quinta-feira, 1 de junho de 2017

AS SEIS DOENÇAS DO ESPÍRITO CONTEMPORÂNEO


AS SEIS DOENÇAS DO ESPÍRITO CONTEMPORÂNEO
Título original: Sase Maladie all Spiritului Conteporan
Autor: Constantin Noica
Tradução: Fernando Klabin e Elena Sburlea
Editora: Record
Assunto: Filosofia
Edição: 1ª
Ano: 1999
Páginas: 208

Sinopse: Numa época de uniformização estéril da cultura mundial, a mensagem de Constantin Noica, vindo de fora e de longe dos centros dominantes, é a voz da diferença, a voz da autêntica criatividade, tão marginal na sua proveniência geopolítica quanto central no seu significado humano e espiritual.
Comentários: Segundo José Monir Nasser, o filósofo romeno é um desses pensadores poderosos com baixo reconhecimento internacional por ter vivido na periferia intelectual do mundo, caso também do australiano David Stove e do brasileiro Olavo de Carvalho. O caso de Noica é mais específico, porque passou a vida perseguido pelo governo comunista da Romênia, que o isolou da grande conversação, na expressão de Mortimer Adler. Mesmo assim, Constantin Noica antes de morrer, conseguiu publicar seu opus magnum, “As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo”, análise cortante que vai fundo na dissecação espiritual de nossa época. O modelo de Noica, permitindo a tipificação de seis doenças espirituais, é uma fórmula muito abrangente e útil. O Brasil, por exemplo, pode ser interpretado por vários aspectos patológicos simultâneos. O mesmo vale para nossa auto-análise.
Segundo Olavo de Carvalho, prefaciador e comentador da obra escreve que As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo avulta como obra de maturidade, onde uma filosofia longamente meditada alcança enfim aquela expressão simples e nítida que é a marca do gênio filósofo aliado a um talento literário incomum. As Seis doenças são nada mais, nada menos que as diferentes relações que têm entre si os traços definidores de todo ser, de toda realidade existente: a individualidade, a generalidade, as determinações que situam a individualidade na generalidade. Trata-se, pois, de um tratado de ontologia. Mas, em vez de apresentá-lo à maneira carregada e cinzenta de uma tese acadêmica, Noica preferiu fazê-lo sob a alegoria de um manual de patologia médica, onde, dos padecimentos do espírito humano, a descrição sobe até a análise das limitações e deficiência do ser em geral. E como para chegar a seus diagnósticos ele toma por material de exame as obras maiores da literatura e da filosofia ocidentais, este livro se torna também, de quebra, um ensaio de filosofia da história e da cultura.
A fórmula que dá unidade ao conjunto da obra é de uma originalidade que surpreende. Há um humorismo sutil, melancólico e extravagante, na idéia de nomear os mais sublimes padecimentos do espírito com neologismos técnicos, de composição grega, que parecem diretamente extraídos de um tratado de patologia clínica. Pois é exatamente isso o que espera o leitor nas páginas deste livro.

Sobre o autor: Constantin Nóica, nascido em Vitânesti-Teleorman em 25 de julho de 1909 e falecido em Sibiu em 4 de dezembro de 1987, é tido geralmente por seus compatriotas como o mais profundo e consistente dos pensadores romenos do século XX. Se permanece ainda amplamente desconhecido fora de sua pátria, isto se deve a circunstâncias peculiares de sua vida. A Romênia é talvez o país que mais tem escritores e filósofos no exterior, escrevendo em idiomas estrangeiros ou traduzindo seus próprios livros, principalmente para o inglês e o francês, este último uma espécie de segunda língua nacional romena. A produção intelectual dos romenos alcança assim fácil difusão internacional e os nomes de Mircea Eliade, Stéphane Lupasco, Eugène Ionesco, Jean Parvulesco, Vintila Horia, C. Virgil Gheorghiu e tantos outros são familiares aos leitores cultos de qualquer parte do mundo, isto para nada dizer de E. M. Cioran, o auto-exilado que se impôs - e venceu - o desafio de tornar-se o maior prosador francês do seu tempo. Menos conhecidos são, naturalmente, os escritores que permaneceram na Romênia e só escreveram na língua natal, como Lucien Blaga, majestoso poeta-filósofo. Mas Constantin Nóica sofreu algo mais que o natural isolamento lingüístico. Condenado pelo regime comunista a seis anos de cárcere e depois à prisão domiciliar numa pequena cidade do interior, só se comunicou com o mundo durante duas décadas por meio dos fiéis discípulos e amigos que o visitavam semanalmente para receber suas lições, entre os quais os dois filósofos romenos de maior destaque na atualidade, Gabriel Liiceanu e Andrei Pleshu, o primeiro, diretor da prestigiosa Editora Humanitas, o segundo, ministro das Relações Exteriores, ambos diretores do New European College, que tem sido o principal canal de comunicação cultural entre a Romênia e o exterior. Esses encontros, dos quais Liiceanu deu um relato parcial em seu Jurnalul de la Paltini, foram compondo o painel de uma vasto sistema de educação filosófica à maneira da Academia platônica, muito acima do que o ensino acadêmico de hoje poderia conceber. Mas, além de continuar vivendo através de seus livros e das notas tomadas por seus discípulos, o ensinamento de Nóica ainda foi beneficiado por uma circunstância extraordinária, que permite prever uma irradiação ilimitada de sua influência no curso das próximas décadas. É que a Securitate, o equivalente romeno da KGB, instalou microfones ocultos no sobrado de madeira onde residia o filósofo, e, ano após ano, gravou praticamente todas as conversações dele com os discípulos. Caído o regime comunista, Liiceanu e Pleshu empenham-se agora em resgatar dos arquivos da Securitate o material que constitui certamente o mais volumoso registro de história oral da filosofia de que já se teve notícia. (Olavo de Carvalho)

sábado, 1 de abril de 2017

DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA

DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA
Título original: Journal d´un curé de campagne
Autor: Georges Bernanos (1888-1948)
Tradução: Thereza Christina Stummer
Editora: Paulus
Assunto: Romance. Subgênero: romance confessional (Literatura estrangeira).
Edição: 2ª
Ano: 2000
Páginas: 285

Sinopse: Escrito em 1934 e publicado em 1936, este romance em tom confessional traça o doloroso itinerário espiritual de um jovem sacerdote, pobre e doente, enviado para uma terriola habitada por uma sociedade pragmática, descrente de fé e de cristandade. Neste cenário começa a luta contra a penetração do mal com armas como a humildade, o sofrimento e a solidão.
A história descreve a vida de um jovem padre católico na paróquia de Ambricourt, no norte da França, quase divisa com a Bélgica. A vida do padre é marcada por um câncer no estômago e pela falta de fé da pequena população local.
Comentários: Uma grande obra é aquela que agrega conhecimentos sobre a realidade e aumento de consciência da condição humana. Diário de um pároco de aldeia faz isso com magistral propriedade. Mais que isso, ultrapassa esses propósitos e nos dá uma verdadeira demonstração de fé, cristianismo e santidade e uma aula verdadeiramente filosófica. É uma história comovente, muito bonita e maravilhosa, contada com grande maestria literária. Entretanto, não é um livro fácil de ler porque é um livro com sentido filosófico onde a personagem central está argumentando em torno de idéias e o leitor moderno não está mais acostumado com isso. (JMN)
Enredo e análise da obra:
O nosso herói é um jovem padre, cujo nome nós não sabemos e que registra em seu diário a vida angustiante que leva numa paróquia de interior. A obra denuncia como o Cristianismo está sendo transformado em rotina no mundo moderno, simbolizada pelo padre na aldeia de Ambricourt. No fundo é a morte simbólica do mundo.
O livro começa com o padre descrevendo como é a vida na sua paróquia. O tempo todo se tem a impressão de que o padre está lutando contra um caso perdido, como se àquele lugar não pudesse ser recuperado.
“Minha paróquia é uma paróquia como todas as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Eu dizia ontem ao pároco de Norenfontes: o bem e o mal devem ficar em equilíbrio nelas, só que o centro da gravidade está lá embaixo, bem lá embaixo. Ou se preferir, os dois se sobrepõem nelas sem se misturar como dois líquidos de densidades diferentes. O padre riu na minha cara. Ele é um bom sacerdote, muito benevolente, muito paternal, e que no arcebispado passa até por incréu, um pouco perigoso. Suas tiradas fazem a alegria das casas paroquiais, e ele as reforça com um olhar que ele gostaria que fosse vivo, e que acho tão gasto e cansado que sinto vontade de chorar.”
Minha paróquia é devorada pelo tédio, essa é a palavra certa. Como todas as outras paróquias. O tédio a devora diante de nossos olhos e não há nada que possamos fazer. Talvez um dia destes sejamos contagiados, e descubramos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.”

Há algo de errado na sociedade e que acaba influindo na vida do pároco. E como o padre é jovem, os problemas são maiores, as dúvidas são maiores, e os sonhos são grandes. O problema está no grande abismo que separa o pároco entre o que ele sonhou ser e o que a aldeia espera que ele seja, e o que ele consegue ser, na prática.
Ele é um pároco numa cidade de gente descrente, gente cínica, gente ferozmente pragmática. Ele não tem nenhum colega de profissão que o ajude de verdade, porque todos eles estão apenas tentando transformá-lo em um ser tão cínico quanto eles. Em última análise, ficou sozinho e completamente solitário nessa vida.

“Eu me dizia então que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para se dar conta disso, não é uma coisa que se perceba imediatamente. É uma espécie de poeira. A pessoa vai e vem, sem a ver, respira essa poeira, come e bebe essa poeira, e ela é tão fina que nem faz barulho quando é mordida. Mas basta parar um momento e ela torna a cobrir o rosto e as mãos da pessoa. É preciso se agitar sem parar a fim de sacudir essa poeira de cinzas. Por isso mesmo, o mundo se agita muito.”

Este tédio que o padre descreve, é algo que não se percebe que acontece, uma espécie de poço invisível, um estado de coisas profundo e estabelecido, que não se consegue mexer. É como a poeira com a qual as pessoas se acostumam e com a qual não conseguem lidar. Este é mais ou menos o clima que se estabeleceu ali na paróquia do nosso herói.
O padre acha que a sua própria vida não tem mistério algum e o diário que ele se utiliza é um exercício para anotar as coisas que acontecem, com sinceridade que ele tem com ele mesmo.
A primeira condição para que qualquer pessoa possa ter qualquer pensamento filosófico, é ter a capacidade de contar a sua própria vida para si mesmo. Portanto, a primeira condição para ser um filósofo, é ter a capacidade de contar a sua própria vida, com sinceridade.
O padre de Torcy é um alter ego, uma espécie de duplo do pároco de Ambricourt. Se o pároco de Ambricourt é um pouco ingênuo, jovem demais, um pouco sonhador, um pouco idealista, o padre de Torcy, ao contrário, é um sujeito experiente, pragmático, realista, com uma idéia muito boa sobre o que está pensando, muita segurança. Portanto, esses dois padres farão um contraponto o tempo todo.
Aqui o autor nos aproxima essas duas personagens para que possamos comparar uma com a outra e percebermos, com mais clareza, em que o padre de Ambricourt se parece diferente.

O refúgio
Nem mesmo Deus, por incrível que pareça no diário de um padre, aparece muito. Mas lá está o pastor-mor desse pobre pastor-menor e muito perdido: o pároco de Torcy. Como responsável dos párocos da região, é ele quem ainda consegue inflamar o coração do pobre pároco de aldeia, que consegue sanar, mesmo que epidermicamente, as profundas chagas de uma vida desvirtuada, não em pecado, mas em sentido.

- Agora, os seminários nos mandam coroinhas, pés-rapados que pensam que trabalham mais do que ninguém porque nunca conseguem nada. (Pároco de Torcy)
– Uma paróquia é suja, obrigatoriamente. Uma comunidade cristã é mais suja ainda. Esperem o dia do Grande Julgamento, vão ver o que os anjos vão ter de retirar dos mais santos mosteiros, às pás cheias – que esvaziamento! (Pároco de Torcy)
Para tentar abafar um pouco seu sofrimento, o pároco refugia-se no vinho, que é uma das poucas coisas, segundo ele, que seu frágil corpo ainda suporta digerir. Pão e vinho, às vezes com um pouco de açúcar. E, raramente, algumas maças. Mas de refrigério para o corpo, o vinho – que era, na verdade, pura tinta, segundo o pároco de Torcy, que um dia surpreendeu o pároco em plena beberagem – acaba se tornando o veneno para a completa destruição do padre.
- A questão não é de saber quanto ele [o homem] vale, mas sim, quem o comanda. (Pároco de Torcy)
A luta
Mas a luta é grande no coração do pároco. Sua vida entra em choque com ex-colegas e amigos que largaram a batina e foram tomar outros rumos.
“Você deve ter compreendido há muito tempo que, como dizem, deixei a batina. Meu coração, no entanto, não mudou. Apenas se abriu para uma concepção mais humana, e, por conseguinte mais generosa da vida. Ganho minha vida, eis uma grande frase, uma grande coisa. Ganhar a vida! O hábito, adquirido desde o seminário, de receber dos nossos superiores, como uma esmola, o pão de cada dia, ou a pratada de feijão, faz de nós, até a morte, uns meninos de escola, umas crianças. Eu era, como provavelmente você ainda é: absolutamente ignorante de meu valor social.” (carta de Louis Dufrety, amigo padre que largou a batina, ao pároco)

A vida do pároco da aldeia também vai de encontro aos desejos libidinosos das aluninhas da catequese. Esforça-se por não explodir com as secretárias que teimam em ajeitar-lhe a vida e a paróquia diferentemente do que deseja. Quase entra em disputa com os ricos do lugarejo, ele, que desde pequeno só conheceu a pobreza.

- A Igreja foi encarregada por Deus de manter no mundo o espírito da infância, a ingenuidade, este frescor. O paganismo não era inimigo da natureza, mas o cristianismo é o único que a engrandece, a exalta, a coloca na medida do homem, do sonho do homem. Gostaria de agarrar um desses sabichões que me tratam de obscurantista, eu diria a ele: “Não é minha culpa se uso uma roupa de agente funerário. Afinal, o papa se veste de branco, e os cardeais, de vermelho”. Eu teria o direito de passear vestido como a rainha de Sabá, porque trago a alegria. Eu a daria de graça a você, se me pedisse. (Pároco de Torcy)

E lá pelas tantas, resolve questionar um sentido na vida de uma das moças da paróquia, justamente a filha do conde. E conversa com a mãe. Nesse diálogo, vê-se como pode ser profundo o sofrimento de alguém, mesmo que a aparência esconda até o limite. Duas vidas bloqueadas pelo sofrimento, a da mãe e a do pároco, digladiam-se tentando encontrar um sentido, uma razão para continuar lutando.

- Eu o impeço de calcular a precessão dos equinócios, ou de desintegrar os átomos? Mas de que lhe adiantaria fabricar a vida, se você perdeu o sentido da vida? Só lhe restaria estourar os miolos diante de suas retortas. (Pároco de Torcy)
A doença
Desse diálogo revelador, a história toma outro rumo bastante diferente do que o pároco previa. E a dor e o sofrimento por não ver um sentido em toda uma vida acabam refletindo na saúde do padre. Como um câncer de estômago.
Escapar! Fugir! Encontrar o céu do inverno, tão puro, onde esta manhã eu vira surgir, pela porta do vagão, a aurora. O doutor Laville deve ter-se enganado. De repente, tudo se esclareceu dentro de mim. Antes que tivesse terminado a sua frase, eu já não passava de um morto entre os vivos.
Câncer… Câncer de estômago… Foi principalmente a palavra que me chocou. Esperava outra. Esperava a palavra tuberculose.
Estava só, inexprimivelmente só, diante de minha morte, e essa morte não passava da privação do ser – nada mais. O mundo visível parecia estar se esvaindo de mim, com velocidade aterradora, e numa desordem de imagens, não fúnebres, mas, ao contrário, muito luminosas, ofuscantes. “Será possível? Tê-lo-ia amado tanto?”, dizia a mim mesmo. Aquelas manhãs, aquelas tardes, aquelas estradas. Aquelas estradas mutantes, misteriosas, estradas repletas de passos de homens. Teria eu amado tanto as estradas, nossas estradas, as estradas do mundo?
Por que me inquietar? Por que prever? Se tiver medo, direi: tenho medo, sem ficar envergonhado por isso. Que o primeiro olhar do Senhor, quando sua sagrada face aparecer diante de mim, seja, portanto um olhar que tranqüilize!
A partir desse momento, tudo rui. Não sobra nada, nem o sacerdócio, nem a paróquia, nada. Nada interessa. Se antes nada tinha sentido, agora o que poderia restar?
Há certamente algo de doentio no apego que tenho por estas folhas. Elas foram para mim um grande auxílio na hora da provação, e hoje me trazem um testemunho muito precioso, por demais humilhantes para que sinta prazer com ele, e o bastante exato para fixar meu pensamento. Ela me libertaram do sonho. Não é pouca coisa.
A morte
Assim, vencido pela luta da vida, gastando-se numa incompreensão da qual não encontra saída, o pároco acaba se desfazendo de tudo aquilo – pouco, bastante pouco – que havia construído como homem e como padre. E é assim que ele encontra a redenção.
Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. A graça está em esquecer. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como qualquer um dos membros sofridos de Jesus Cristo.
Alguns instantes mais tarde, sua mão pousou sobre a minha, enquanto o seu olhar me fazia claramente sinal para que aproximasse meu ouvido de sua boca. Pronunciou então, distintamente, embora com extrema lentidão, estas palavras, que estou certo de repetir com exatidão: “O que importa? Tudo é graça”.
Creio que morreu logo em seguida. (carta de Louis Dufrety ao pároco de Torcy)
O autor:

Georges Bernanos foi um escritor e jornalista francês. Bernanos participou intensamente da vida política francesa: foi soldado de trincheira na Primeira Guerra Mundial e repórter na Guerra Civil Espanhola.





Cronologia

1888
Georges Bernanos nasce no dia 20 de fevereiro, em Paris. Passa a infância numa propriedade rural, na aldeia de Fressin (Pas-de-Calais). O ramo paterno tem remota origem espanhola. A família é católica e monarquista.
1906
Entra na faculdade de direito em Paris e no Instituto Católico. Envolve-se na crise política de Portugal, ao lado dos defensores da monarquia. Preso, escreve numa cela seu primeiro artigo publicado. Associa-se à Ação Francesa [Action Française] de Charles Maurras.
1913
Dirige em Rouen o semanário monarquista A Vanguarda da Normandia. Publica várias novelas.
1914
Participa da I Guerra Mundial como voluntário. Obtém a patente de cabo.
1917
Casa-se no dia 14 de maio com Jeanne Talbert d´Árc, descendente de um irmão de Joana d´Arc. Terão seis filhos.
Rompe com a Ação Francesa por discórdias políticas.
Assume o cargo de inspetor da companhia de seguros La Nationale.
1922
É PUBLICADA NOVELA “Madame Dargent” na Revista Semanal.
1925
Bernanos completa a redação do romance “Sob o Sol de Satã”. O livro é publicado com grande sucesso, pela Pion no ano seguinte.
1926
A Action Française é excomungada pelo Papa Pio XI.
Bernanos escreve “A Impostura”.
1927
Recusa a Legião de Honra.
1929
Publica “A Alegria”, seu terceiro romance.
1930
Termina “O Grande Medo dos Bem Pensantes”.
1931
Muda-se para La Bayorre onde ficaria até 1934.
Começa polêmica pública com a Ação Francesa.
1933
Bernanos sofre acidente de motocicleta que o deixa invalido. Muda-se para as ilhas Baleares para reduzir seu custo de vida.
1934
Em Maiorca escreve “Um Crime”, “Diário de um Pároco de Aldeia”, “A Nova História de Mouchette” e “Os Grandes Cemitérios sob a Lua”.
1937
Volta à França, mas parte quase imediatamente para o Paraguai e para o Brasil: “Fui embora quase imediatamente do meu país. Já não era possível um homem livre escrever ou até mesmo apenas respirar ali”.
1938
Recusa novamente a Legião de Honra.
Escreve “Nós Franceses” e “Escândalo de Verdade”.
Mora numa fazenda em Pirapora-MG, no interior do Brasil.
1943
Publica “M. Ouine”, uma personificação do mal.
1945
Volta à França chamado por De Gaulle que foi seu colega de classe na escola.
Recusa todos os cargos que lhe são oferecidos.
1946
Recusa novamente a Legião de Honra.
1947
Escreve “Diálogos das Carmelitas”. Sua doença hepática se agrava e é levado para Paris às pressas.
1948
Georges Bernanos morre no dia 5 de julho no Hospital Americano de Neuliy.

 Elaborada pelo prof. José Monir Nasser.

quarta-feira, 1 de março de 2017

MAQUIAVEL PEDAGOGO

ou ministério da reforma psicológica
Título original: Machiavel pédagogue ou Le Ministère de la réforme psychologique
Autor: Pascal Bernardin
Tradução: Alexandre Müller Ribeiro
Editora: Ecclesiae e Vide Editorial
Assunto: Controle social – Psicologia - Educação
Edição: 1ª
Ano: 2013
Páginas: 159


Sinopse: Uma revolução pedagógica está em curso no mundo inteiro. Ela é conduzida por especialistas em Ciências da Educação que, formados todos nos mesmos meios revolucionários, logo dominaram os departamentos de educação de diversas instituições internacionais: Unesco, Conselho da Europa, Comissão de Bruxelas e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essa revolução pedagógica visa impor uma “ética voltada para criação de uma nova sociedade” e a estabelecer uma sociedade intercultural.
A nova ética não é outra coisa senão uma sofisticada reapresentação da utopia comunista. A partir de uma mudança de valores, de uma modificação das atitudes e comportamentos, bem como de uma manipulação da cultura, pretende-se levar a cabo a revolução psicológica e, ulteriormente, a revolução social.
Inúmeros pais e educadores, testemunham, estupefatos, a revolução em curso. Interrogam-se sobre as profundas mutações que de forma acelerada vêm ocorrendo em nosso sistema educativo. Porém, nenhum governo vem à público esclarecer os fundamentos ideológicos dessas constantes reformas no ensino e tampouco se preocupam em apresentar, de forma clara, as coerências e os objetivos dos métodos adotados.
Mas ainda que tudo nos pareça muito obscuro, podemos encontrar todas as respostas na filosofia da revolução pedagógica que se expõe, em termos explícitos, nas publicações dos organismos internacionais como a Unesco, a OCDE, o Conselho da Europa, a Comissão de Bruxelas e tantas outras. Apoiando-se sobre textos oficiais desses organismos, Pascal Bernardin mostra detalhadamente que o objetivo prioritário da escola atual não é mais possibilitar aos alunos uma formação intelectual e muito menos fazê-los adquirir conhecimentos elementares. O que se pretende com a redefinição do papel da escola é torná-la nada mais do que o instrumento de uma revolução cultural e ética destinada a modificar os valores, as atitudes e os comportamentos das pessoas em escala mundial. As técnicas de manipulação psicológica, que não se distinguem muito das técnicas de lavagem cerebral, estão sendo utilizadas de forma maciça. Naturalmente, os alunos são as primeiras vítimas; porém, os educadores e também o pessoal administrativo – diretores, pedagogos e até mesmo inspetores – não estão sendo poupados.
Essa revolução silenciosa, antidemocrática e totalitária, quer fazer dos povos meras massas ignorantes e totalmente submissas à classe governante. Ela ilustra, de maneira exemplar, a filosofia manipuladora e ditatorial que tem abrigo na chamada Nova Ordem Mundial. Tal filosofia é imposta por meio de ações sutis e indiretas, porém poderosíssimas, gerando resultados catastróficos à inteligência humana.
Portanto, o que o leitor verá exposto neste livro é alto terrivelmente sério. Trata-se de uma análise minuciosa de tudo aquilo que está exposto nos documentos oficiais dos mais célebres organismos internacionais. E, embora documentos públicos, causa estranhamento o silêncio mortal que paira sobre eles. Certamente porque quando lidos, revelam-se uma verdadeira síntese do que é a escravidão.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

NOTAS PARA A DEFINIÇÃO DE CULTURA

Título original: Notes towards the definition of culture
Autor: T. S. Eliot (1888-1965)
Tradutor: Eduardo Wolf
Assunto: Ensaio filosófico
Editora: É Realizações
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 144
Sinopse: “Tenho observado com crescente ansiedade a trajetória da palavra cultura nos últimos anos. Pode nos parecer natural e significativo que, durante um período de destruição sem paralelo, essa palavra viesse a ter uma importante função no vocabulário jornalístico. Seu papel é dividido com a palavra civilização. Neste ensaio, não busquei de modo algum determinar a fronteira entre os significados dessas duas palavras, pois cheguei à conclusão de que qualquer tentativa nesse sentido somente poderia resultar em uma distinção artificial, peculiar à obra, distinção essa que o leitor teria dificuldade em reter e que, após fechar o livro, provavelmente o abandonaria com uma sensação de alívio. Com efeito, usamos assaz frequentemente uma palavra em um contexto no qual a outra quadraria igualmente bem; há outros contextos em que uma palavra obviamente é adequada e a outra não; e não creio que isso deva causar embaraço. Existem obstáculos inevitáveis o suficiente nessa discussão sem que se ergam outros desnecessários.” T. S. Eliot.

Conteúdo do livro: O próprio T. S. Eliot nos dá os detalhes do que trata o livro. Tanto melhor, pois assim não corremos o risco de escrever alguma impropriedade.
Diz Eliot: “No começo de meu primeiro capítulo, busquei distinguir e relacionar os três principais usos da palavra e chamar a atenção para o fato de que, quando usamos o termo em um desses três modos, devemos estar atentos para os demais. A seguir, tentei expor a relação essencial entre cultura e religião, e deixar claras as limitações da palavra relação como uma expressão dessa ‘relação’. A primeira asserção importante é que nenhuma cultura surgiu ou se desenvolveu a não ser acompanhada por uma religião: de acordo com o ponto de vista do observador, a cultura aparecerá como o produto da religião, ou a religião como o produto da cultura.
Nos três capítulos seguintes, discuto o que me parecem ser três importantes condições para a cultura. A primeira dessas é a estrutura (não apenas planejada, mas em desenvolvimento) orgânica, de tal modo que promova a transmissão hereditária de cultura dentro da própria cultura: e isso requer continuidade de classes sociais. A segunda é a necessidade de a cultura ser analisável, do ponto de vista geográfico, em culturas locais: isso levanta o problema do ‘regionalismo’. A terceira é o equilíbrio entre unidade e diversidade na religião – ou seja, universalidade da doutrina e particularidade do culto e da devoção. O leitor deve ter em mente que não pretendo explicar todas as condições necessárias para que uma cultura floresça; discuto três que chamaram minha atenção em particular. Deve lembrar-se igualmente de que não ofereço um conjunto de indicações para a produção de uma cultura. Não estou afirmando que, ao começar a produzir essas ou outras condições adicionais, podemos confiantemente esperar que melhoremos nossa civilização. Afirmo apenas que, até onde se pode alcançar minha observação, é improvável que haja grande civilização onde que que essas três condições estejam ausentes.
Os dois últimos capítulos fazem uma modesta tentativa de desembaraçar a cultura da política e da educação.
Assim, uma nova civilização está sempre em construção: o estado de coisas que desfrutamos hoje ilustra o que acontece com as aspirações de cada época por um futuro melhor. A questão mais importante que podemos perguntar é se existe um modelo permanente pelo qual podemos comparar uma civilização com outra, e através do qual podemos prever o progresso ou o declínio de nossa própria.
Caso sejamos bem-sucedidos, ainda que em parte, em responder tal questão, devemos ficar alertas contra a ilusão de tentar produzir tais condições com vistas a melhorar nossa própria cultura. Pois quaisquer que sejam as conclusões definitivas a emergirem deste estudo, uma delas certamente é a seguinte: a cultura é algo ao qual não podemos ambicionar deliberadamente. Ela é o produto de uma pletora de atividades.
De resto, devemos buscar a melhoria da sociedade, do mesmo modo como buscamos melhorar como indivíduos em questões particulares relativamente menores. Não podemos dizer: ‘Devo transformar-me em uma pessoa completamente diferente’; podemos dizer apenas: ‘Vou abandonar este mau hábito e tentar adquirir aquele bom’. Do mesmo modo, a respeito da sociedade somente podemos dizer: ‘Devemos tentar aperfeiçoá-la quanto a este ou àquele aspecto em particular, em que o excesso ou a ausência é evidente; devemos tentar incluir simultaneamente em nossa visão tantas coisas, de maneira a podermos evitar, ao consertar algo que estava errado, estragar alguma outra coisa’. Até mesmo isso é a expressão de uma aspiração maior do que podemos efetivamente alcançar: pois é tanto – ou mais – em virtude do que alcançamos aos poucos, sem compreender ou prever as conseqüências, que a cultura de uma época difere daquela de sua antecessora.”

Sobre o autor:

Thomas Stearns Eliot (St. Louis, 26 de setembro de 1888 — Londres, 4 de janeiro de 1965) foi um poeta modernista, dramaturgo e crítico literário britânico-norte-americano. Em 1948, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.
Eliot nasceu nos Estados Unidos, mudou-se para a Inglaterra em 1914 (então com 25 anos) e tornou-se cidadão britânico em 1927, com 39 anos de idade. Sobre sua nacionalidade e sua influência na sua obra, T.S. Eliot disse:
"My poetry wouldn’t be what it is if I’d been born in England, and it wouldn’t be what it is if I’d stayed in America. It’s a combination of things. But in its sources, in its emotional springs, it comes from America."
[Minha poesia não seria o que é se eu tivesse nascido na Inglaterra, e não seria o que é se eu tivesse permanecido nos Estados Unidos. É uma combinação de coisas. Mas, nas suas fontes, na sua força emocional, ela vem dos Estados Unidos.]


domingo, 1 de janeiro de 2017

MOBY DICK

Nota preliminar: Ao final do texto e dos comentários você poderá assistir ao filme completo.

Título original: Moby Dick
Autor: Herman Melville (1819-1891)
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
Assunto: Romance
Editora: Cosac Naify
Edição: 1ª
Ano: 2008
Páginas: 656


Sinopse: Publicado em 1851, o livro traz o relato de um marinheiro letrado, Ishmael, sobre a última viagem de um navio baleeiro de Nantucket, o Pequod, que parte da costa leste dos Estados Unidos rumo ao Pacífico Sul, onde encontra o imenso cachalote branco que, no passado, arrancara a perna do vingativo capitão Ahab. Ao longo de 135 capítulos, Herman Melville explora diversos gêneros literários para compor sua história, da narrativa de viagens ao teatro shakespeareano, do sermão à poesia popular, passando pela descrição científica e a meditação filosófica.


Resumo da narrativa: Moby Dick era o nome de uma famosa baleia branca que nenhuma expedição de arpoadores conseguia pegar.

Ishmael, o herói da história, talvez fosse o próprio Melville num romance autobiográfico. Ele acerta com o capitão Ahab, do navio Pequod, uma expedição de caça às baleias. Mas o capitão quer especialmente capturar Moby Dick, pois na última escaramuça com o monstro ele não a apanhou e anda teve a perna amputada. Seu objetivo de vida, agora, era vingar-se e matá-la. Ismael se hospeda num hotel à beira do porto, pois o navio vai zarpar na manhã do outro dia. Entra de repente no quarto um selvagem, nascido em uma ilha dos mares do sul, e que fará também parte da tripulação. O homem, frente a um ídolo, começa a fazer invocações e esconjuros, assustando o pobre Ishmael.

Apesar da aparência, o selvagem Queequeg era pessoa de bom coração e logo fez amizade com o jovem. Os dois embarcam no velho baleeiro, em busca de baleias e aventuras.

A tripulação do Pequod era constituída de homens de todas as partes do mundo, mas as personagens mais interessantes eram os três arpoadores: Queequeg Tashtego, da raça índia, e Dagoo, um gigantesco negro.

Os homens somente foram ver o capitão Ahab, quase sempre recluso, muitos dias após a partida. Este, com voz grave, prometeu um dobrão de ouro, que pregara no mastro, para aquele que primeiro avistasse a baleia branca.

Ainda não tinham visto Moby Dick, mas apareceu uma baleia enorme, embora não tão grande quanto a procurada. Homens correm para as lanchas, mais ágeis, e o marinheiro Stubb a mata com um poderoso golpe de arpão.

Naquela noite, Stubb festejou devorando um enorme bife de baleia morta. Enquanto isso, o velho cozinheiro negro, cheio de superstições, dirigia-se com invocações aos tubarões, para afastá-los, pois o cheiro da baleia morta os atraíra às dúzias. No outro dia o tombadilho parecia ter se transformado num enorme açougue. A baleia foi toda esquartejada e cortada em grandes tiras. Seu óleo foi guardado em tonéis.

Depois de mais de um ano de navegação, o capitão Ahab teve notícias de Moby Dick por um capitão que tivera seu braço arrancado quando tentara matá-la. Ela agora estava próxima.

E lá estava ela, branca, imponente, com o corpo cheio de arpões, que ela arrebentara. Melville, no seu romance, por vezes compara a baleia ao leviatã, ao demônio, ao poder, ao mal que acompanha a humanidade em constante luta.

Depois de três dias de caça e várias lanchas naufragadas, com a morte dos marujos por tubarões atentos, aconteceu o impossível. Moby Dick perdeu de vez a paciência e jogou-se com toda força e velocidade contra o navio, partindo-o ao meio. Era a condenação dos marinheiros.

Todos morreram, inclusive o capitão. O índio Queequeg fizera para si um caixão, pedindo que, se morresse em combate, Ishmael o jogasse ao mar naquele artefato. Pois foi este caixão que Ishmael conseguiu ver, ao ser arremessado ao mar quando do choque do navio com a baleia. Nadou até ele e vagou à deriva até ser recolhido pelo navio "Raquel". Os tubarões o acompanharam, mas nada fizeram. Ishmael foi o único sobrevivente. A luta contra Moby Dick, a baleia branca, terminara de forma trágica.


Comentários: Faço aqui um breve comentário, mais no intuito de divulgar a obra entre aqueles que não leram, ou leram na juventude e deixaram de sorver o vinho armazenado em velhos odres, o melhor de todos. Ler o livro de Herman Melville, “Moby Dick” depois de tantos anos, é uma grande aventura para a alma. Sim, o livro fala mesmo é de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos. É atualíssimo, não obstante a sua narrativa ser um tanto antiquada. Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.

As personagens principais não coincidentemente recebem nomes bíblicos. Ishmael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome à personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Acab, personagem casado com Jezabel, “o que era mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os que foram antes dele” (1Reis 16:30), dá nome à segunda personagem em hierarquia de importância. Jezabel era aquela que matava os profetas do Senhor. Elias, diante de Ahab e de todo o povo, pergunta: “até quando coxeareis entre dois pensamentos?” (1Reis 18:21) Ahab, a personagem, era coxo, pois o Leviatã havia lhe devorado uma das pernas.

É evidente, para quem conclui a leitura, que Ahab é a velha personalidade de Ishmael que precisava morrer para renascer, sendo Ismael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma. O título do Epílogo não deixa margem à dúvida: “E só eu escapei para contar-te”, citação extraída no Livro de Jó. Na página 204 de Moby Dick podemos ler: “Considerai tudo isso, e voltai-vos depois para essa verde, suave e docílima terra; considerai os dois, o mar e a terra: não descobris estranha analogia com algo dentro de vós? Pois assim como esse pavoroso oceano rodeia a terra verdejante, assim também na alma do homem jaz uma Taiti insular, cheia de paz e alegria, mas cercada de todos os horrores da existência semiconhecida. Deus te guarde! Não desatraques dessa ilha, não podes voltar jamais”. Claro que Melville refere-se à dialética entre o Eu e o Inconsciente, para usar a terminologia junguiana.

Em outra parte, à página 406/407, podemos ler: “Oh! Meus amigos, mas isso é matar o homem! E todavia isso é vida. Pois nem bem nós, mortais, com longas labutas extraímos do vasto corpo desse mundo seu escasso mas valioso espermacete; nem bem, com fatigada paciência, nos limpamos das sujeiras desse mundo e aprendemos a viver aqui, nos puros tabernáculos da alma; nem bem fazemos isso, quando – ‘Lá esguicha ela’ – jorra a alma, e lá velejamos para combater outro mundo e atravessar de novo a velha rotina da vida jovem”. Esse trecho deixa claro que a pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

Outra personagem que precisamos sublinhar é Queequeg, a sombra primitiva e canibal de um cristão civilizado, o canibal caçador de cabeças que as vendia empalhadas, chegando a dar uma delas para Ismael. Cabeças cortadas e empalhadas por um canibal primitivo são apenas uma maneira que o autor encontrou para mostrar o quando vale a função pensamento e mesmo o intelecto, desgrudado de sua plenitude com as demais funções psicológicas, como vemos no mundo moderno. Em outra parte do Moby Dick, duas cabeças de baleia são penduradas no navio, quais esfinges. Ainda uma vez notamos a preocupação de Melville em denunciar a unilateralidade do intelecto no mundo ocidental. Queequeg é a Sombra de Ishmael porque com ele divide o leito, fato estranhíssimo para um homem viril se não for considerado um recurso narrativo, para mostrar o conteúdo psicológico do mesmo. Dormimos com a nossa sombra agarrada às nossas costas, para o nosso desconforto e a nossa redenção. Em outra parte, Queequeg e Ismael são amarados com cordas para cumprir tarefas arriscadas, de tal sorte que um só poderia viver se o outro também vivesse, formando uma unidade. Um dos capítulos, o de número X, dá ênfase a Queequeg, que é chamado de forma sintomática de “Um amigo íntimo”.

O início da narrativa começa em uma noite escura e fantasmagórica, recurso também usado por Dante para iniciar o seu grande poema de iniciação – “A Divina Comédia” – para relatar os fatos da alma. Os tempos também são bíblicos: três anos de viagem, três dias de caçada, tempo que se liga diretamente a terceiro dia da paixão e morte de Cristo, quando ocorre a sua ressurreição. O autor, por esse recurso, também faz da sua aventura a máxima aventura do Cristianismo. Ele é salvo no final por um salva-vidas na forma de ataúde. A morte é seguida por ressurreição. Ismael é resgatado pelo veleiro “Raquel”, alusão àquela que não queria ser consolada, pois que seus filhos já não viviam, personagem do livro de Jeremias.

E o paralelo com o livro de Jonas mais do que salta aos olhos. Esse livro profético mantém interesse especial por dois motivos. O primeiro é que é uma narrativa estranhíssima e, a rigor, não é exatamente profético. Jonas foge de uma missão dada por Deus, mas dela não consegue se livrar. O segundo porque é o primeiro instante na história da Revelação que a Justiça divina é suplantada por sua Misericórdia. Por isso é um dos livros capitais da Bíblia. A metáfora do homem que por três dias entra no ventre da baleia e depois é devolvido a terra é uma prefiguração da história de Cristo, de sua morte e ressurreição.

A pesca da baleia e seus navios foram magistralmente utilizados por Melville como metáfora. O baleeiro, por exemplo, tem um forno, que pode ser considerado uma espécie de inferno das profundezas, onde ardem as almas penadas.

É notável a ausência de personagens femininas, que aparecem apenas em esposas, mães e filhas ausentes, e também nos nomes de outras embarcações (“Raquel”, “A Virgem”). Mas o elemento feminino é sobretudo sublinhado pelo oceano, as profundezas da função sentimento tão pouco desenvolvida nas pessoas do tipo pensamento. As cabeças empalhadas de Queequeg mostram a compensação da consciência unilateral do autor, assim como o mar profundo a grandeza exaltada da função feminina por excelência, a sentimento. É uma epopéia masculina.

É óbvio que a leitura do livro pressupõe um certo conhecimento da Bíblia, sem o qual muitas passagens não terão sentido e muito da sutiliza psicológica não poderá ser percebida. Moby Dick é um evangelho escrito na forma de romance (Nivaldo Cordeiro).

Sentido da obra:

 O livro fala de iniciação mística, da morte e ressurreição pensadas nos termos cristãos.

Ahab é a velha personalidade de Ishmael que precisava morrer para renascer, sendo Ishmael o único que poderia sobreviver à louca aventura da alma.

A pesca da baleia é uma metáfora para o crescimento espiritual e que a baleia pode ela mesma ser identificada com a própria alma, posto que é um símbolo da transformação do inconsciente.

As personagens principais recebem nomes bíblicos. Ishmael, o filho de Abraão com a serva de Sara, Agar, dá nome à personagem principal e narrador, o único que sobrevive à aventura heróica. Ahab, personagem casado com Jezabel, dá nome à segunda personagem em hierarquia de importância.

Todo o texto fala de uma única pessoa, o próprio autor, e para compreender a epopéia é preciso lê-lo de trás para frente, mas isso não é possível numa primeira vez. É obra para os espíritos velhos, de todas as idades, sobretudo para quem já passou do meio-dia da vida.


UMA PALHINHA DA OBRA


O SERMÃO [DO PADRE MAPPLE]



O padre Mapple levantou-se e, com a voz tranqüila de uma modesta autoridade, ordenou às pessoas espalhada que se agregassem. “Prancha de estibordo[1], alí! Correr a bombordo[2]! – E da prancha de bombordo, a estibordo! À meia-nau! À meia-nau!”
Ouviu-se entre os bancos um leve rumor de botas pesadas de marinheiros, e um ainda mais leve arrastar de sapatos femininos, e tudo retornou ao silêncio e todos os olhares se fixaram no pregador.
Ele fez uma pequena pausa; depois se ajoelhou no púlpito, cruzou as suas grandes mãos morenas sobre o peito, levantou os olhos fechados e fez uma oração com tão profunda devoção que parecia estar ajoelhado e rezando no fundo do mar.
Assim terminando, com tom de voz solene e prolongado, como o dobro contínuo do sino de um navio navegando no meio de um nevoeiro – com o mesmo tom ele começou a entoar o seguinte hino, passando nas últimas estrofes à explosão de uma retumbante exultação e alegria:
As costelas e os terrores na baleia
Cobriram-me de uma escuridão lúgubre,
Enquanto as ondas iluminadas pelo Senhor
Arrastavam-me para o fundo do abismo.

Eu vi a boca aberta do inferno,
Com as suas dores e pesares infinitos;
Só quem sentiu pode saber –
Oh! Afundei-me no desespero!

Na minha angústia chamei pelo Senhor,
Que mal podia crer que fosse meu,
Ele prestou ouvido às minhas queixas,
E a baleia me pôs em liberdade.

Acudiu sem demora em meu socorro
Como se transportado por um golfinho radiante;
Brilhou na água como um raio
O rosto do meu Libertador terrível e divino.

No meu canto sempre vou recordar
Esta hora terrível e magnífica;
A glória é do meu Senhor,
Sua é a força, e é Sua a misericórdia.

            Quase todos cantaram juntos este hino, que se elevou acima do estrondoso temporal. Uma pausa se seguiu: o pregador começou a folhear lentamente a Bíblia e por fim, pousando sua mão sobre a página certa, disse: “Bem-amados companheiros de bordo, vamos nos prender ao nó do último versículo do primeiro capítulo de Jonas – ‘Deparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas’.[3]
            “Companheiros de bordo, este livro que só tem quatro capítulos – quatro meadas – é uma das menores tramas da poderosa corda das Escrituras. E, no entanto, que profundidades da alma a linha-d’água de Jonas sonda! Quão prenhe é a lição que nos ensina o profeta! Como é nobre o cântico do interior do ventre da baleia! Como ondula, tão tempestuosamente solene! Sentimos a inundação lançar-se sobre nós; com ele tocamos algas do fundo das águas; as plantas marinhas e todo o limo do mar nos cercam! Mas qual é a lição que o livro de Jonas nos ensina? Companheiros de bordo, é uma lição de dois fios; uma lição para todos nós, pecadores, e uma lição para mim, como piloto do Deus vivo. Falando aos pecadores, é uma lição para todos nós, porque é uma história do pecado, da insensibilidade, dos temores subitamente despertos, das punições imediatas, do arrependimento, das orações e, finalmente, da libertação e do júbilo de Jonas. Como sucede com todos os pecadores, o pecado desse filho de Amitai [Amati] foi sua desobediência obstinada do mandamento de Deus – não importa qual ou como foi transmitido o mandamento – que Jonas achou difícil de cumprir. De resto, todas as coisas que Deus ordena são difíceis de cumprir – lembrem-se disso – e por isso é mais frequente ouvi-Lo comandar do que tentar nos persuadir. E para obedecermos a Deus temos que desobedecer a nós mesmos; é nessa desobediência de nós mesmos que consiste a dificuldade de obedecer a Deus. [grifos meus]
            “Com este pecado da desobediência em si, Jonas ainda escarnece de Deus, tentando Dele fugir. Ele acha que um navio feito por homens pode leva-lo a regiões onde Deus não reina, mas apenas os Capitães deste mundo. Erra pelo cais do Jope, procurando um navio que vá para Társis. Talvez haja aí um significado até agora despercebido. Tudo índica que Társis não pode ter sido outra cidade senão a moderna Cádiz. Essa é a opinião dos homens cultos. E onde fica Cádiz, companheiros de bordo? Cádiz fica na Espanha. Era o lugar mais distante de Jope que Jonas podia alcançar naqueles tempos antigos, quando o Atlântico era um oceano quase desconhecido. Porque Jope, a moderna Jafa, companheiros de bordo, fica na costa da Síria, no extremo oriente do Mediterrâneo; e Társis, ou Cádiz, mais de duas mil milhas a oeste de lá, logo no estreito de Gibraltar. Bem vedes que Jonas, companheiros de bordo, procurava fugir de Deus pelo mundo. Que homem miserável! Oh! Que vergonhoso e digno de todo o desprezo! Com o chapéu amarrotado e olhos culpados, fugindo de Deus; andando a esmo entre as embarcações, como um vil ladrão, tentando atravessar os mares. Sua aparência é tão desarrumada e tão reprovável que, se naquela época existissem policiais, Jonas teria sido preso como suspeito antes de chegar ao convés. É evidente que é um fugitivo! Sem bagagem, nem uma caixa de chapéu, mala ou sacola de viagem – sem amigos para acompanha-lo até o cais para dizer adeus. Por fim, depois de muita busca furtiva, encontra um navio para Társis recebendo os últimos itens de seu carregamento; e, quando sobe a bordo para falar com o Capitão no camarote, todos os marinheiros param de içar as mercadorias para prestar atenção ao olhar maligno do forasteiro. Jonas percebe, mas em vão procura conforto e confiança; em vão esboça um sorriso infeliz. Uma intuição muito forte assegura aos marinheiros que o homem não pode ser inocente. Em tom jocoso, mas falando sério, um sussurra a outro - ‘Jack, ele roubou uma viúva’; ou ‘Joe, marca esse cara; ele é bígamo’; ou, ‘Harry, meu filho, acho que ele é adúltero que fugiu da prisão de Gomorra, ou talvez um dos assassinos desaparecidos de Sodoma’. Um outro corre para ler o cartaz que está pregado no pilar do cais onde o navio está ancorado, oferecendo quinhentas moedas de ouro pela prisão de um parricida, e descrevendo a pessoa. Ele lê, olha Jonas e volta para o cartaz, enquanto todos os seus companheiros de bordo então se juntam em volta de Jonas, prontos para agarrá-lo. Assustado, Jonas treme, e, por mais que finja ter coragem, só consegue parecer ainda mais covarde. Não quer se confessar suspeito: mas mesmo isso já é coisa muito suspeita. Faz o melhor que pode; e, quando os marinheiros percebem que aquele não é o homem procurado, deixam-no passar, e ele vai para o camarote.
            “’Quem está aí?’/ grita o Capitão, atarefado na escrivaninha, arrumando os papéis para a Alfândega. – ‘Quem está aí?’ Oh! Como uma pergunta tão simples pode perturbar tanto Jonas! Por um instante ele quase foge outra vez. Mas logo se reanima. ‘Procuro uma passagem neste navio para Társis; quando tenciona partir, senhor?’ Até então o atarefado Capitão ainda não tinha olhado para Jonas, embora o tivesse bem diante de si; mas, quando ouve aquela voz cavernosa, lança-lhe um olhar perscrutador. ‘Zarpamos com a próxima maré’. Respondeu lentamente, sem tirar os olhos de Jonas. ‘Tão tarde, senhor?’ – ‘Cedo o bastante para um homem honesto ir como passageiro.’ Ah, Jonas, outra punhalada! Mas ele procura rapidamente despistar o Capitão. ‘Vou zarpar com o senhor’, - diz ele -, ‘A passagem, quanto custa? – Pago já!’ Pois está escrito, companheiros de bordo, como se fosse algo a não ser esquecido nessa história, ‘que ele pagou, pois, sua passagem’ antes de a embarcação partir. E, naquele contexto, isso é muito significativo.
            “Ora, o Capitão de Jonas, companheiro de bordo, era um daqueles homens cujo discernimento detecta um crime onde houver, mas cuja cobiça e leva a denunciar apenas os que não têm dinheiro. Neste mundo, companheiros de bordo, o Pecado que pagar sua passagem pode viajar tranquilamente, e sem passaporte; ao passo que a Virtude, se for pobre, é detida em todas as fronteiras. Por isso, o Capitão de Jonas se prepara para avaliar o peso da bolsa de Jonas, antes de julgá-lo abertamente. Cobra-lhe o triplo de uma passagem comum; e Jonas, concorda. O Capitão sabe, então, que Jonas é um fugitivo; mas ao mesmo tempo resolve ajudar uma fuga que deixa atrás de si moedas de ouro. Mas, quando Jonas lhe apresenta a bolsa, suspeitas prudentes assolam o Capitão. Faz soar cada moeda, para ver se não há nenhuma falsa. Não é um falsário, murmura, inscrevendo Jonas no livro de bordo. ‘Mostre-me minha cabine, senhor’, diz Jonas, ‘estou cansado da viagem; preciso dormir.’ ‘Bem se vê’, diz o Capitão, ‘o quarto é ali.’ Jonas entra, quer trancar a porta, mas não tem nenhuma chave na fechadura. Ao ouvi-lo mexer ali, o Capitão ri baixinho para si mesmo e murmura algo sobre a porta dos condenados nunca poder ser trancada pelo lado de dentro. Vestido e empoeirado como está, Jonas se joga no leito e percebe que o teto da pequena cabine quase bate em sua testa. O ar é estagnado. E Jonas está ofegante. Então, naquele cubículo exíguo, abaixo do nível do mar, Jonas tem o pressentimento do sufoco de quando a baleia o aprisionará em suas entranhas mais estreitas. [grifos meus]
            “Uma lâmpada presa pelo eixo na parede balança um pouco no quarto de Jonas; e o navio, adernando para o cais com o peso do último carregamento, a lâmpada, chama e tudo mais, embora com mínimos movimentos, ainda mantêm uma obliquidade permanente em relação ao quarto; embora, na verdade, mantendo-se reta, a lâmpada só evidencie a inconstância dos planos entre os quais está suspensa. A lâmpada intimida e assusta Jonas; o fugitivo, bem-sucedido até aquele momento, deitado em seu leito, não encontra repouso para os seus olhos atormentados. Mas aquela contradição da lâmpada o amedronta cada vez mais. O chão, o teto e a parede estão errados. ‘Oh! É assim de mim, ela queima verticalmente; mas as cabinas de minha alma estão todas tortas!’”
            “Assim como alguém que depois de uma noite bêbada de festa se apressa em ir para cama, ainda cambaleante, mas com a consciência aflita, como as arremetidas de um cavalo de corrida romano, quanto mais lhe fere o aço das esporas; assim como alguém que nesse estado miserável ainda vira e revira em sua angústia vertiginosa, pedindo a Deus para que o aniquile até que passe a crise; e enfim, em meio a esse torneio de tormentos que sente, ele é acometido de uma letargia profunda, a mesma que acomete um homem que se esvai em sangue, porque a consciência é a ferida, e não existe nada que a estanque; assim, depois de penoso debater-se no leito, o prodígio de tamanha desgraça arrasta Jonas para afoga-lo nas profundezas do sono.
            “E agora a hora da maré chegou; o navio para Társis solta os seus cordames; e do cais deserto, sem um adeus, ele desliza, inteiro inclinado, para o mar. Aquele, meus amigos, é o primeiro navio de contrabandistas registrados que se conhece! O contrabando era Jonas. Mas o mar se revolta; ele não suportará o fardo perverso. Rebenta um temporal horrível, e o navio está prestes a afundar. Mas agora que o contramestre chama a todos para esvaziá-lo; que caixas, pacotes e frascos são jogados sobre a amurada; que o vento uiva, os homens gritam, e todas as tábuas trovejam com os passos dos marinheiros sobre a cabeça de Jonas; como toda essa turba enfurecida, Jonas dorme o seu sono abominável. Não vê o céu negro e o mar em fúria, a madeira estalar não sente, e pouco escuta ou percebe o avanço distante da poderosa baleia, que desde já, de boca aberta, singra os mares em sua busca. Sim, companheiros de bordo, Jonas tinha descido para o costado do navio – para um leito na cabine, como contei, e dormia profundamente. Mas o mestre assustado vai para ele e grita em seu ouvido inerte. ‘O que significa isso, ó, dorminhoco! Levanta-te!’. Arrancado de sua letargia por esse grito horrível, Jonas põe-se de pé, e cambaleando até o convés agarra-se a um brandal para observa o mar. Mas naquele momento, como se fosse uma pantera saltando pela amurada rebenta sobre ele o vagalhão. Ondas e mais ondas se atiram sobre o navio e, não encontrando escoamento ao rugirem de popa a proa, quase afogam os marinheiros ainda a bordo. E, quando a lua branca mostra seu rosto amedrontado por entre os sulcos profundos da escuridão acima, Jonas vê aterrorizado o gurupés[4] se erguendo, apontando alto, para em seguida precipitar-se novamente em direção às profundezas atormentadas.
            “Terrores e mais terrores dilaceram sua alma. Por todos os seus atos amedrontados, o fugitivo de Deus é agora mais do que reconhecido. Os marinheiros observam-no; suspeitam dele cada vez mais, e por fim, para terem uma prova da verdade, submetendo toda a questão aos Céus, tiram a sorte para saber por causa de quem esta tormenta tão poderosa foi lançada sobre eles. A sorte cai sobre Jonas; enfurecidos, começam então a assalta-lo com perguntas. ‘Qual é a tua ocupação? De onde vens? De qual país? De que povo?’ Mas observem, meus companheiros de bordo, o comportamento do pobre Jonas. Os marinheiros ansiosos apenas lhe perguntaram quem é ele e de onde vem; no entanto, eles não recebem apenas uma resposta a tais perguntas, mas também a uma pergunta que não tinham feito; a resposta não solicitada é forçada pela mão pesada de Deus, que cai sobre ele.
‘”’Sou um hebreu’, grita – e logo depois – ‘Temo a Deus, Senhor do Céu, criador do mar e da terra.’ ‘Temes a Deus, ó, Jonas? Bem podias ter temido a Deus antes! Sem demora, faz uma confissão plena; apesar de os marinheiros estarem cada vez mais estarrecidos, mesmo assim se apiedam. Pois quando Jonas, ainda sem suplicar a misericórdia de Deus, conhecendo muito bem a obscuridade de sua deserção – pois bem, quando o desgraçado Jonas lhes pede que o agarrem e o atirem ao mar, porque sabe que por sua causa a tempestade caíra sobre eles; os marinheiros, com pena, se afastam dele e buscam um outro meio de salvar o navio. Mas tudo em vão; o vendaval revoltante uiva ainda mais alto; então, com uma mão erguida para invocar Deus, com a outra os marinheiros, não sem relutância, seguram Jonas.
            “Vejam agora Jonas, erguido como uma âncora, ser jogado ao mar; quando instantaneamente uma calmaria untuosa vem do leste, e o mar fica imóvel, enquanto Jonas afunda levando consigo o vendaval, deixando a água serena atrás de si. Ele desce no coração rodopiante dessa comoção desgovernada e mal percebe que cai em direção à boca escancarada que o aguarda; e a baleia cerra os dentes de marfim, como inúmeros ferrolhos brancos, sobre sua prisão. Então Jonas orou ao Senhor de dentro da barriga do peixe. Mas observem sua oração e aprendam uma lição importante. Por mais que tenha pecado, Jonas não lamenta nem se lastima pedindo sua libertação. Ele sente que seu terrível castigo é justo. Deixa que Deus decida sobre sua libertação, contentando-se com isso, que apesar de toda a dor e angústia ele ainda eleva o pensamento a Seu templo sagrado. Eis aqui, companheiros de bordo, o genuíno e fiel arrependimento; sem clamor de perdão, mas grato pelo castigo. E como a conduta de Jonas agradou a Deus, vê-se por sua libertação do mar e da baleia. Companheiros de bordo, não ponho Jonas diante de vocês para que lhe copiem o pecado, mas sim como modelo de arrependimento. Não pequem; mas se o fizerem, arrependam-se como Jonas.”
            Enquanto proferia essas palavras, os uivos da clamorosa tempestade que desabava do lado de fora pareciam acrescentar mais força ao pregador, que, descrevendo a tempestade no mar de Jonas, parecia ele próprio atirado à tempestade. Seu peito arfava como se num maremoto; seus braços agitados pareciam a fúria dos elementos; e os trovões que saiam da sua fronte escura e a luz saltando de seus olhos faziam com que todos os seus simples ouvintes olhassem para ele com um temor súbito, que lhes era estranho.
            Eis que então seu olhar se aliviou, enquanto ele silenciosamente virava as páginas do Livro outra vez; e, por fim, de pé, imóvel, de olhos fechados, por um momento, pareceu comungar com Deus e consigo.
            Mas novamente se inclinou para a frente dirigindo-se às pessoas, baixou a cabeça, e com um aspecto da mais funda porém digna humildade proferiu estas palavras:
            “Companheiros de bordo, Deus colocou apenas uma das mãos sobre vós; mas as duas pesam sobre mim. Ensinei-vos, com a luz esfumaçada que pode meu entendimento, a lição que Jonas ensina a todo pecador; portanto a vós, e ainda mais a mim, pois sou um pecador maior que vós. Com que alegria eu desceria do alto deste mastro e me sentaria aí nas escotilhas onde vós estais sentados, ficaria escutando como vós ficais, enquanto um de vós recita para mim a terrível lição que Jonas me ensina, como um piloto do Deus vivo. Como sendo ungido piloto-profeta, ou orador das coisas verdadeiras, e escolhido do Senhor para fazer soar essas verdades indesejáveis nos ouvidos da vil Nínive, Jonas, temendo a hostilidade que suscitaria, fugiu de sua missão e tentou escapar a seu dever e a seu Deus embarcando em Jope. Mas Deus está em toda parte; a Társis ele jamais chegou. Como vimos, Deus veio até ele na baleia e o engoliu, tragando-o nos golfos da perdição, e arrastou-o por quedas rápidas ‘até o coração do mar’, onde redemoinhos das profundezas o sugaram milhares de braças para baixo, e “as algas se enrolaram em sua cabeça’, e todo o mundo marinho de infortúnios transcorreu sobre ele. Mas mesmo então, além de qualquer sonda – ‘nas vísceras do inferno’ -, quando a baleia encalhou nos ossos do fundo do oceano, mesmo então, Deus escutou o arrependimento do profeta engolido quando ele gritou. Então Deus falou com o peixe; e da frieza tiritante e do negrume do mar a baleia subiu na direção do agradável e caloroso sol, e de todas as delícias do ar e da terra, e ‘vomitou Jonas na terra firme’; quando a palavra do Senhor veio pela segunda vez; e Jonas alquebrado e abatido – seus ouvidos, como duas conchas do mar ainda ressoando o inumerável murmúrio do oceano -, Jonas cumpriu as ordens do Todo-Poderoso. E qual era a ordem, companheiros de bordo? Pregar a Verdade diante da Falsidade! Isso mesmo!
            “Esta, companheiros de bordo, esta é aquela outra lição; e ai do piloto de Deus vivo que a desdenha. Ai de quem o mundo distrai do dever do Evangelho” Ai de quem tenta verter azeite sobre as águas, quando Deus as fermenta em tempestade! Ai de quem tenta agradar em vez de consternar! Ai daquele para quem um nome bom significa mais do que a bondade! Ai de quem, neste mundo, não receia a desonra! Ai de quem não for verdadeiro, mesmo que a falsidade seja a salvação! Sim, ai de quem, como diz o grande Piloto Paulo, prega aos outros ao mesmo tempo em que também está perdido!”
            Por uns instantes recolheu-se a uma reflexão; depois levantou o rosto novamente, mostrando uma profunda alegria nos olhos, e proclamou com muito entusiasmo: “Mas, oh! Companheiros! A estibordo [à direita] de todo infortúnio é certo que existe uma alegria; e o ápice dessa alegria é tanto mais alto quanto mais profundo é o infortúnio. Não são mais altos os topes de mastro do que profundas as quilhas? A alegria – uma alegria elevada, elevadíssima, do coração – é para aqueles que opõem sua inexorável personalidade aos deuses e aos comodoros orgulhosos deste mundo. A alegria é para aquele cujos braços fortes o sustentam quando a nau deste mundo traiçoeiro e ignóbil lhe afunda sob os pés. A alegria é para aquele que não cede à mentira e que mata, queima e destrói o pecado, mesmo que tenha que procura-lo sob as togas dos Senadores e Juízes. A alegria – a alegria suprema – é para aquele que não conhece outra lei ou senhor a não ser Deus, nem outra pátria que o céu. A alegria é para aquele a quem nem as ondas do mar nem as turbulências da multidão conseguem desviar da Quilha dos Tempos. E a alegria e a delícia eterna são para aquele que ao deitar-se pode dizer com seu último alento – Ó, Pai! – que conheço especialmente por Tua verga – mortal ou imortal, aqui eu morro. Esforcei-me para ser Teu, mais do que do mundo ou de mim próprio. Contudo, isso não é nada: deixo a eternidade só para Ti; pois o que é o homem, para viver tanto quanto seu Deus?”
            Não disse mais nada, mas, fazendo lentamente uma benção, cobriu seu rosto com as mãos e assim ficou, de joelhos, até que todos partiram, deixando-o sozinho no local.

Texto transcrito do livro “Moby Dick”, de Herman Melville, tradução Alexandre Barbosa de Souza, editora Cosacnaify. (Anatoli Oliynik)


JONAS
Este livro não é uma profecia, mas a história de determinada missão de Jonas a Nínive. Ainda se discute sobre seu gênero literário que parece ser didático: O Espírito Santo, por meio do autor inspirado, narra uma história fictícia para ensinar que Deus governa todas as criaturas inclusive os homens, mesmo quando estes não querem obedecer, e que as profecias de castigos futuros visam principalmente a conversão dos interessados mesmo que estes sejam pagãos, além de outros muitos ensinamentos que vão aparecendo no desenrolar da história.
Jonas, 1
1. A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas, filho de Amitai, nestes termos:
Jonas é apresentado como verdadeiro profeta, de modo que o não-cumprimento de suas ameaças contra Nínive vem mostrar que essas predições feitas em nome de Deus em tom absoluto, na realidade, estavam condicionadas por Deus à conversão ou obstinação dos ninivitas.
2. Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e profere contra ela os teus oráculos, porque sua iniqüidade chegou até a minha presença.
3. Jonas pôs-se a caminho, mas na direção de Társis, para fugir do Senhor. Desceu a Jope, onde encontrou um navio que partia para Társis; pagou a passagem e embarcou nele para ir com os demais passageiros para Társis, longe da face do Senhor.
Jonas, por um mesquinho espírito nacionalista toma o caminho oposto para não pregar em uma cidade pagã, apesar da ordem de Deus. Quantas vezes os nossos preconceitos e o respeito humano nos tem levado a imitar este mau exemplo de Jonas desobedecendo a ordens claras de Deus?
4. O Senhor, porém, fez vir sobre o mar um vento impetuoso e levantou no mar uma tempestade tão grande que a embarcação ameaçava espedaçar-se.
5. Aterrorizados, os marinheiros puseram-se a invocar cada qual o seu deus, e atiraram no mar a carga do navio para aliviarem-no. Entretanto, Jonas tinha descido ao porão do navio e, deitando-se ali, dormia profundamente.
Profundo sono: ótima imagem da insensibilidade do pecador que foge de Deus e se coloca na atitude de não tomar conhecimento de advertência alguma.
6. Veio o capitão e o despertou: Dorminhoco! Que estás fazendo aqui? Levanta-te e invoca o teu Deus, para ver se ele se lembra talvez de nós e nos livre da morte.
7. Em seguida disseram os marinheiros entre si: Vinde e tiremos à sorte para sabermos quem é a causa deste mal. Lançaram a sorte e esta caiu sobre Jonas.
8. E perguntaram-lhe: Tu, por quem nos acontecem estes males, dize-nos qual é a tua profissão? De onde vens? A que país e a que raça pertences?
9. Sou hebreu, respondeu ele. Adoro o Senhor, Deus dos céus, que criou o mar e todos os continentes.
10. Ficaram então aqueles homens possuídos de grande temor, e disseram-lhe: Por que fizeste isto? Pois tinham compreendido, pela própria declaração de Jonas, que este fugia para escapar à ordem do Senhor.
11. E disseram-lhe: Que te havemos de fazer para que o mar se acalme em torno de nós? Porque o mar tornava-se cada vez mais ameaçador.
12. Tomai-me, disse Jonas, e lançai-me às águas, e o mar se acalmará. Reconheço que sou eu a causa desta terrível tempestade que vos sobreveio.
13. Os homens remavam para ver se conseguiam ganhar a costa, mas em vão, porque o mar se embravecia cada vez mais contra eles.
14. Então invocaram o Senhor: Senhor, disseram eles, não nos façais perecer por causa da vida deste homem, nem nos torneis responsáveis pela vida deste homem que não nos fez mal algum. Vós, ó Senhor, fizestes como foi do vosso agrado.
15. E, pegando em Jonas, lançaram-no às ondas, e a fúria do mar se acalmou.
16. Tomada de profundo sentimento de temor para com o Senhor, a tripulação ofereceu-lhe um sacrifício, acompanhado de votos.

Jonas, 2

1. O Senhor fez que ali se encontrasse um grande peixe para engolir Jonas, e este esteve três dias e três noites no ventre do peixe.
2. Do fundo das entranhas do peixe, Jonas fez esta prece ao Senhor, seu Deus:
3. Em minha aflição, invoquei o Senhor, e ele ouviu-me. Do meio da morada dos mortos, clamei a vós, e ouvistes minha voz.
4. Lançastes-me no abismo, no meio das águas e as ondas me envolviam. Todas as vossas vagas e todas as vossas ondas passavam sobre mim.
5. E eu já dizia: fui rejeitado de diante de vossos olhos. Acaso me será dado ainda rever vosso santo templo?!
6. As águas envolviam-me até a garganta, o abismo me cercava. As algas envolviam-me a cabeça.
7. Eu tinha descido até as raízes das montanhas, até a terra cujos ferrolhos eternos (se fecharam) sobre mim.
8. Quando desfalecia a minha vida, pensei no Senhor; minha oração chegou a vós, no vosso santo templo.
9. Os que servem a ídolos vãos abandonam a fonte das graças.
10. Eu, porém, oferecerei um sacrifício com cânticos de louvor, e cumprirei o voto que fiz. Do Senhor vem a salvação.
11. Então o Senhor ordenou ao peixe, e este vomitou Jonas na praia.

Jonas, 3

1. A palavra do Senhor foi dirigida pela segunda vez a Jonas nestes termos:
2. Vai a Nínive, a grande cidade, e faze-lhe conhecer a mensagem que te ordenei.
3. Jonas pôs-se a caminho e foi a Nínive, segundo a ordem do Senhor. Nínive era, diante de Deus, uma grande cidade: eram precisos três dias para percorrê-la.
4. Jonas foi pela cidade durante todo um dia, pregando: Daqui a quarenta dias Nínive será destruída.
5. Os ninivitas creram (nessa mensagem) de Deus, e proclamaram um jejum, vestindo-se de sacos desde o maior até o menor.
6. A notícia chegou ao conhecimento do rei de Nínive; ele levantou-se do seu trono, tirou o manto, cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza.
7. Em seguida, foi publicado pela cidade, por ordem do rei e dos príncipes, este decreto: Fica proibido aos homens e aos animais, tanto do gado maior como do menor, comer o que quer que seja, assim como pastar ou beber.
8. Homens e animais se cobrirão de sacos. Todos clamem a Deus, em alta voz; deixe cada um o seu mau caminho e converta-se da violência que há em suas mãos.
9. Quem sabe, Deus se arrependerá, acalmará o ardor de sua cólera e deixará de nos perder!
10. Diante de uma tal atitude, vendo como renunciavam aos seus maus caminhos, Deus arrependeu-se do mal que resolvera fazer-lhes, e não o executou.

Jonas, 4

1. Jonas ficou profundamente indignado com isso e, muito irritado, dirigiu ao Senhor esta prece: Ah, Senhor, era bem isto que eu dizia quando estava ainda na minha terra! É por isso que eu tentei esquivar-me, fugindo para Társis,

Jonas se angustiou ...: pois temia passar por falso profeta ou que a palavra de Deus caísse e descrédito.

2. porque sabia que sois um Deus clemente e misericordioso, de coração grande, de muita benignidade e compaixão pelos nossos males.
3. Agora, Senhor, toma a minha alma, porque me é melhor a morte que a vida.
4. O Senhor respondeu-lhe: (Julgas que) tens razão para te afligires assim?
5. Então saiu Jonas da cidade e fixou-se a oriente da mesma cidade. Fez uma cabana para si e lá permaneceu, à sombra, esperando para ver o que aconteceria à cidade.
6. O Senhor Deus fez crescer um pé de mamona, que se levantou acima de Jonas, para fazer sombra à sua cabeça e curá-lo de seu mau humor. Jonas alegrou-se grandemente com aquela mamoneira.
7. Mas, no dia seguinte, ao romper da manhã, mandou Deus um verme que roeu a raiz da mamona, e esta secou.
8. Quando o sol se levantou, Deus fez soprar um vento ardente do oriente, e o sol dardejou seus raios sobre a cabeça de Jonas, de forma que o profeta, desfalecido, desejou a morte, dizendo: Prefiro a morte à vida.
9. O Senhor disse a Jonas: (Julgas que) fazes bem em te irritares por causa de uma planta? Jonas respondeu: Sim, tenho razão de me irar até a morte.
10. Tiveste compaixão de um arbusto, replicou-lhe o Senhor, pelo qual nada fizeste, que não fizeste crescer, que nasceu numa noite e numa noite morreu.
11. E então, não hei de ter compaixão da grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil seres humanos, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e uma inumerável multidão de animais?..
Embora conhecesse a misericórdia divina, não conseguiu compreender o perdão concedido, até que Deus lhe explicou por meio do crescimento e morte da hera (vv. 9-11)

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O livro de Jonas foi transcrito da Bíblia Católica Ave Maria (http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/jonas/#.Uy26QoXlrs4) e as notas em azul, foram transcritas da Bíblia Católica, tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo, Edição Barsa, 1965. (Anatoli Oliynik).


[1] Lado direito do navio.
[2] Lado esquerdo do navio.
[3] Na tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, edição Barsa, 1965, o texto é encontrado em Jon 2, 1: Oração e salvação de Jonas “Ao mesmo tempo preparou o Senhor um grande peixe, que engoliu a Jonas: E Jonas estava no ventre do peixe três dias e três noites.”
[4] Mastro colocado obliquamente na proa de um navio.
 
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