russa na USP. Livre-docente em Letras leciona atualmente na Universidade Federal Fluminense. Já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras nos campos da filosofia, psicologia, teoria literária e ficção, destacando-se suas premiadas traduções de Crime e castigo, O idiota e Os demônios, de Dostoiévski.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

QUANDO DESPERTAMOS DE ENTRE OS MORTOS

Título original: (do norueguês Vagner Når vi døde)
Autor: Henrik Ibsen (1828-1906)
Tradução: Vidal de Oliveira
Editora: Globo
Assunto: Drama
Edição: 1ª (2ª reimpressão)
Ano: 1960
Páginas: 51 (579-630)

Sinopse: É a última peça escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Foi publicada em 1899, e encenada pela primeira vez em Stuttgart, em 1900.

Arnold Rubek, um célebre escultor e sua esposa, Maja, estão nas margens de um fiord, numa estação balneária da Noruega, onde tinham ido passar o verão. Rubek encontra-se tenso e pouco à vontade. Maja encontra a atenção em Ulfheim, um proprietário de terras e um rude caçador de ursos que contrasta fortemente com o marido. Maja, movida pela curiosidade decide acompanhar Ulfheim até uma montanha e insiste com o marido que os acompanhe. Rubek, por sua vez, encontra Irene, uma bela mulher de seu passado que lhe desperta memórias, desejos e uma aguda crise existencial. Rubek e Irene acabam combinando se encontrar na montanha onde se desenrola todo o epílogo do drama: Ulfheim e Maja se vão para a planície obscurecida pela tormenta, e para vida, enquanto Rubek e Irene sobem para o cimo luminoso, e para a morte. A peça é impregnada por um intenso desejo de vida, mas se ele pode ser alcançado é o drama da peça.

Enredo: O escultor Arnold Rubek, numa cintilação de gênio, produziu uma grande obra, o “Dia da Ressurreição”. A idéia da Ressurreição surgiu-lhe sob o aspecto de “uma virgem imaculada que nada conhece da vida terrestre e que, ao despertar para a luz, não tem que despir-se de qualquer mácula que seja”. Ao mesmo tempo em que a Vida terrestre era desse modo afastada de sua arte, ele a bania de sua própria existência. Uma bela moça, Irene, apaixonara-se por ele e consentira em segui-lo ao estrangeiro. Ele fez dela a casta encarnação do seu pensamento diretor, submetendo-a, contudo, aos deveres de um modelo plástico. Respeitou-a, não obstante sua beleza, que se desvendava inteiramente ante ele, e não obstante a embriaguez que ela lhe causava. Queria que sua obra levasse em si o cunho do triunfo da alma sobre a carne. Rubek e Irene viveram assim uma vida seráfica nas margens do Teunitzer-Lee, um lago que não se encontra nos mapas e que foi testemunha de seus brinquedos inocentes, de mil infantilidades, nas quais buscavam o esquecimento da natureza impiedosa. Tinha dela, no íntimo, uma noção de nitidez bem diversa da que tinham os ingênuos heróis de Bernardin de Saint-Pierre. Foi mesmo isso o que os perdeu.

O falso, na vida, somente engendra loucura e foi, de fato, um germe de loucura o que Irene levou daquele “atelier” de onde, um dia, fugiu, por não poder mais, triste vítima de um egoísmo de artista que não levava em conta a natureza dela. Violentada, essa natureza vingou-se por uma reação violenta, até mesmo grosseira. A beleza sagrada que Rubek quisera preservar de qualquer mácula foi miseravelmente poluída pelos olhares de um público de café-concerto, ante o qual, Irene, foi exibi-la em quadros vivos. A infeliz tornou-se o que tinha de se tornar depois de uma tal estréia. Quando, anos mais tarde, Rubek, inopinadamente torna a encontrá-la, ela lhe conta, em frases desconexas, que seu espírito delirante lhe dita, que homens foram por ela levados a ruína e ao suicídio. Que haveria de verdade nessas narrativas? Só vagamente ele o imaginava. Ela se casara duas vezes; primeiro com um brasileiro, mais tarde com um russo. Os dois maridos estão mortos. “Matei-os” é o que responde a uma pergunta do artista. “Tens filhos?” pergunta-lhe ele. E vem a mesma resposta: “Matei-os”.

Sua fantasia sofre de uma mania homicida que, num momento dado, seguramente, ameaçou traduzir-se em atos, o que determinou o seu internamento. Pelo menos é isso que se deduz de suas palavras: “Estou morta... Puseram-me no túmulo... fecharam o sepulcro com barras de ferro, depois de terem acolchoado as paredes...” Saiu do cubículo, quase que restabelecida, mansa e boa no fundo da alma, a ponto de fascinar as crianças que instintivamente a procuravam, e, não obstante, por momentos, sujeita aos seus impulsos assassinos. Isso acontece, principalmente, todas as vezes que ela é ferida no mais íntimo dos seus sentimentos. Esse ponto sensível é, cousa estranha, o culto ou antes o amor apaixonado do ideal, amor que, nela, triunfou das máculas, das degradações, dos dramas cruéis da vida, até mesmo da perda da razão. No seu espírito, ele se une à recordação da obra-prima que ela inspirou, e pela qual conservou o amor de uma mãe pelo filho. Tornar a ver esse filho, “o nosso filho” como o chamavam outrora, revê-lo em sua beleza e em sua glória atual, tornou-se-lhe a única preocupação, a própria finalidade da existência. É assim que a imagem pura, o ideal sagrado, o protótipo divino, deformado pela realidade, se conserva nas almas amantes.

Inspirado pela vida, cujo quadro se desenvolveu ante ele depois da partida de Irene, Rubek aumentou, complicou, transformou a sua obra. Da idéia primitiva, nada mais resta, a não ser uma figura apagada no último plano de um grupo, onde se vêem homens, aprisionados na crosta terrestre que se abre insuficientemente, fazendo vãos esforços para se desprenderem, a fim de renascerem para a vida e para a luz.

No meio desses seres, o artista representou-se a si próprio. A alteração que a sua obra sofreu, nada mais é, de fato, que o reflexo da que se operou nele. Também ele está aprisionado na crosta terrestre, na existência vulgar da multidão, à qual se acha mesclado desde o dia em que trabalhou para ela, em que dela recebeu glória e riqueza. Ele a desprezava, é certo, e se sente nauseado ente os seus louvores, seus êxtases e principalmente seus comentários. “O mundo inteiro nada sabe, nada compreende” responde com raiva e desdém, quando lhe falam de seu gênio reconhecido por todos. Não importa: pertence a essa multidão. Ela o reduziu, mutilou-o, tanto que se sente incapaz de esculpir outra cousa que não sejam “bustos de perfil, de três quartos”.

Tudo o que pode fazer é vingar-se sorrateiramente, segundo sua própria expressão, dando a cada um de seus retratos uma semelhança secreta com algum animal doméstico. “Porquanto o homem, depois de ter desfigurado os animais que domesticou, recebeu por sua vez, o seu cunho”.
O sarcasmo, porém, é um sinal de derrota mais que de triunfo. É a vingança dos impotentes. E, de fato, é um impotente, esse artista que depois de ter trocado seus sonhos por uma realidade cômoda e lucrativa, quer repentinamente voltar e viver a vida terrestre que até então desdenhou, quer vivê-la plenamente, como Brand aconselhava àqueles que não se podem desprender da terra: “Sê plenamente o que és”.

Demasiado tarde! Ao ver a mão de Irene brilhar um estilete que ela dissimulava na blusa, ao ouvir-lhe dizer que por várias vezes tivera a intenção de apunhalá-lo, Rubek pergunta-lhe por que não o fez. “Porque” – declara ela, – “compreendi repentinamente que tu também estavas morto, morto como eu... A vida, toda ela, apareceu-me como um cadáver estendido num leito de luxo.” Debalde procuram eles galvanizar por um momento esse cadáver, antes de baixar ao túmulo, ao verdadeiro túmulo, que será desde então seu lugar. Da charneca selvagem, do denso nevoeiro que os cerca, o mestre e Irene, facilmente persuadida e arrastada pela vertigem que dele se apoderou e por ela própria desencadeada, atiram-se para os cimos luminosos. Mas apenas dão alguns passos e a morte, mais impetuosa ainda do que seus desejos, os detém: o terreno nevado faze-lhes sob os pés, o alude arrasta-os, o abismo os traga. Paz às suas almas atormentadas!


Interpretação da peça:
Ouve-se subitamente como que um rugido de trovão a descer das alturas nevadas, que se esboroam, e entrevê-se vagamente Rubeck e Irene, arrastados pelo alude. Traga-os o abismo”.
“A diaconisa (dando um grito e estendendo os braços para eles). Irene! (Conserva-se calada, um momento, depois faz o sinal da cruz sobre o abismo e diz:) Que a paz seja convosco! (Ouve-se ainda, vindo de baixo e cada vez de mais longe, o canto de Maja).

A alva sombra de Irene atravessa, sombra do desejo irrealizado, seguida da sombra escura e silenciosa da diaconisa, sua guardiã, da sombra do destino apegado aos nossos passos e que nos alcança ao despertar dos nossos sonhos vãos. E por uma cruel ironia da sorte, é no momento da morte que essa fonte jorra por fim dentro dos corações que, durante a vida, a ela se haviam fechado para alimentarem sentimentos sobre-humanos. Mas será mesmo uma ironia? Será uma potência sarcástica que por essa forma se ri de nós? Não será, antes, uma força infinitamente misericordiosa, Deus charitatis que, por um verdadeiro golpe de graça, detém a carreira vital de certos seres privilegiados, no momento exato em que eles concebem a felicidade? Porquanto, essa concepção é a única verdadeira felicidade que lhes seja permitida neste mundo. Mais um passo, e começaria a decepção.

O mundo é todo ele decepção. Esta é a realidade. A réplica de Irene “Quando despertamos de entre os mortos, verificaremos que jamais temos vivido” é uma das palavras mais sombrias que em qualquer tempo tenha sido dita sobre esse tema.

O conflito interior “entre o mundo tal qual ele é o mundo como deveria ser” é o único conflito da peça. Dá-se na alma de Rubek e parecia, no momento em que começa a ação, terminado pela vitória do mundo tal qual ele é. O escultor casara-se com uma verdadeira filha desse mundo, uma verdadeira filha da Eva terrestre. Ibsen dá-lhe o nome de Senhora Maja, da mesma forma que tem o cuidado de juntar sempre ao nome de Rubek seu título de professor. Nesse pequeno detalhe esconde-se uma intenção. Aqui temos um casal, cuja situação social está perfeitamente estabelecida, e que, aparentemente, nada mais tem a fazer do que gozar uma existência cujos começos, de um lado, como de outro, foram mais modestos. A estes substituíram-se condições de bem-estar material, até mesmo de luxo, que aqueles triunfadores nos expõem desde a primeira cena do drama: “Nossa casa, diz Rubek, é magnífica... Estamos instalados com um esplendor, um luxo que nada deixam a desejar. E tudo isso é vasto, é confortável.” “Não há dúvida, responde Maja, em matéria de bem-estar e de conforto nada nos falta.” Aparências vãs, tudo isso! Já vimos o que é a alma do Senhor professor. A verdade explode bruscamente, subitamente, assim que ele torna a encontrar Irene, o passado, o sonho ao qual faltou a realidade. Debalde tenta sanar essa falta num supremo e imponente esforço para unir a arte à vida da qual a separara.

E Senhora Maja? Senhora Maja pouco se importa com a arte! “Ora! Não passas de um simples artista”, diz ela desdenhosamente ao marido, que a quer iniciar nas suas torturantes elucubrações. “Estás doente, Rubek”, diz em outra oportunidade, com clarividência e solicitude femininas, porque de fato ele o está. Mas, para essa doença ela só conhece um remédio: “Bebe” acrescenta, oferecendo-lhe um copo de champanha, “bebe e sê feliz”. O remédio é eficiente para ela? Será ela feliz, embora não lhe falte o champanha? Não. Maja é também uma desiludida. “Lembras-te do que me prometeste?” pergunta ela àquele a quem seguiu em país estrangeiro. Trata-se da promessa do tentador evangélico: “Eu te conduzirei a uma alta montanha e te mostrarei todos os esplendores da terra.” O tentador não pode cumprir a promessa, porquanto as duas partes são incompatíveis. Para uma, a alta montanha, para a outra os esplendores da terra. Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo. E, entretanto, somente sua reunião corresponderia aos secretos desejos da nossa natureza primitiva. A mulher, ser instintivo, mais perto da natureza do que o homem compreende isso e sente-o sempre, qualquer que ela seja. A mais terra-a-terra tem necessidade de ideal, a mais imaginativa precisa de realidade. “Nunca me levaste a uma alta montanha” é uma das queixas que Maja faz ao marido. Por sua vez ouvimos o queixume de Irene: “Deveria ter dado à luz a crianças... a verdadeiras crianças, não dessas que se guardam em sepulcros... Nunca te deveria ter servido, - poeta!” “Por que me chamas poeta?” pergunta-lhe Rubek. “Porque és fraco e inerte, cheio de indulgências para com os teus atos e pensamentos.” Isso está nitidamente dito: é preciso, para ter direito à vida, para contentar, até mesmo a um ser exaltado como Irene, que um poeta seja ao mesmo tempo homem, com tudo o que esse termo implica, inclusive o sentimento de responsabilidade por seu atos e pensamentos. E esse sentimento deve traduzir-se de outra forma que não em obras de literatura ou arte: “Mataste a minha alma”, acrescenta Irene, “e esculpes a seguir tua imagem numa atitude de arrependimento, de confusão e de penitência. Com isso crês estar tudo dito e que não há mais contas a ajustar.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DON JUAN

Título original: Don Juan ou Ler festin de pierre.
Autor: Jean-Baptiste Poquelin (Molière) - (1622-1673)
Tradutor: Millôr Fernandes
Assunto: Drama
Editora: L&PM
Edição: 1ª
Ano: 1997
Páginas: 130 p.


Sinopse: Don Juan é um lendário libertino fictício, um mulherengo inveterado, que seduzia as mulheres prometendo-lhes o matrimônio. Deixa, atrás de si, um rastro de corações partidos, até que finalmente acaba matando um certo Don Gonzalo. Quando depois é convidado pelo fantasma deste para um jantar numa catedral, acaba por aceitar, por não querer parecer um covarde e acaba se dando muito mal. A história termina dramaticamente, com a descida de Don Juan ao Inferno.

Curiosidade: A versão de Molière, que estreou em 1665, após quatorze apresentações foi proibida e só voltaria a ser reencenada como ele a escreveu cento e setenta e quatro anos depois da morte do autor.

As personagens:

― Don Juan – filho de Don Luís
― Leporelo – Criado de Don Juan
― Dona Elvira – Mulher de Don Juan
― Gusmão – Escudeiro de Dona Elvira
― Don Carlos – Irmão de Elvira
― Don Alonso – Outro irmão de Elivira
― Carlota e Marturina – Componesas
― Pierrô – Camponês
― A Estátua do Comendador
― Violeta e Ragota - Criados de Don Juan
― Sr. Domingos – Comerciante
― La Rammé – Espadachin
― Um pobre
― Comitiva de Don Juan
― Comitiva dos irmãos Don Carlos e Don Alonso

Resumo da narrativa: Don Juan, depois de seduzir e prometer casamento à bela Elvira, a abandona e foge. Atrás dele vão os dois irmãos da donzela, prontos para lavar a honra da família. Na fuga, Don Juan e seu criado Leporello acabam vítimas de uma tempestade, indo parar numa ilha desconhecida. É ali que o incorrigível conquistador se envolve com mais duas beldades: as donzelas Mathurine [Marturina] e Charlotte [Carlota]. Leporelo, na ausência de Don Juan, intercede explicando às moças que o seu patrão “é um salafrário”, capaz de “casar com todas, com a humanidade inteira”.

Chega um cavaleiro e comunica a Don Juan que ele está sendo procurado por doze homens a cavalo. Ele despede-se rapidamente das mulheres como se estivesse falando a apenas uma, prometendo voltar para cumprir a palavra, após “resolver um assunto urgente”.

Acovardado, se disfarça de camponês e Leporelo de médico, e ambos vagueiam por uma floresta para se esconderem dos cavaleiros em seu encalço. A dupla pergunta o caminho a um medigo que os adverte da presença de assaltantes na região e pede uma esmola. Don Juan faz pouco do mendigo e no meio da zombaria a conversa é interrompida por uma cena em que um cavalheiro é atacado por três assaltantes. Don Juan decide intervir e com a sua chegada os três assaltantes fogem. O cavaleiro agredido agradece generosamente explicando que teria vindo com seu irmão e demais cavaleiros para vingar a honra de uma irmã “seduzida e raptada de um convento”.

Cinicamente Don Juan diz ao cavalheiro que conhece Don Juan e propõe auxiliá-lo na procura de tal malefeitor para que ele preste as devidas satisfações. Nesse interim aparece Don Alonso, irmão do cavalheiro atacado, e reconhece Don Juan. Quando todos estavam prestes a empreender o embate, Don Carlos, o cavalheiro salvo por Don Juan, pede magnanimidade e diz que defenderá seu salvador. Com isso consegue para Don Juan o adiamento de um dia no confronto.

Leporelo que havia se escondido ressurge do seu esconderijo e ambos entabulam nova conversa. Enquanto conversa, a dupla dá-se conta da existência próxima de de um mausoléu. Leporelo reconhece o túmulo do Comendador que havia sido morto por Don Juan, que fica muito interessado em conhecer o prédio. Leporelo tenta dessuadir o patrão de tal intento pois não parecia civilizado visitar uma pessoa que este havia matado.

Na visita se deparam com a estátua do Comendador e Don Juan, debochadamente, manda Leporelo convidá-la para jantar com ele. A estátua aceita para espanto de ambos que abandonam o local dissimuladamente para não parecerem covardes.

Já na sua residência recebe a visita de um fornecedor credor e habilmente o impede de entrar no assunto, despachando-o sem pagar a dívida.

Chega Don Luís, o pai de Don Juan que passa-lhe completa descompostura dizendo que a ternuna paterna havia esgotado os seus limítes: “Muito antes do que você imagina, saberei pôr um fim aos teus desregramentos, atraindo sobre tí a cólera do céu”.

O fidalgo recebe a inesperada visita de Dona Elvira, uma de suas incontáveis abandonadas, e suplica-lhe que se arrependa. Este tenta persuadí-la a pernoitar com a intenção de dar vasão as pequenas chamas de seus instintos que começaram a crepitar, mas esta recusa e vai embora.

Durante o jantar, batem à porta. Leporelo atende e retorna apavorado anunciando a presença da estátua do Comendador que convida Don Juan a cear com ela no dia seguinte. O fidalgo aceita e a Estátua parte recusando a tocha oferecida, alegando que “não precisa de luz quem é iluminado pelo céu”.

Já no quinto ato, Don Juan confessa hipocritamente ao pai que havia se convertido e pede ao pai que lhe indique uma pessoa que lhe sirva de guia para marchar seguro pela estrada que escolheu caminhar. O velho, comovido, dá graças aos Céus por ter sido atendido em sua preces, sem se dar conta que tudo não passava de hipocrisia do filho, cujas palavras saídas da boca não correspondiam às que estavam em seu cérebro. Tudo não passava de um “projeto político” para iludir os tolos.

Don Carlos encontra Don Juan e lhe pergunta se ele vai ou não casar com sua irmã Elvira. O libertino diz a Don Carlos que havia recebido diretamente do Céu o aviso para não fazê-lo. Leporelo, que ouviu a conversa, diz ao patrão que este novo estilo é “bem pior do que todos os outros”.

Na cena cinco do quinto ato aparece um espectro sob a forma de uma mulher velada e avisa a Don Juan que aquele é o “último instante para aproveitar a misericórdia divina”. Don Juan quer saber que está ali sob as vestes e, quando se aproxima, “o espectro transforma-se no tempo, com a foice na mão”. Don Juan puxa a espada e atravessa o espectro, que desaparece imediamente. Leporelo insiste em que ele se arrependa, mas o libertino está irredutível.

Don Juan sobrepõe o orgulho sobre qualquer arrependimento e prepara-se para partir, mas a Estátua o impede e lembra-lhe com comprimisso dele em jantar com ela. Don Juan aceita e a Estátua toma-lhe a mão e sob enorme espanto Don Juan vê-se consumido por um fogo invisível que o queima e sufoca. A terra se abre e traga-o para o abismo e enormes labaredas se levantam no lugar em que ele desapareceu.

Leporelo faz um retrospecto dos efeitos produzidos pelo patrão libertino que desaparecera e lastima pelo seu salário não recebido. Quem irá pagá-lo?

Comentários: José Monir Nasser relata que a história de Don Juan foi primeiramente contada por um padre espanhol, Tirso de Molina na peça “El burlador de Sevilha y convidado de piedra” ["O conquistador de Sevilha e o convidado de pedra"], escrita na Espanha entre 1629 e 1635. O teólogo, seguindo as disposições do Conselho de Trento, queria impressionar os fieis contando o destino implacável de um homem dissoluto e imoral incapaz de arrependimento sincero.

Surpreendentemente, o tema demonstrou grande fertilidade e, em torno dele, foram escritas dezenas de versões, sendo a de Molière, de 1665, provavelmente a mais importante e a mais conhecida. Mais de cem anos depois, o libretista italiano Lorenzo da Ponte escreveria uma versão operística da obra de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou o seu “Il dissoluto punito ossia Il Don Giovanni” [Libreto da ópera de Mozart] em 1787. Em 1821, Lord Byron também escreveria o poema épico “Don Juan”. Além deles, Corneille, E.T.A. Hoffamn, Pushkin, Glück e Richard Strauss, entre outros exploram o tema.

Portanto, a história sobre Don Juan foi contada muitas vezes por autores diferentes. O nome às vezes é modernamente e figurativamente usado como um sinônimo para sedutor (ou "playboy").

As visões acerca da lenda variam de acordo com as opiniões sobre o caráter de Don Juan, apresentado dentro de duas perspectivas básicas. De acordo com uns, era um mulherengo barato, concupiscente, cruel sedutor que buscava apenas a conquista e o sexo. Outros, porém, pretendem que ele efetivamente amava as mulheres que conquistava, e que era verdadeiramente capaz de encontrar a beleza interior da mulher. As versões primitivas da lenda sempre o retratam como no primeiro caso. Todavia, essa é uma visão muito estreita da obra. Ela quer nos contar muito mais que isso.

Interpretação da obra: Don Juan é a história de um libertino. Parafraseando o professor Monir, a primeira coisa a fazer para compreender o sentido da obra é não interpretar Don Juan do ponto de vista moderno, ou seja, do ponto de vista meramente sexual. Como o mundo moderno é um mundo associado a sexo, tendo neste ato sua atividade predominante, as pessoas acham que essa é a missão que o mundo lhes dá.

A segunda coisa a fazer é estabelecer o perfil de Don Juan e suas transgressões:

― Mata o Comendador, pai de Anna. (a figura do pai sempre simboliza o espírito)
― Seduz Dona Anna.
― Profana a sacralidade do Convento, seduzindo a freira Elvira.
― Profana a inocência, seduzindo as camponesas Carlota e Marturina.
― Profana a humildade e chantageia um pobre.
― Salva a vida de Don Carlos. O único ato nobre.
― Profana a honestidade, embromando o credor.
― Zomba do Céu quando Elvira aparece transformada.
― Zomba do Espírito quando destrata o pai após ser repreendido por ele.
― Expulsa o cobrador.
― Não se acovarda diante da Estátua do Comendador.

Assim, Don Juan, do começo ao fim da história só pratica atos maus, exceto quando salva a vida de Don Carlos, sendo o seu único ato nobre. É preciso considerar o valor desse ato na história toda: “salvar a vida”.

Don Juan recusa todos os valores transcendentes, mas ele não é ateu porque em nenhum momento diz que Deus não existe. Na verdade, ele é um rebelde metafísico que quer viver sua vida loucamente porque acha que, fazendo o que faz, será mais homem do que em outras circunstâncias. É a atitude do super-homem de Nietzsche.

Esse modo de proceder faz de Don Juan uma personagem nietzscheiana, desprovida de valores transcendentes, que faz tudo ao contrário do que mandam os valores morais e espirituais; que faz as coisas do jeito dele, independentemente das questões externas. É o homem de natureza prometeica nietzscheiana que julga ter a capacidade e autoridade sobre o próprio destino.

Don Juan tem consciência moral, representada por Leporelo que está ao lado dele o tempo todo dizendo a ele as coisas que estão erradas, mas ele quer desafiar a moralidade e tenta criar o homem prometeico – Leporelo é o duplo de Don Juan, uma espécie de consciência moral deste.
Consciência moral é aquela voz que diz para você que você está fazendo errado. Se você não ouve essa voz é um problema grave: ou você é santo ou então precisa urgentemente receber um tratamento de humanização. Se você não ouve essa voz, significa a perda da consciência moral. Não há nada mais desumanizante do que a perda da consciência moral.

Embora Don Juan tenha desafiado a moralidade o tempo todo, ele praticou um ato bom ao salvar a vida de Don Carlos. Este ato de bravura salvou a sua própria vida, pois todas as vezes que se praticam atos bons, o mundo responde positivamente. Foi o que aconteceu com Don Juan, vez que, em seguida Don Alonso o reconhece e se prepara para matá-lo, mas Don Carlos impede, concedendo-lhe mais um dia para enfrentarem-se em duelo.

A queda de Don Juan se dá pela densidade. Ele se torna tão pesado que a terra o traga. Essa densidade é representada pela Estátua de pedra que simboliza a matéria e destrói Don Juan. Portanto, é a densidade da matéria que destrói Don Juan. O contrário acontece com Dona Elvira. Enquanto Don Juan vai caindo, Dona Elvira vai se elevando, aumentando assim o distanciamento entre ambos.

Don Juan sabe que está fazendo errado, ele tem consciência moral, mas resolve desafiar essa autoridade para produzir uma existência humana independente de qualquer convivência superior. Ele faz isso com toda a consciência do mundo. Esta é a idéia central da obra de Molière.

Conclusão: A condição humana exige subordinação ao Céu. Quem não aceita esta condição cai na rebelião metafísica cujo destino é ser tragado para as profundezas do abismo onde reinam as trevas.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MADAME BOVARY

Título original: Madame Bovary
Autor: Gustave Flaubert (1821-1880)
Tradução: Araújo Nabuco
Editora: Circulo do Livro
Assunto: Romance
Edição: 2ª
Ano: 1975
Páginas: 261

Sinopse: O romance conta a história de Emma Rouault, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles Bovary, um médico interiorano tão apaixonado pela esposa quanto entediante. Nem mesmo o nasci
mento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa.

Resumo da narrativa: Charles Bovary – a história começa com sua entrada na escola e com a hilaridade que provocou nos outros alunos seu chapéu ridículo – é rapaz estúpido, insensível de grande inabilidade; também incompetente e realizará operações desastrosas como no pé do aleijado do pobre Hippolyte. Emma, por sua vez, é uma mocinha sonhadora, romântica, acreditando no que suas leituras medíocres lhe contam sobre a felicidade pelo amor. Toda enganada. Emma casa com Charles Bovary, para fugir da estreiteza da casa paterna. A decepção é inevitável. Um baile no castelo do vizinho aristocrático reaviva os sonhos românticos, a que tão pouco corresponde o marido. Frontalmente, cai Emma na aventura adulterosa com Rodolphe, espécie da Don Juan rural, que a abandonará em breve. Agora, as paixões de Emma estão despertas. O jovem Léon, empregado de um advogado, é sua próxima vitima. Ela perde totalmente o equilíbrio. Toma emprestado dinheiro, mais do que poderá jamais devolver. Desespero. Suicídio. Depois da morte, Charles Bovary descobre a verdade. Fica perturbado sem saber o que pensar. E é só. Eis tudo. Uma história triste e, em parte, sórdida. Mas, atenção! Essa história não é simples como parece.

O romance se chama Madame Bovary. O título indica que Emma Bovary é sua “heroína”. Mas será realmente assim? A narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nele desempenham grande papel o estúpido don-juanismo de Rodolphe e a estúpida paixão de Léon, a estupidez do farisaico padre Boumisien e todo esse pequeno ambiente de província, sem saída para Emma e sem saída para ninguém e pode-se afirmar: a verdadeira personagem do romance é a Estupidez humana.

Análise de excertos da obra: A primeira página do livro descreve minuciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como “enfadonha” e “inútil”. Ela pode ser enfadonha – como o próprio Charles Bovary – mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o simbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á simbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné “grego” que usa o farmacêutico Homais e o chapeu de castor do padre Boumisien e o chapéu “elegante” (mas já démodê) do don juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyssard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mais visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance os “Comícios agrícolas”, a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e o sussurro do vento nas árvores – todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance inteiro.

Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na Catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais – é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.

Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovary é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual da arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é fácil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se, como um monge no deserto, para elaborar uma obra dessas.

Comentários: Dois pré-requisitos são necessários para iniciar a leitura da obra de Gustave Flaubert: paciência e envolvimento. A linguagem extremamente trabalhada e descritiva pode sufocar os mais afoitos, já que os fatos acontecem lentamente, sendo interrompidos por bucólicas descrições da paisagem, do tempo, do vestido de Emma, suas rendas, seus caprichos e seu marido apaixonado e tedioso. Afinal, é um romance comprometido com a realidade e há momentos em que é até possível sentir o cheiro do ambiente descrito. Os detalhes possibilitariam a mesma elaboração de uma cena a muitos leitores.

Emma é uma mulher que nunca sabe o que quer. Que quer tudo e que não valoriza quase nada do que tem. Uma problemática bem elaborada pelo autor, Gustave Flaubert, que demorou cinco anos para concluir a obra e que foi acusado de ofensa à moral e à religião por abordar o adultério, o desejo e os caprichos femininos dentro da rotina do casamento entre uma bela donzela e um médico emergente.

Em diversos momentos o autor afirma e reafirma em sua narrativa o quão entediante é Charles, marido de Emma. Mas em uma leitura mais crítica, é intensa a força que Flaubert coloca no texto para perpetuar visão que Emma tem de Charles. Na realidade é ela que, com sua volatilidade, está sempre enfastiada de tudo e todos a sua volta. A rotina a corrói. O dia-a-dia não lhe pertence. Seus desejos enxergam a realidade como algo ínfimo e inferior demais para ser vivido. Ela sonha com príncipes, riquezas e bailes.

Os amantes trazem-lhe a vida e o brilho de volta, brilho que ela parece nunca ter tido, já que, quando solteira, passava a própria existência de forma modesta no campo com seu pai viúvo. A troca de amores de Emma poderia também ser comparada ao que acontece hoje com algumas jovens mulheres que mudam de paixões ao sabor da vontade.

O tédio de Emma vai além da falta de graça e vida de seu marido, porque quase nada a satisfaz por muito tempo. Vaidosa, cheia de vontades, uma verdadeira mulher de fases, que ora alterna o ímpeto da paixão pela vida e pelos amantes, ora entra em um estado de letargia desconsolado com a existência. Nem o nascimento de sua filha faz com que o amor pleno tome conta de Madame Bovary, que procura incessantemente as paixões nas páginas dos romances os quais chegou a ser proibida de ler por causa dos conselhos da sogra, que pouco a estimava.

As traições de Emma parecem ser percebidas por todos da pequena comunidade. Diferente das mulheres prendadas e dedicadas ao marido, ela é uma verdadeira consumista que afunda Charles em dívidas homéricas e irreversíveis. Dinheiro, luxo, sexo, chantagem. Emma buscava amantes que pudessem levá-la aonde ela quisesse, já que sozinha ela não poderia ir. Ela queria ser quem não era fenômeno hoje designado pela psiquiatria como Bovarismo.

A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre como o mais perfeito, o mais inexorável “romance de adultério”, com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal de Sena, em 1857, achou censuráveis. Como estão distantes do verdadeiro sentido da obra! Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse “inútil” o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar (sic). E que temos nós, hoje, com acontecimentos quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840?

Os ambientes sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, a obra de Flaubert tem o valor de grande, exaustivo e exato romance histórico. Mas as conseqüências continuam e com elas os tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres ainda são assim; e assim continuarão por muito tempo.

Sobre o autor: Gustave Flaubert (Ruão, França, 12 de dezembro de 1821 – Croisset, França, 8 de maio de 1880) foi um escritor francês. Prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, seu senso de realidade, sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances, tais como “Madame Bovary” (1857), “L'Éducation sentimentale” (1869), “Salammbô” (1862) e contos, tal como “Trois contes” (1877).

Madame Bovary é considerado o ápice da narrativa longa do século XIX - o chamado século de ouro do romance. Flaubert, o esteta, aquele que buscava o mot juste (a palavra exata) e burilava os seus textos por anos a fio, imbuiu-se da consciência e da sensibilidade da sua personagem. Alcançou com a irretocável prosa de Madame Bovary, um dos mais altos graus de penetração e análise psicológica da literatura universal.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

Título original: Wilhelm MeisterLejrjahre
Autor: Johann Wolfgand von Goethe (1749-1832)
Tradução: Nicolino Simone Neto
Editora: 34
Assunto: Romance
Edição: 1ª
Ano: 2006
Páginas: 608

Sinopse: Goethe narra as aventuras do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas de sua família, desejosa de que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro. Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e diversas ligações amorosas, Meister se vê às voltas com os mais diferentes extratos sociais, cumprindo uma trajetória que desenha o painel da sociedade de seu tempo.

Resumo da narrativa: Com uma habilidade fora do comum para desenhar de forma precisa os movimentos mais sutis e complexos da alma, Goethe narra a trajetória do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas da família, desejosa que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro.

Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e experiência amorosas, Wilhelm Meister se vê às voltas com as mais diferentes esferas sociais, que se sobrepõem e encontram eco em seu espírito – o círculo burguês de seus primeiros anos, a ciranda dos atores e atrizes, as cenas da vida no castelo e na corte, as reuniões secretas de sábios – , esferas que não deixam de constituir, cada uma delas, uma forma específica de representação teatral.

O teatro desempenha, dentro da obra, um papel decisivo na formação do herói, pelo menos até o Livro V. Já no livro VI, peça praticamente autônoma dentro do romance e na qual se convenciou ver o fim de sua primeira parte, têm lugar as “Confissões de uma bela alma”. Esta passagem retrata a educação de uma figura feminina – processo que se desenvolve em isolamento, uma vez que a personagem não deseja sofrer nenhuma interferência externa em sua formação – e funciona, na economia da obra, como um contraponto exato da figura de Wilhelm Meister, sempre pronto e mesmo ansioso por absorver tudo que o mundo lhe oferece.

Já nos livros VII e VIII, sobretudo com a entrada em cena da Sociedade da Torre, a narrativa sofre uma reviravolta e a perspectiva se desloca da formação individual para a formação coletiva, o que incita o leitor a ver com outros olhos o caminho trilhado até o momento – processo que encontra correspondência nas transformações por que passa então o próprio Wilhelm Meister, agora desinteressado da vida artística e disposto a tornar-se um homem preparado para a realidade, ou seja, para o mundo.

Comentários: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em duas partes (em 1795 e 1796), deu origem a um novo gênero literário: o romance de formação (Bildungsroman), a mais importante contribuição alemã à literatura mundial.

Romance enciclopédico, que sintetisa e supera o livro de viagens e de aventuras, o romance de amor, o romance social e o de tese estético-filosófica, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister não só configuram a totalidade social de uma época cmo nela situam com perfeição o ápice de uma concepção humanista da sociedade.

Goethe constrói seu livro em torno da questão da formação do indivíduo em condições históricas concretas, vez que a realização do homem não depende apenas da harmonia de sua vida interior, mas do modo como este se insere no contexto social. Pois é exatamente esta rara aliança entre valores individuais e coletivos que constitui o cerne deste livro que reúne com perfeição, a prosa das relações sociais e a poesia do coração.

Sobre o autor: Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt am Main, 28 de Agosto de 1749 — Weimar, 22 de Março de 1832) foi um escritor alemão, além de cientista e filósofo. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Juntamente com Schiller foi um dos líderes do movimento literário romântico alemão Sturm und Drang.

Excertos do livro:

“Da moral não se podia tirar nenhum consolo. Não podiam bastar-me a severidade pela qual ela pretende dominar nossa inclinação [a inclinação do ser humano é para o mal], nem a complacência com que ela aspira a transformar em virtudes nossas tendências. As noções fundamentais que me infundiram a convivência com meu amigo invisível [está falando de Deus] já tinham para mim um valor muito mais decisivo.”

“As perguntas: ‘Que significa isso?”, “Como se dá tal fato?”, trabalhavam em mim sem cessar noite e dia. Até que, por fim, acreditei avistar num relampejar que, aquilo que eu procurava, devia ser buscado na encarnação do Verbo eterno [Deus], que tudo, inclusive a nós, criou. [Goethe defende aqui a idéia da Criação e não da Evolução]. Que outrora o primordial se tenha colocado como habitante nas profundezas em que mergulhamos, as quais ele vê e abarca, sendo penetrado por nossa condição de grau em grau, desde a concepção e o nascimento até o túmulo [Goethe defende que a vida se dá a partir da concepção; e não o que os abortistas psicopatas advogam para deleite de seus instintos assassinos], e que, por estranho desvio, ele remonta às alturas luminosas, onde também nós haveremos de habitar para ser felizes: eis o que me foi revelado, como a uma distância crepuscular.” [Goethe está dizendo que a felicidade deve ser buscada em Deus e não neste mundo].

“Oh, por que, para falar de tais coisas, temos de empregar imagens que só anunciam situações exteriores? Onde estão ante Ele algo de alto ou de profundo, algo de escuro ou de claro? Só nós temos um alto e um baixo, um dia e uma noite. E é precisamente por isso que Ele se torna semelhante a nós, pois, caso contrário, não poderíamos ter parte alguma nele.”

“Mas como podemos tomar parte nesse inestimável benefício? ‘Pela fé’, responde-nos a Escritura. Mas o que é a fé? Ter por verdadeira a narrativa de um acontecimento, de que pode valer-me? É necessário que eu possa apropriar-me de seus efeitos, de suas conseqüências. Essa fé de apropriação tem de ser um estado próprio de ânimo, desacostumado para o homem natural.” [Goethe está falando de uma das três virtudes teologais: , Esperança e Caridade, únicas que conduzem a Deus]

“Pois bem, ó Onipotente, concedei-me então a fé”, supliquei um dia com o coração totalmente oprimido. Apoiei-me a uma pequena mesa, diante da qual estava sentada, e ocultei entre as mãos meu rosto coberto de lágrimas. Eu estava ali na situação em que se deve estar para que Deus escute as nossas preces, situação essa na qual raramente estamos.” [Que maravilha de passagem!]

“Sim, quem poderia descrever o que eu sentia então? Um impulso transportava minha alma para a cruz onde Jesus um dia morreu; [ ... ] Assim se aproximava minha alma Daquele que se fez homem e que morreu na cruz, e nesse instante eu soube o que era fé.” [pp. 380-381]