segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O CORAÇÃO DAS TREVAS

BIS

Título original: The heart of darkness
Autor: Joseph Conrad (1857-1924)
Tradução: Celso M. Paciornik
Editora: Iluminuras
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 2ª
Ano: 2002
Páginas: 114

Sinopse: O livro escrito em 1899, apresenta a narrativa de Charlie Marlow, um alter ego de Joseph Conrad, sobre suas experiências nos confins da África. Marlow descreve os sombrios horrores enfrentados no coração da selva africana, como a morte iminente e a bárbara selvageria dos nativos. O objetivo de Marlow nesse ambiente hostil é encontrar o Sr. Kurtz, personagem envolto em certo misticismo. No decorrer de sua jornada, os caracteres da personalidade de Kurtz são apresentados, alçando paulatinamente esse personagem à uma condição divina. Entretanto, quando o encontro entre os dois finalmente acontece sobra certa decepção com o desfecho, dadas as expectativas criadas no decorrer da viagem.

Interpretação da obra:
Para compreender a obra de Joseph Conrad, é preciso saber interpretar os aspectos simbólicos fartamente utilizados por ele. Se você ler a obra dogmaticamente, não vai compreender nada.
Joseph Conrad usa a África como uma metáfora da condição humana, da qual não estão excluídos os abismos e os horrores. Ele penetra num mundo estranho, quase surrealista.
O que Joseph Conrad quer nos contar é o dilema moral do ser humano e o caos do mundo em que vivemos. Mostra-nos a sociedade enlouquecida criada por Kurtz, que assume nesta sociedade, o papel de Deus, decidindo quem deve e quem não deve morrer. Nos mostra, ainda, que o ser humano vive num mundo concreto, natural e contraditório, onde existem aspectos benignos e malignos, tal qual a natureza que é também potencialmente contraditória e onde se encontram forças de sustentação e forças de repúdio.
O homem não é 100% natureza. Há uma parte nele que não pertence à natureza e que não é humana, mas Divina (o espírito que corresponde ao intelecto, à sabedoria e ao conhecimento instantâneo da realidade). O intelecto (não é a mente ou a razão) faz a ligação do homem material com o mundo transcendente, onde está a Verdade. E nós humanos somos prisioneiros dessa tensão que é a essência da vida humana. Platão dizia que o homem é o intermediário entre o animal e o anjo.
Quando Kurtz retorna para a “civilização”, à beira da morte, desvela um pouco mais do mistério de tudo e emite sua expressão final antes de se quedar sem vida: “o Horror! o Horror”, ele prenuncia o julgamento de sua alma na Terra. Marlow já não é o mesmo, frente à iluminação final de Kurtz.
(Prof. José Monir Nasser)

Conclusão:
Os mistérios em torno dos personagens de Conrad simbolizam a impenetrabilidade misteriosa da alma humana, e as suas complicações.
O autor:

Jósef Teodor Konrad Korzeniowski nasceu em 1857, na cidade de Berdichev, na Ucrânia, uma região que foi parte da Polônia, mas na época estava sob controle russo.

Palavras de Joseph Conrad, talvez um dos mais vicerais escritores que a literatura ocidental já produziu.

“O objetivo que tento atingir, pelo poder da palavra escrita, é fazer você escutar, fazer você sentir e acima de tudo, fazer você ver. Isto, e nada mais, é tudo”.
“Vivemos como sonhamos - sozinhos”

sábado, 1 de novembro de 2014

NOVO CAMINHO NO BRASIL MERIDIONAL: A PROVÍNCIA DO PARANÁ

Título original: Pioneering in South Brazil
Autor: Thomas Plantagenet Bigg-Wither (1845-1890)
Tradução: Temístocles Linhares
Assunto: Documentos brasileiros
Editora: José Olympio
Edição: 1ª
Ano: Publicado originalmente em 1878 em Londres. No Brasil, em 1974.
Páginas: 420

Comentário preliminar: Esta obra levou noventa e seis anos, repito, noventa e seis anos para ser publicada no Brasil. Um exemplo de completo descaso pela cultura e pelo conhecimento. No meu entender deveria fazer parte da grade escolar desde e sua publicação original em 1878. Hoje, 2014, ninguém conhece a obra, salvo aqueles que estiveram diretamente envolvidos nos trabalhos gráficos e alguns poucos eruditos que ainda sobrevivem no país. Este é o Brasil da cultura da sapiência infusa. O horror! O horror! sob todos os aspectos. A questão não é tão somente cultural literária, mas de indolência para o trabalho no serviço público. É hilária a descrição, logo nas páginas iniciais do livro a experiência vivida pelo autor na alfândega, nos correios, no Hotel Cintra na cidade do Rio de Janeiro. (Anatoli Oliynik)

Sinopse: Publicado originalmente em Londres em 1878 esta obra apresenta a preciosa percepção da natureza de um Brasil ainda selvagem. Mais do que um relato de uma expedição à floresta Atlântica, suas vividas imagens de abertura de picadas, manobra de canoas sobre rios encachoeirados, violência das caçadas, revelam as impressões gravadas na retina de um olhar inquieto e inteligente, sensível à magnificência da flora, da fauna e da geologia paranaense. O livro também cumpre a função de apresentar a cultura de um país escravagista, suscetível aos interesses das oligarquias dominantes, em que a população ainda sobrevive submetida à natureza, mas já transita rumo à sua modernidade.

Histórico

O começo de tudo: A Descoberta
Tudo começou no século XIX, quando os ingleses investiam muito no Brasil. Mercadorias de toda a espécie eram comercializadas entre o Brasil e a Inglaterra e, ao mesmo tempo, os ingleses faziam grandes empréstimos ao governo de nosso país.
Essa relação econômica era chamada de "cooperação". Por isso, o Brasil tinha que colaborar, dar sua contribuição. Assim em 1872, uma expedição contratada pela "Paraná and Mato Grosso Survey Expedition", chegou ao país com o objetivo de projetar a construção de uma grande estrada de ferro ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, passando pelo Norte do Paraná.
O jovem engenheiro inglês Thomas P. Bigg-Wither era um dos membros da expedição e percorreu, entre 1872 e 1875, os sertões desconhecidos do Paraná realizando os serviços de engenharia. Mesmo trabalhando, observou "as belezas e vantagens da terra descoberta". Quando voltou à Inglaterra, em 1876, Bigg-Wither proferiu uma conferência na Real Sociedade de Geografia Britânica. Alí falou das potencialidades do fértil Vale do Rio Tibagi, que deixou os financistas de Londres interessados. A conferência despertou tanto interesse que o engenheiro foi convidado a se associar à Real Sociedade, que era uma entidade muito rigorosa na escolha de seus membros.
Passados dois anos, em 1878, Bigg-Wither publicou o livro "Pioneering in South Brazil", em que relatou três anos que passou nas florestas e campos do Paraná. Nas entrelinhas, o autor chama a atenção para a nova terra em seus aspectos positivos e negativos. Na época, uma ou duas tentativas de colonização inglesa haviam fracassado. Mas o engenheiro alertava as autoridades sobre a necessidade de disciplinar a imigração, recebendo não somente homens capazes, mas homens que viessem para cá fazer o que sabiam fazer.
A publicação provavelmente despertou ainda mais os investidores ingleses, que apesar do fracasso das experiências anteriores de colonização planejaram e executaram empreendimentos mais amadurecidos, como aquele que veio a Londrina chefiado por Lord Lovat. O livro do engenheiro teve a apresentação escrita por Jonh Murray, da Albermale Street, um editor muito famoso na época. (Fonte: Câmara Municipal de Cambé)
Trecho do livro:
“Na excitação e entusiasmo do momento, saí da trilha e galopei até o salto de uma elevação, ali ficando pelo espaço de 5 minutos, o peito dilatado e os braços estendidos, a aspirar a brisa magnifica que vinha varrendo aquelas planícies, procedentes do Atlântico. Senti-me como um prisioneiro solto de sua masmorra. Por treze meses eu não sabia o que era sentir um sopro de ar em meu rosto, nem ver mais longe do que podia alcançar a minha voz. Gritei de prazer e os meus auxiliares pensaram que eu tivesse enlouquecido de repente. Pouco depois, quando a minha exuberância de espírito tinha sido um pouco atenuada, entreguei-me a um gozo mais sereno do novo ambiente. Fiquei surpreso quando pensei no tempo que pude suportar vivendo na floresta tropical que, comparada ao campo, eu via agora como uma espécie de inferno terrestre.”

Sobre o autor: Thomas Plantagenet Bigg-Wither nasceu em 1845 no castelo de Tangier Park. Engenheiro e escritor inglês de formação naturalista, aos 26 anos embarca rumo ao Brasil. Durante três anos participa de expedições pelo interior do Paraná. Em 1875, retornando à Inglaterra, engaja-se na construção da Estrada de Ferro Central de Bengala, Índia. Dois anos bastam para que assuma a direção técnica do projeto. A inclemência climática local acaba por fragilizar seu organismo. Outro fato também colabora para minar sua saúde, um de seus filhos cai vítima de grave enfermidade. Sem demora, Bigg-Wither embarca no navio Assam, mas não chega ao seu país natal. Morre em alto-mar, em 1890, aos 44 anos, deixando diversos escritos em que se lê sua profunda reverência à natureza. (Cristianne Rodrigues Smaniotto).


O Paraná segundo Bigg-Wither (I)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 24 de novembro de 1974

O professor Temístocles Linhares, 69 anos, diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, não poderia inaugurar de forma mais inteligente as atividades editoriais da Universidade Federal do Paraná, do que com a edição em português de "Novo Caminho no Brasil Meridional": A Província do Paraná", que o engenheiro inglês Thomas Plantagenet Bigg-Wither (1845-1890) publicou em 1878, através do editor John Murray, de Londres, e onde descreve suas experiências de três anos na vida em florestas e campos do Paraná entre 1872/75. Como tivemos a alegria de fazer há mais de um ano o primeiro registro jornalístico sobre a iniciativa do professor Linhares em traduzir e conseguir o [editar] o notável documentário sobre a vida em nosso Estado há um século, hoje, com o livro (co-edição da Livraria José Olympio Editora, 419 páginas, nota biográfica de Newton Carneiro, 21 ilustrações e um mapa, Cr$ 50,00) já ao alcance de todos os interessados, apesar da pequena edição (1.500 exemplares, dos quais 800 vendidos ao Governo do Estado) julgamos oportuno a divulgação mais ampla, em especial aos milhares de leitores de O ESTADO, que não quiserem conhecer o maçudo volume, de alguns de seus trechos mais interessantes. Filho de nobres, Bigg-Wither veio para o Paraná há 102 anos, como um dos expedicionários contratados para o Paraná And Mato Grosso Survey Expedition. Tinha 26 anos e sua permanência aqui estendeu-se de junho de 1871 a abril de 1875, e desta sua estada resultou um depoimento em proporções que Bigg-Wither examina, criteriosamente, em seu livro, de forma que há 96 anos, quando a obra foi publicada teve grande repercussão na Inglaterra. Acredita o professor Linhares que foi a sua leitura que fez o romancista Thomas Hardy (1840-1928) autor de livros famosos ("Judas, O Obscuro", "Longe da Multidão Insensata" etc) a, em "Tess of the D'Urbevilles" publicado em 1891, portanto 13 anos depois do livro de Bigg-Wither, colocar uma personagem , Angel Claire que vem participar de uma experiência de colonização no Paraná. Há quase 20 anos, analisando este livro de Hardy do qual não existe tradução no Brasil o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, levantou dúvidas com relação ao significado da palavra Paraná, o que iniciou uma polêmica que levaria Temístocles a empreender profundas pesquisas, encontrando então uma edição de "Pionering in South Brazil", de Bigg-Wither, agora, um século depois, finalmente revelado aos leitores brasileiros. Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:

Veiculo: Estado do Paraná
Caderno ou Suplemento: Almanaque
Coluna ou Seção: Tablóide
Página: 8
Data: 24/11/1974


A publicação original em dois volumes:
(imagens da Internet)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

DIDASCÁLICON Da arte de ler



Título original: Didascalicon de Studio Legendi
Autor: Hugo de São Vitor (1096-1141)
Tradução: Antonio Marchionni
Editora: Vozes
Assunto: Ensaio Filosófico (Filosofia Medieval)
Edição: 1ª
Ano: 2001
Páginas: 294

Sinopse: Um mergulho na cultura da Idade Média: este é o Didascálicon da arte de ler, um dos livros medievais mais lidos nos tempos atuais. Por ele, o leitor sintoniza-se como o universo de pensamentos humanos e divinos, que habitavam as escolas e as mentes estudantis do século XII. Este escrito do Mestre Hugo de São Vitor, pequena enciclopédia do saber e da sabedoria da época, emana e mantém um frescor, que conforta e vivifica o homem moderno.

Paris vê chegar, no começo de 1100, onda de jovens vindos de todos os cantos de uma Europa finalmente pacificada, que vivia um novo florescimento das cidades, após as invasões bárbaras dos séculos V a VIII e após o período feudal e dos séculos IX e X.

Era um momento cultural único, quando o papel vindo da China, o velino em pergaminhos finos, a tinta dos árabes, a minúscula carolíngia, a adoção da escrita em itálico e a caneta com ponta de feltro facilitavam nas oficinas dos copistas a compilação de livros, que eram encomendados por bibliotecas, juristas, mercadores e senhores. Este florescer do século XII em artes e escolas marca, segundo o pedagogo Ivan Illich, o advento da “cultura livresca”, que vem até os nossos dias, quando o livro está sendo substituído pelo vídeo.

Hugo de São Vitor é um dos atores desta “revolução cultural do século XII”. Havia na França três escolas renomadas: a de Chartres, a de Notre-Dame e, a mais famosa, a da Abadia de São Vitor, na margem esquerda do Sena. Delas nascerá, em 1215, a Universidade de Paris. Hugo encarna o espírito da Escola de São Vitor e era conhecido pelos estudantes como filósofo, teólogo, exegeta, místico, gramático.

Vendo tantos jovens desejosos de estudar, o Mestre Hugo quis oferecer-lhes uma introdução ao saber, um livro que apresentasse as várias disciplinas e auxiliasse o estudante a montar o seu próprio itinerário intelectual. Nasce assim, em 1127, o Didascálicon da arte de ler, resumo dos saberes seculares e divinos da época e exortação acerca do que ler, como ler, em qual ordem ler.

Trata-se, na história, do primeiro livro endereçado aos estudantes. Pela primeira vez na história as “ciências mecânicas”, isto é, o trabalho manual, passam a fazer parte da reflexão filosófica. Atento ao desenvolvimento histórico dos homens, Hugo conjuga material e espiritual, tradição e novidade, corpo e alma, temporal e eterno, Ciência e Sapiência.

Era este o ar existencial e sublime que se respirava nas escolas, ruas e cantinas estudantis de Paris. Esta é a brisa que o livro traz aos leitor de hoje, quase uma saudade da casa.

Sobre o autor: Hugo de São Vitor nasceu na Saxônia, que hoje faz parte do território da Alemanha, no ano de 1096. Ainda jovem sentiu a vocação religiosa e mudou-se para Paris com a intenção de ingressar no Mosteiro de São Vitor, no qual residiu até a sua morte em 1141. Ele viveu, portanto, na primeira metade do século dos anos 1100.

A época em que viveu Hugo de São Vitor foi uma das mais importantes da história da civilização ocidental, pois foi nela que começaram a se organizar as nações que hoje fazem parte da Europa.

Mil e cem anos antes da época de Hugo, quando nasceu Jesus Cristo, não existiam Inglaterra, França, Alemanha, Portugal nem tantos outros países da Europa. Na época de Cristo a Europa, o norte da África e o Oriente Médio constituíam um todo conhecido como Império Romano. A ausência de fronteiras e as facilidades de comunicação dentro de um império tão grande muito auxiliou para que o cristianismo se propagasse mais facilmente por todo o mundo civilizado daquele tempo.

Entretanto, a partir dos anos 400 e durante vários séculos que se seguiram, muitas hordas de bárbaros provenientes da Europa Oriental e do interior da Ásia passaram a invadir o território do Império Romano que acabou aos poucos se esfacelando. Embora tivesse havido algumas épocas de calma, as invasões e as desordens que resultaram delas só puderam começar a ser definitivamente controladas, possibilitando a organização daquelas que são as atuais nações da Europa, na época de Hugo de São Vitor. Entre o ano 1100, próximo ao nascimento de Hugo, e o ano 1300, próximo à morte de Santo Tomás de Aquino, houve um extraordinário renascimento da civilização na Europa em todos os aspectos, incluindo a vida religiosa, a teologia e a educação. Pertencem a este período da história as vidas de São Francisco de Assis e de São Domingos.

No início deste período, no ano 1100, São Vitor era o nome de uma capelinha situada nos arredores de Paris e freqüentada por pessoas que vinham, longe do tumulto da cidade, consagrar algum tempo à meditação e à oração. Em 1108, com o fim de melhor poder dedicar-se às coisas de Deus, um sacerdote professor da escola anexa à Catedral de Notre Dame, chamado Guilherme de Champeaux, transferiu-se para lá junto com vários de seus alunos. Mesmo residindo em São Vítor, Guilherme continuou sendo procurado, não só pelo seu exemplo, como também pelos seus ensinamentos, que não deixou de ministrar. Assim surgiu ali o mosteiro de São Vítor.

Quando Hugo pediu para ser admitido no mosteiro de São Vitor, Guilherme já não residia mais nele. Tinha sido promovido a bispo e havia deixado outros em seu lugar, encarregados do governo do mosteiro. Algum tempo depois a tarefa de organizar a escola de Teologia anexa ao mosteiro seria confiada a Hugo de São Vitor.

Raras vezes na história humana uma escolha pôde ter sido tão feliz. No mosteiro organizava-se uma grande biblioteca que daria acesso a Hugo ao que de melhor havia sido escrito pela tradição cristã. A fama de São Vitor já havia atravessado as fronteiras e espalhava-se por toda a Europa; ela trazia ao mosteiro, de todas as partes, estudantes de notável talento, como tinha sido o caso do próprio Hugo, que para lá se tinha dirigido proveniente do Sacro Império Germânico, de Ricardo de São Vitor, que ali chegou proveniente da Escócia, e de Pedro Lombardo, que vinha do norte da Itália encaminhado por São Bernardo. Já é coisa rara que um talento da envergadura de Hugo, homem de inteligência brilhante, santidade manifesta e notável vocação docente se veja diante de tantos e tão excelentes recursos materiais e humanos; mais raro ainda é que alguém nestas condições se veja encarregado de, além de ensinar, organizar também a escola. Esta tarefa suplementar obrigou Hugo adicionalmente a explicar aos alunos como se deveria estudar, aos professores como se deveria ensinar e à escola como se deveria organizar, e isto não para obter algum diploma, que naquela época ainda de nada valiam, mas para, a partir de um sólido conhecimento das Sagradas Escrituras e das obras dos Santos Padres, empreenderem a busca da santidade. O conjunto da obra de Hugo de São Vitor mostra que ele elaborou um sistema de Pedagogia em que o estudo de torna um instrumento de ascese em perfeita consonância com os ensinamentos do Novo Testamento a respeito da fé, da graça e da oração, da necessidade da graça para a prática das virtudes e dos frutos que se esperam do desenvolvimento da vida espiritual.

Hugo de São Vítor mostrou, em suma, como se organiza o estudo, o ensino e a escola para que, sem deixar de ser uma escola, nem perder nenhuma das características que tradicionalmente se atribuem a uma escola, ela tenha como meta a santidade. Esta meta não é algo acrescentado ou justaposto ao que já seria a escola, mas é aquilo que dita a própria essência de sua organização e de seus métodos.

Hugo mostrou ainda que se isto pode ser possível, é porque esta é a verdadeira e legítima finalidade da escola. São as outras escolas, e não esta, que representam um desvio do verdadeiro ideal do ensino.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O CAPOTE

Título original:
Autor: Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852)
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
Assunto: Novela
Edição:
Ano: 2010
Páginas: 224


Sinopse: Escrita em 1842, é considerada a obra prima da literatura russa. É a história de um pobre funcionário público que, a grandes custos, consegue comprar um novo capote e é roubado no mesmo dia em que o inaugura. Segue-se então, uma via-crúcis pela burocracia russa. Ao invés do capote, ele consegue apenas uma grande bronca de um “alto funcionário”, interessado em impressionar um amigo. Isso, unido a uma gripe que ele contrai por estar sem capote, e, portanto, desprotegido do terrível frio de São Petersburgo, leva-o à morte. Seu fantasma então passa a puxar o capote de todas as pessoas que se aventuram a sair à noite. É um conto que fala muito sobre os fatores sociais da Rússia do século XIX, satirizando todo aquele sistema.

Comentários de Arlete Cavalieri: A obra de Nikolai Gogol constitui não apenas um marco na literatura russa do século XIX, mas uma espécie de matriz para seus rumos futuros. O aspecto inovador no plano da linguagem, estilo e gêneros narrativos, a construção de enredos e de personagens inusitados, o trágico e o cômico que se fundem a elementos de terror e humor, a análise satírica da sociedade de seu tempo, conferem aos textos gogolianos uma vibração particular, rica de nuances, que continua a desafiar o leitor contemporâneo.


Posfácio de Paulo Bezerra: “O Capote” (1842) é a obra mais famosa de Gogol e uma das narrativas breves mais conhecidas de toda a literatura universal. Haviam contado a Gogol a anedota de um pequeno funcionário que morre após perder, no primeiro dia de caça, a espingarda que adquirira após anos de sacrifício. O autor toma essa história como tema e a transforma na história de Akáki Akákievitch.


A construção de “O Capote” incorpora um procedimento muito semelhante das imagens das personagens mitológicas. Depois de introduzir a personagem, que apresenta como um ser indefinido (“um funcionário”) acrescenta-lhe elementos quase desprovidos de relevância (“Não se pode dizer que esse funcionário fosse lá essas coisas”), desenhar-lhes as configurações físicas que muito o assemelha a uma máscara mortuária, e introduzir a categoria funcional como um atributo congênito da personagem, o narrador entre no tema efetivamente da narrativa: o nome. O nome Akáki representa a tradução da essência da personagem. Sua repetição em cadeia – Akáki-aká-aká-kiaká-kiakákiaká – se constitui num exercício de gagueira, a exemplo do que acontece com a fala da própria personagem, que usa uma linguagem quase desprovida de articulação, como se o homem ainda não tivesse criado uma linguagem estruturada.


O nome Akáki personifica uma impossibilidade de articulação do discurso, uma impossibilidade de comunicação, o que não se dá por opção dos pais e padrinhos, mas por força de uma fatalidade mítica: “essa é a sina dele. Já que é assim, o melhor é que ele tenha o mesmo nome do pai. O pai se chamava Akáki, então que o filho também se chame “Akáki” – conclui a mãe. Completa-se esse quadro de fatalidade com a reação do menino, que, ao receber o nome de batismo, chora e faz careta “como se pressentisse que viria a ser conselheiro titular”, um doa cargos mais baixos da burocracia russa. Assim, ao azar do nome junta-se o azar de uma profissão que constitui o alvo de toda sorte de zombarias por parte dos que tomam por Cristo aqueles que não reagem. Como se não bastasse o nome, acrescenta-se-lhe ainda o sobrenome Bachmátchkin (derivado de bachmák, isto é, sapato, algo para ser pisado), e temos a imagem perfeita do eterno ofendido. Portanto, a fatalidade que mais tarde acometerá a personagem obedece a um determinismo de tipo mítico, pois, como afirma o narrador da história, “tudo aconteceu por absoluta necessidade e outro nome seria inteiramente impossível”.


Assim, vemos Akáki Akákievitch arrastando em sua gagueira a condição de humilhado e ofendido, totalmente incapaz de esboçar qualquer reação, tão identificado com o nome e a profissão que seus colegas de repartição chegam a imaginá-lo nascido já conselheiro titular, de uniforme e calvo. Sua única existência se mede pelas folhas que copia. Corre a pena sobre o papel em branco com o mesmo carinho e a mesma habilidade com que o homem apaixonado usa a magia da mão carinhosa para compor páginas inumeráveis de poesia sobre o corpo macio da mulher. Sua relação com o trabalho chega a ser erótica, pois, na sua existência carente, as folhas saciadas por sua letra lhe preenchem plenamente a carência amorosa recalcada. Não tendo oportunidade nem necessidade de companhia feminina, consegue substituí-la por algumas letras favoritas, com as quais sente um prazer semelhante ao que um homem sentiria com seu tipo preferido de mulher.


Seu trabalho é de tal forma alienante que acaba por coisificá-lo; afundado no ramerrão da cópia, anula-se para qualquer outro tipo de atividade, e, quando um diretor quer recompensá-lo dando-lhe um trabalho mais interessante, embora de extrema simplicidade, cobre-se de suor e pede que lhe dêem algo para copiar. Está consumada a coisificação, transformado o amante na coisa amada, Akáki Akákievitch não nascera para escrever nada de si, nascera para copiar e acabara transformando-se em sombra das páginas que copiava.


Akáki Akákievitch leva uma existência de extrema pobreza, que é proporcional à sua indigência lingüística. Por sua vez, essa indigência de linguagem é proporcional à ausência de consciência; não tendo consciência do seu estado de humilhado e por não ter consciência não tem linguagem porque nada tem a expressar –, que está fadado à condição de homem socialmente mudo, que, não tendo como justificar a existência nem direito a nenhuma pretensão, nada pode suscitar a não ser compaixão.


Akáki Akákievitch tenta valer-se da linguagem apenas em dois momentos de sua vida: quando procura combinar com Pietróvitch a confecção do capote, e, após o roubo deste, quando tenta levar um figurão a interceder junto ao chefe de polícia para reaver o capote. Trata-se de dois momentos realmente cruciais em sua vida: a aquisição do capote, que o faz até falar, animar-se, rir diante de uma vitrine, observar um rabo de saia, enfim, comunicar-se com o mundo exterior e assim experimentar a sensação fugaz de um laivo de vida; e a perda do capote, que se traduz no fechamento do curto-circuito comunicativo de sua vida para terminar em um total isolamento. A impossibilidade de articular o discurso implica a impossibilidade de comunicar-se, de socializar-se, o que acarreta fatalmente o silêncio absoluto e a morte.

Comentários do editor do blog: Aristóteles, ao fazer a análise do teatro trágico grego em seu livro “A Poética”, define que as personagens teatrais têm uma hierarquia de poderes. Northrop Frye, a partir desta obra de Aristóteles, sistematizou essa hierarquia das personagens em seu livro “Anatomia da Crítica”. Essas personagens são:

1. Divino
2. Mítico
3. Imitativo alto
4. Imitativo baixo e
5. Irônico inferior.

A personagem classificada como irônico inferior é caracterizada como aquele indivíduo que tem baixo poder de reação frente as circunstâncias ou é um incapaz ou é uma vítima das circunstâncias. De todas as personagens sistematizadas por Northrop Frye, é a mais fraca. Está abaixo da capacidade dos outros. Portanto, é irônica porque ou é deficiente, ou porque é muito pobre, ou porque é prisioneiro de alguém, ou porque é criança. Para as crianças todas as coisas da vida normal são absolutamente terríveis, assustadoras ao extremo, porque aquilo que parece a nós, adultos normais, uma besteira, para as crianças aparenta o maior dos terrores. Aquilo que nós chamamos de educação, é tirar a criança desse terror, é mostrar e ela como é que uma pessoa normal e outros tipos de personagens se comportariam naquela situação.


Assim, podemos classificar Akákis Akákievitch como irônico inferior porque ele é muito pobre, portanto, enquadra-se na classificação. (A. Oliynik)

Sobre o autor: Nikolai Vassílievitch Gógol nasce em 1809, na província de Poltava, atual Ucrânia. Em 1829 muda-se para São Petersburgo e logo publica Serões numa granja perto de Dikanka, reunião de contos inspirados no folclore de sua terra natal. Em 1835 publica mais duas coletâneas: Arabescos e Mírgorod, nesta última incluída a novela Tarás Bulba. No ano seguinte estréia O inspetor geral, sua peça teatral de maior sucesso. Em 1842, após viajar pela Europa, publica a primeira parte do romance Almas mortas. Nesse mesmo ano publica a novela O capote, que exerceria enorme influência sobre diversos escritores russos. Após um período de graves crises existenciais, destrói o manuscrito da segunda parte de Almas mortas, adoece gravemente e, sofrendo constantes delírios, falece em março de 1852.

Sobre o tradutor: Paulo Bezerra estudou língua e literatura russa na Universidade Lomonóssov, em Moscou, e foi professor de teoria da literatura na UERJ e de língua e literatura russa na USP. Livre-docente em Letras, leciona atualmente na Universidade Federal Fluminense. Já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras nos campos da filosofia, psicologia, teoria literária e ficção, destacando-se suas premiadas traduções de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O HOMEM ETERNO

Título original: The Everlasting Man
Autor: Gilbert Keith Chesterton (1874-1936)
Tradução: Almiro Pisetta
Editora: Mundo Cristão
Assunto: Apologética
Edição: 1ª
Ano: 2010
Páginas: 320


Sinopse: 'O homem eterno' reconta a história da humanidade a partir de duas particularidades que complementam: a criatura chamada homem e o homem chamado Cristo. Dividido em duas partes, a obra traça um esboço da humanidade que se instaurou quando ela se tornou cristã.

Comentários do próprio Chesterton: “Este livro precisa de uma nota preliminar para que seu escopo não seja mal entendido. Mais que teológica, a visão é histórica, e não trata diretamente da mudança religiosa que tem sido o principal acontecimento de minha vida, fato sobre o qual já estou escrevendo um volume mais francamente controverso. É impossível, espero, para qualquer católico escrever qualquer livro sobre qualquer assunto, principalmente sobre este assunto, sem mostrar que ele é católico. Mas este estudo não se preocupa especialmente com diferenças entre católicos e protestantes. Boa parte dele dedica-se a muitos tipos de pagãos mais que a qualquer tipo de cristão; e sua tese é que os que dizem que Cristo está no mesmo nível de mitos semelhantes, que o cristianismo está no mesmo nível de religiões similares, só estão repetindo uma fórmula muito envelhecida contestada por um fato muito chocante. Para sugerir isso eu não tive de ir muito além de fatos conhecidos de todos. Não reivindico erudição; e para certas coisas preciso depender, como praticamente já se tornou moda, daqueles que são mais eruditos. Sendo que mais de uma vez divergi do Sr. H.G. Wells [Wells era socialista fabiano. AO] em sua visão da história, é muito mais que justo que eu aqui deva congratular-me como ele pela coragem e imaginação construtiva demonstradas ao longo de sua vasta, variada e profundamente interessante obra [Chesterton está sendo irônico. AO]; mas ainda mais por ele ter afirmado o direito justo do amador de fazer o que puder com os fatos apresentados pelos especialistas.”[i]
O plano deste livro: Há duas maneiras de chegar em casa, e uma delas é ficar por lá. A outra é caminhar e dar a volta ao mundo inteiro até retornarmos ao mesmo lugar. E eu tentei seguir o rastro de uma viagem assim em uma história que escrevi outrora. É, todavia, um alívio passara daquele tópico para outra história que nunca escrevi. Como todos os livros que nunca escrevi, trata-se de longe do melhor livro que jamais escrevi. Ma é muito grande a probabilidade de que nunca venha a escrevê-lo, por isso vou usá-lo aqui de modo de modo simbólico, pois era um símbolo[i] da mesma verdade. Eu o concebi como um romance situado naqueles vastos vales com encostas em declive, como aqueles ao longo dos quais os antigos cavalos brancos de Wessex aparecem esboçados nos flancos das montanhas.[ii] O romance dizia respeito a algum rapaz cujo sítio ou casinha situava-se num desses declives, e ele empreendeu uma viagem em busca de alguma coisa tal como a efígie ou o túmulo de algum gigante. E quando estava a uma boa distância de casa ele olhou para trás e viu o seu próprio sítio e quintal brilhando nitidamente no flanco da montanha, como as cores e quadrantes de um brasão, eram apenas partes de alguma dessas figuras gigantescas, onde ele sempre havia morado, mas que eram demasiado grandes e estavam perto demais para serem vistas por inteiro. Esse, penso eu, é um grande e verdadeiro progresso de qualquer inteligência atual realmente independente; e essa é a idéia deste livro.

Sobre o autor: Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G. K. Chesterton, (Londres, 29 de maio de 1874 — Beaconsfield, 14 de junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, filósofo, desenhista e conferencista britânico.

Era o segundo de três irmãos. Filho de Edward Chesterton e de Marie Louise Grosjean. Casou-se com Frances Blogg. Concluiu os estudos secundários no colégio de São Paulo Hammersmith onde recebeu prêmio literário por um poema sobre São Francisco Xavier. Ingressa na escola de arte Slade School de Londres (1893) onde inicia a carreira de pintura que vai depois abandonar para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Escreveu no Daily News. Nascido de família anglicana, mais tarde converteu-se ao catolicismo em 1922 por influência do escritor católico Hilaire Belloc, com quem desde 1900 manteve uma amizade muito próxima.

Ao falecer deixou todos os seus bens para a Igreja Católica. A sua obra foi reunida em quase quarenta volumes contendo os mais variados temas sob os mais variados gêneros. O Papa Pio XI foi grande admirador de Chesterton a quem conhecera pessoalmente.

Curiosidade: Chesterton era daqueles sujeitos que não conseguem passar despercebido aonde quer que estejam. A irreverência, o bom-humor e a eloqüência, associados a dois metros e nove centímetros de altura e a um peso médio de 140 quilos, transformavam qualquer ambiente; quer uma festa de aniversário infantil ou um acalorado debate com Bertrand Russel.


------------------ Notas de comentários de Chesterton:
[i] Evidências internas sugerem que G.K. Chesterton escreveu o presente livro, publicado em 1925, em resposta à conhecida obra de H.G. Wells, “An Outline of History”, publicada em 1920. Esta obra foi traduzida para o português por Anísio Teixeira [marxista simpatizante do socialismo fabiano. AO] e publicada pela Companhia Editora Nacional, sob o título História universal.

----------------- Notas de Plano do livro:
[i] Objeto físico a que se dá uma significação abstrata / Figura ou imagem que representa alguma coisa. [Koogan-Houaiss]. Portanto, tudo aquilo que seja simbolizado, tem que ter uma relação real e concreta. [AO] [ii] Chesterton está se referindo a figuras como o Uflington White Horse, desenho pré-histórico altamente estilizado, visível na encosta de uma montanha nas cercanias de Oxford. A figura foi recortada na turfa que cobre a montanha, revelando o calcário branco da rocha. Em virtude do ângulo da encosta em que foi desenhado, o cavalo só pode ser visto, parcialmente, por um observador postado no chão. É interessante notas que Chesterton havia escrito, em 1911, The Ballad of the White Horse [A balada do cavalo branco], poema épico sobre os feitos do rei saxão Alfred, o Grande, cujo desfecho se dá na mesma montanha. (N. do T.)


Uflington White Horse - Vista de Satélite

Uflington White Horse - visto a distância
Localização de Oxford

terça-feira, 1 de julho de 2014

HEREGES

Autor: G.K. Chesterton
Tradução: Antônio Emilio Angueth e Marcia Xavier de Brito
Editora: Ecclesiae
Assunto: Filosofia
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 294

Sinopse: Hereges é uma obra em que G.K. Chesterton (1874–1936) esboça a própria filosofia ao identificar os pontos fracos nas filosofias de seus contemporâneos. Um “herege”, explica, é “um homem cuja visão das coisas tem a audácia de diferir da minha”. Sua crítica não se limita à análise de autores específicos. Tem um sentido mais geral. Partindo da análise dos erros de um conjunto heterogêneo de escritores modernos, explica o que considera estar errado com o pensamento do mundo moderno. Publicado em 1905, Hereges abre caminho para Ortodoxia, que surge três anos depois. Ortodoxia apresenta a filosofia de Chesterton no que chama de “conjunto de imagens mentais”. Hereges traz um relato mais analítico das filosofias dos escritores de seu tempo. Isso foi algo provocador. Na biografia de Chesterton, Maisie Ward (1889–1975) comenta sobre a animosidade com que o livro foi recebido. Críticos que tinham boas coisas a dizer sobre os escritos anteriores de Chesterton a respeito de Robert Browning (1812–1889) ou Charles Dickens (1812–1870) ficaram irritados ao perceber que ele voltara a atenção crítica para o que considerava “erros dos autores contemporâneos”.

A idéia central da filosofia chestertoniana está na importância do dogma. Numa era que celebrava o irracionalismo, Chesterton defendeu a razão. Ademais, insistiu que havia uma estreita ligação entre razão e religião. Como observou no capítulo final do livro, as verdades contestadas se transformam em dogmas. Por este ponto de vista, cada pensador é o fundador de um sistema filosófico que pode ser descrito como uma igreja. É por isso que num livro dedicado aos contemporâneos, Chesterton parece demonstrar pouco interesse nos traços pessoais ou nas fraquezas. Para ele, cada escritor era mais bem compreendido pelo exame do que chamava de “visão geral da existência” e, portanto, neste livro, um grupo de pensadores que quase não tinha interesse na religião formal é revelado como inconscientemente religioso.

Desejo que esta primeira tradução de Hereges para a língua portuguesa complemente e aprofunde a compreensão do universo sacramental deste grande autor católico.

Comentários de Ieda Marcondes: Publicado originalmente em junho de 1905, “Hereges” é o primeiro trabalho polêmico importante do jornalista e escritor inglês G.K. Chesterton. Pouco antes disso, ele havia se envolvido numa série de controvérsias com o editor do jornal Clarion, Robert Blatchford ‒ quem, curiosamente, abriu espaço em seu jornal para uma série de respostas do próprio Chesterton. Tais respostas e os seus artigos no jornal Daily News são a matéria-prima principal da visão única de vida que ele apresenta em “Hereges”.

Nascido em 1874, quando a religião e a ética vitoriana já estavam enfraquecidas, Chesterton foi criado em ambiente anglicano, mas, de acordo com o próprio autor, com pouco ou nenhum incentivo à crença ou prática religiosa. Em sua autobiografia, ele define o período de 1892 a 1895 como uma época de pessimismo e desespero, de uma obsessão incontrolável por idéias e imagens horríveis que o levavam a mergulhar cada vez mais fundo em um suicídio espiritual. Depois de certo tempo imerso nas “profundezas obscuras do pessimismo contemporâneo”, ele se revolta e cria, então, a teoria rudimentar de que a mera existência, reduzida aos seus limites primários, é extraordinária o suficiente para ser excitante. Conectado aos restos de um pensamento religioso por uma linha fina de gratidão, ele começa a ler os evangelhos; termos e imagens religiosas começam a aparecer cada vez mais em suas anotações.

Em 1896, Chesterton conhece sua futura esposa, Frances Blogg, quem exerce grande influência religiosa por toda a sua vida ‒ junto de outras figuras como o padre anglicano Conrad Noel e do historiador e escritor Hilaire Belloc. Já em 1904, em uma de suas respostas aos ataques de Robert Blatchford ao cristianismo no jornal Clarion, Chesterton diz, “Nós todos somos agnósticos até descobrirmos que o agnosticismo não vai funcionar”. Assim, com “Hereges”, é possível delinear o começo de um caminho que só chegaria ao seu destino em 1922, quando o autor finalmente se converte ao catolicismo.

No Brasil, pela editora Ecclesiae, é a primeira vez que uma edição em língua portuguesa de “Hereges” está sendo publicada. Apesar de chegar em momento não menos importante, o atraso que vinha desde o século passado é praticamente inexplicável. Uma das obras mais importantes de Chesterton, “Ortodoxia”, não poderia existir sem “Hereges”. Pois “Ortodoxia” foi escrita em resposta às críticas de “Hereges”; a primeira foi dedicada ao pai, a segunda foi dedicada à mãe; são, portanto, obras irmãs que se complementam e que conversam constantemente entre si. “Ortodoxia” apenas delimita e organiza de forma autobiográfica as conclusões que ele teve primeiro com “Hereges”. Ao mostrar o que implica em heresia, Chesterton ilustra o que implica em ortodoxia, e vice-e-versa.

“Hereges” apresenta vinte capítulos, cada um destinado a uma figura ou tendência moderna. Assim, o autor discute Rudyard Kipling, Bernard Shaw [marxista], H.G. Wells [marxista], o Comtismo, o “carpe diem” dos estetas, o Novo Jornalismo, a comunidade científica, entre outros. Para cada caso, ele emprega uma perspectiva teológica, analisando sua heresia e ressaltando a importância da ortodoxia. Dessa forma, Kipling é um herege por ser um cidadão do mundo, por não ter tempo ou paciência de se fixar definitivamente em nenhum lugar, ele representa o cosmopolitismo da sociedade moderna que avança e expande sem saber que a vida acontece quando nos enraizamos, quando nos prendemos em determinada causa ou comunidade; Shaw é um herege por não aceitar os humanos como são, por comparar homens com super-homens, com deuses ou gigantes, quando o segredo do cristianismo, e mesmo do sucesso em vida, está na humildade; Wells é um herege por duvidar do pecado original e da possibilidade da própria filosofia ao dizer que é impossível encontrar idéias seguras e confiáveis, que tudo sempre muda, mas são apenas as aparências que mudam, as idéias permanecem sempre as mesmas.

Ironicamente, a conclusão é a de que a maior heresia não é um conjunto de determinadas afirmações, mas a falta de crença em afirmação alguma. Pois até a blasfêmia depende de um ato de fé. A sociedade moderna, em nome da expansão e do progresso, escolheu não definir nenhum padrão do que é bom, nenhuma direção distinta a seguir, nenhuma convicção específica a adotar, mas progresso só é progresso quando sabemos para onde estamos indo e o que queremos exatamente. Para Chesterton, existe um pensamento que impede o pensamento, e esse é o único a ser combatido. Se pode existir uma evolução mental, ela só pode ter a ver com um aumento de certezas, de mais e mais dogmas, e não mais e mais dúvidas.

No final do livro, fica claro que Chesterton está discutindo o papel da religião em nossas vidas. Mas, em nenhum momento, ele espera provar que suas doutrinas são verdadeiras. Ele sabe que religião é, fundamentalmente, uma questão de fé e não de demonstração; a revelação não pode ser empiricamente comprovada. Apesar de prover algumas explicações sobre a existência humana ao demonstrar casos da experiência em que o materialismo simplesmente não satisfaz, o livro contém os mistérios que vão muito além da capacidade do pensamento humano. Para Chesterton, é a escuridão do mistério cristão que ilumina a todas as coisas. Ele diz que a religião não é uma coisa que pode ser excluída justamente porque ela inclui ao todo. Não é a razão que nos mantém sãos, mas o misticismo. Racionalmente, podemos duvidar de tudo e de todos, podemos acreditar na tese de que estamos todos em um sonho e de que nossa família e nossos amigos nada são além de criações da imaginação. É o misticismo, portanto, que nos permite afirmar a própria existência como um dogma religioso. Para nos tornarmos realmente conscientes e vivos, não podemos nos perder em pessimismo e ceticismo, mas afirmar o papel da religião e do dogma e nossas vidas: “Seremos daqueles que viram e mesmo assim acreditaram.” As obras de Chesterton impressionam por parecerem atuais, ao ponto de nos esquecermos da época em que foram concebidas. Ele aponta os erros em pensamentos e condutas correntes, como o vegetarianismo e a busca vazia de hábitos saudáveis, ou a descrença na monogamia e na instituição da família. Seus comentários são avançados para os dias de hoje no sentido em que vão contra as novidades e zelam por algo mais antigo e verdadeiro; seu conjunto de convicções é mais coerente e faz mais sentido do que o de algumas pessoas ainda muito bem vivas. Enquanto o pensamento moderno já parece desgastado por sua própria ineficácia em questões práticas, é bem provável que as obras de G.K. Chesterton permaneçam atuais e necessárias por muitos e muitos anos ainda.


G. K. Chesterton
Sobre o autor: Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G. K. Chesterton, (Londres, 29 de maio de 1874 — Beaconsfield, 14 de junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, filósofo, desenhista e conferencista britânico.

Era o segundo de três irmãos. Filho de Edward Chesterton e de Marie Louise Grosjean. Casou-se com Frances Blogg. Concluiu os estudos secundários no colégio de São Paulo Hammersmith onde recebeu prêmio literário por um poema sobre São Francisco Xavier. Ingressa na escola de arte Slade School de Londres (1893) onde inicia a carreira de pintura que vai depois abandonar para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Escreveu no Daily News. Nascido de família anglicana, mais tarde converteu-se ao catolicismo em 1922 por influência do escritor católico Hilaire Belloc, com quem desde 1900 manteve uma amizade muito próxima.

Ao falecer deixou todos os seus bens para a Igreja Católica. A sua obra foi reunida em quase quarenta volumes contendo os mais variados temas sob os mais variados gêneros. O Papa Pio XI foi grande admirador de Chesterton a quem conhecera pessoalmente.

Curiosidade: Chesterton era daqueles sujeitos que não conseguem passar despercebido aonde quer que estejam. A irreverência, o bom-humor e a eloqüência, associados a dois metros e nove centímetros de altura e a um peso médio de 140 quilos, transformavam qualquer ambiente; quer uma festa de aniversário infantil ou um acalorado debate com Bertrand Russel.

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Nota: O grifos são do Editor deste blog.


ASSISTA AOS VÍDEOS DA PALESTRA DE LANÇAMENTO

Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 1
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Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 2
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Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 3
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Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 4
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Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 5
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Hereges - Prof. Antonio Emílio Angueth Araújo - Parte 6
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