sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

QUANDO DESPERTAMOS DE ENTRE OS MORTOS

Título original: (do norueguês Vagner Når vi døde)
Autor: Henrik Ibsen (1828-1906)
Tradução: Vidal de Oliveira
Editora: Globo
Assunto: Drama
Edição: 1ª (2ª reimpressão)
Ano: 1960
Páginas: 51 (579-630)

Sinopse: É a última peça escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Foi publicada em 1899, e encenada pela primeira vez em Stuttgart, em 1900.

Arnold Rubek, um célebre escultor e sua esposa, Maja, estão nas margens de um fiord, numa estação balneária da Noruega, onde tinham ido passar o verão. Rubek encontra-se tenso e pouco à vontade. Maja encontra a atenção em Ulfheim, um proprietário de terras e um rude caçador de ursos que contrasta fortemente com o marido. Maja, movida pela curiosidade decide acompanhar Ulfheim até uma montanha e insiste com o marido que os acompanhe. Rubek, por sua vez, encontra Irene, uma bela mulher de seu passado que lhe desperta memórias, desejos e uma aguda crise existencial. Rubek e Irene acabam combinando se encontrar na montanha onde se desenrola todo o epílogo do drama: Ulfheim e Maja se vão para a planície obscurecida pela tormenta, e para vida, enquanto Rubek e Irene sobem para o cimo luminoso, e para a morte. A peça é impregnada por um intenso desejo de vida, mas se ele pode ser alcançado é o drama da peça.

Enredo: O escultor Arnold Rubek, numa cintilação de gênio, produziu uma grande obra, o “Dia da Ressurreição”. A idéia da Ressurreição surgiu-lhe sob o aspecto de “uma virgem imaculada que nada conhece da vida terrestre e que, ao despertar para a luz, não tem que despir-se de qualquer mácula que seja”. Ao mesmo tempo em que a Vida terrestre era desse modo afastada de sua arte, ele a bania de sua própria existência. Uma bela moça, Irene, apaixonara-se por ele e consentira em segui-lo ao estrangeiro. Ele fez dela a casta encarnação do seu pensamento diretor, submetendo-a, contudo, aos deveres de um modelo plástico. Respeitou-a, não obstante sua beleza, que se desvendava inteiramente ante ele, e não obstante a embriaguez que ela lhe causava. Queria que sua obra levasse em si o cunho do triunfo da alma sobre a carne. Rubek e Irene viveram assim uma vida seráfica nas margens do Teunitzer-Lee, um lago que não se encontra nos mapas e que foi testemunha de seus brinquedos inocentes, de mil infantilidades, nas quais buscavam o esquecimento da natureza impiedosa. Tinha dela, no íntimo, uma noção de nitidez bem diversa da que tinham os ingênuos heróis de Bernardin de Saint-Pierre. Foi mesmo isso o que os perdeu.

O falso, na vida, somente engendra loucura e foi, de fato, um germe de loucura o que Irene levou daquele “atelier” de onde, um dia, fugiu, por não poder mais, triste vítima de um egoísmo de artista que não levava em conta a natureza dela. Violentada, essa natureza vingou-se por uma reação violenta, até mesmo grosseira. A beleza sagrada que Rubek quisera preservar de qualquer mácula foi miseravelmente poluída pelos olhares de um público de café-concerto, ante o qual, Irene, foi exibi-la em quadros vivos. A infeliz tornou-se o que tinha de se tornar depois de uma tal estréia. Quando, anos mais tarde, Rubek, inopinadamente torna a encontrá-la, ela lhe conta, em frases desconexas, que seu espírito delirante lhe dita, que homens foram por ela levados a ruína e ao suicídio. Que haveria de verdade nessas narrativas? Só vagamente ele o imaginava. Ela se casara duas vezes; primeiro com um brasileiro, mais tarde com um russo. Os dois maridos estão mortos. “Matei-os” é o que responde a uma pergunta do artista. “Tens filhos?” pergunta-lhe ele. E vem a mesma resposta: “Matei-os”.

Sua fantasia sofre de uma mania homicida que, num momento dado, seguramente, ameaçou traduzir-se em atos, o que determinou o seu internamento. Pelo menos é isso que se deduz de suas palavras: “Estou morta... Puseram-me no túmulo... fecharam o sepulcro com barras de ferro, depois de terem acolchoado as paredes...” Saiu do cubículo, quase que restabelecida, mansa e boa no fundo da alma, a ponto de fascinar as crianças que instintivamente a procuravam, e, não obstante, por momentos, sujeita aos seus impulsos assassinos. Isso acontece, principalmente, todas as vezes que ela é ferida no mais íntimo dos seus sentimentos. Esse ponto sensível é, cousa estranha, o culto ou antes o amor apaixonado do ideal, amor que, nela, triunfou das máculas, das degradações, dos dramas cruéis da vida, até mesmo da perda da razão. No seu espírito, ele se une à recordação da obra-prima que ela inspirou, e pela qual conservou o amor de uma mãe pelo filho. Tornar a ver esse filho, “o nosso filho” como o chamavam outrora, revê-lo em sua beleza e em sua glória atual, tornou-se-lhe a única preocupação, a própria finalidade da existência. É assim que a imagem pura, o ideal sagrado, o protótipo divino, deformado pela realidade, se conserva nas almas amantes.

Inspirado pela vida, cujo quadro se desenvolveu ante ele depois da partida de Irene, Rubek aumentou, complicou, transformou a sua obra. Da idéia primitiva, nada mais resta, a não ser uma figura apagada no último plano de um grupo, onde se vêem homens, aprisionados na crosta terrestre que se abre insuficientemente, fazendo vãos esforços para se desprenderem, a fim de renascerem para a vida e para a luz.

No meio desses seres, o artista representou-se a si próprio. A alteração que a sua obra sofreu, nada mais é, de fato, que o reflexo da que se operou nele. Também ele está aprisionado na crosta terrestre, na existência vulgar da multidão, à qual se acha mesclado desde o dia em que trabalhou para ela, em que dela recebeu glória e riqueza. Ele a desprezava, é certo, e se sente nauseado ente os seus louvores, seus êxtases e principalmente seus comentários. “O mundo inteiro nada sabe, nada compreende” responde com raiva e desdém, quando lhe falam de seu gênio reconhecido por todos. Não importa: pertence a essa multidão. Ela o reduziu, mutilou-o, tanto que se sente incapaz de esculpir outra cousa que não sejam “bustos de perfil, de três quartos”.

Tudo o que pode fazer é vingar-se sorrateiramente, segundo sua própria expressão, dando a cada um de seus retratos uma semelhança secreta com algum animal doméstico. “Porquanto o homem, depois de ter desfigurado os animais que domesticou, recebeu por sua vez, o seu cunho”.
O sarcasmo, porém, é um sinal de derrota mais que de triunfo. É a vingança dos impotentes. E, de fato, é um impotente, esse artista que depois de ter trocado seus sonhos por uma realidade cômoda e lucrativa, quer repentinamente voltar e viver a vida terrestre que até então desdenhou, quer vivê-la plenamente, como Brand aconselhava àqueles que não se podem desprender da terra: “Sê plenamente o que és”.

Demasiado tarde! Ao ver a mão de Irene brilhar um estilete que ela dissimulava na blusa, ao ouvir-lhe dizer que por várias vezes tivera a intenção de apunhalá-lo, Rubek pergunta-lhe por que não o fez. “Porque” – declara ela, – “compreendi repentinamente que tu também estavas morto, morto como eu... A vida, toda ela, apareceu-me como um cadáver estendido num leito de luxo.” Debalde procuram eles galvanizar por um momento esse cadáver, antes de baixar ao túmulo, ao verdadeiro túmulo, que será desde então seu lugar. Da charneca selvagem, do denso nevoeiro que os cerca, o mestre e Irene, facilmente persuadida e arrastada pela vertigem que dele se apoderou e por ela própria desencadeada, atiram-se para os cimos luminosos. Mas apenas dão alguns passos e a morte, mais impetuosa ainda do que seus desejos, os detém: o terreno nevado faze-lhes sob os pés, o alude arrasta-os, o abismo os traga. Paz às suas almas atormentadas!


Interpretação da peça:
Ouve-se subitamente como que um rugido de trovão a descer das alturas nevadas, que se esboroam, e entrevê-se vagamente Rubeck e Irene, arrastados pelo alude. Traga-os o abismo”.
“A diaconisa (dando um grito e estendendo os braços para eles). Irene! (Conserva-se calada, um momento, depois faz o sinal da cruz sobre o abismo e diz:) Que a paz seja convosco! (Ouve-se ainda, vindo de baixo e cada vez de mais longe, o canto de Maja).

A alva sombra de Irene atravessa, sombra do desejo irrealizado, seguida da sombra escura e silenciosa da diaconisa, sua guardiã, da sombra do destino apegado aos nossos passos e que nos alcança ao despertar dos nossos sonhos vãos. E por uma cruel ironia da sorte, é no momento da morte que essa fonte jorra por fim dentro dos corações que, durante a vida, a ela se haviam fechado para alimentarem sentimentos sobre-humanos. Mas será mesmo uma ironia? Será uma potência sarcástica que por essa forma se ri de nós? Não será, antes, uma força infinitamente misericordiosa, Deus charitatis que, por um verdadeiro golpe de graça, detém a carreira vital de certos seres privilegiados, no momento exato em que eles concebem a felicidade? Porquanto, essa concepção é a única verdadeira felicidade que lhes seja permitida neste mundo. Mais um passo, e começaria a decepção.

O mundo é todo ele decepção. Esta é a realidade. A réplica de Irene “Quando despertamos de entre os mortos, verificaremos que jamais temos vivido” é uma das palavras mais sombrias que em qualquer tempo tenha sido dita sobre esse tema.

O conflito interior “entre o mundo tal qual ele é o mundo como deveria ser” é o único conflito da peça. Dá-se na alma de Rubek e parecia, no momento em que começa a ação, terminado pela vitória do mundo tal qual ele é. O escultor casara-se com uma verdadeira filha desse mundo, uma verdadeira filha da Eva terrestre. Ibsen dá-lhe o nome de Senhora Maja, da mesma forma que tem o cuidado de juntar sempre ao nome de Rubek seu título de professor. Nesse pequeno detalhe esconde-se uma intenção. Aqui temos um casal, cuja situação social está perfeitamente estabelecida, e que, aparentemente, nada mais tem a fazer do que gozar uma existência cujos começos, de um lado, como de outro, foram mais modestos. A estes substituíram-se condições de bem-estar material, até mesmo de luxo, que aqueles triunfadores nos expõem desde a primeira cena do drama: “Nossa casa, diz Rubek, é magnífica... Estamos instalados com um esplendor, um luxo que nada deixam a desejar. E tudo isso é vasto, é confortável.” “Não há dúvida, responde Maja, em matéria de bem-estar e de conforto nada nos falta.” Aparências vãs, tudo isso! Já vimos o que é a alma do Senhor professor. A verdade explode bruscamente, subitamente, assim que ele torna a encontrar Irene, o passado, o sonho ao qual faltou a realidade. Debalde tenta sanar essa falta num supremo e imponente esforço para unir a arte à vida da qual a separara.

E Senhora Maja? Senhora Maja pouco se importa com a arte! “Ora! Não passas de um simples artista”, diz ela desdenhosamente ao marido, que a quer iniciar nas suas torturantes elucubrações. “Estás doente, Rubek”, diz em outra oportunidade, com clarividência e solicitude femininas, porque de fato ele o está. Mas, para essa doença ela só conhece um remédio: “Bebe” acrescenta, oferecendo-lhe um copo de champanha, “bebe e sê feliz”. O remédio é eficiente para ela? Será ela feliz, embora não lhe falte o champanha? Não. Maja é também uma desiludida. “Lembras-te do que me prometeste?” pergunta ela àquele a quem seguiu em país estrangeiro. Trata-se da promessa do tentador evangélico: “Eu te conduzirei a uma alta montanha e te mostrarei todos os esplendores da terra.” O tentador não pode cumprir a promessa, porquanto as duas partes são incompatíveis. Para uma, a alta montanha, para a outra os esplendores da terra. Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo. E, entretanto, somente sua reunião corresponderia aos secretos desejos da nossa natureza primitiva. A mulher, ser instintivo, mais perto da natureza do que o homem compreende isso e sente-o sempre, qualquer que ela seja. A mais terra-a-terra tem necessidade de ideal, a mais imaginativa precisa de realidade. “Nunca me levaste a uma alta montanha” é uma das queixas que Maja faz ao marido. Por sua vez ouvimos o queixume de Irene: “Deveria ter dado à luz a crianças... a verdadeiras crianças, não dessas que se guardam em sepulcros... Nunca te deveria ter servido, - poeta!” “Por que me chamas poeta?” pergunta-lhe Rubek. “Porque és fraco e inerte, cheio de indulgências para com os teus atos e pensamentos.” Isso está nitidamente dito: é preciso, para ter direito à vida, para contentar, até mesmo a um ser exaltado como Irene, que um poeta seja ao mesmo tempo homem, com tudo o que esse termo implica, inclusive o sentimento de responsabilidade por seu atos e pensamentos. E esse sentimento deve traduzir-se de outra forma que não em obras de literatura ou arte: “Mataste a minha alma”, acrescenta Irene, “e esculpes a seguir tua imagem numa atitude de arrependimento, de confusão e de penitência. Com isso crês estar tudo dito e que não há mais contas a ajustar.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DON JUAN

Título original: Don Juan ou Ler festin de pierre.
Autor: Jean-Baptiste Poquelin (Molière) - (1622-1673)
Tradutor: Millôr Fernandes
Assunto: Drama
Editora: L&PM
Edição: 1ª
Ano: 1997
Páginas: 130 p.


Sinopse: Don Juan é um lendário libertino fictício, um mulherengo inveterado, que seduzia as mulheres prometendo-lhes o matrimônio. Deixa, atrás de si, um rastro de corações partidos, até que finalmente acaba matando um certo Don Gonzalo. Quando depois é convidado pelo fantasma deste para um jantar numa catedral, acaba por aceitar, por não querer parecer um covarde e acaba se dando muito mal. A história termina dramaticamente, com a descida de Don Juan ao Inferno.

Curiosidade: A versão de Molière, que estreou em 1665, após quatorze apresentações foi proibida e só voltaria a ser reencenada como ele a escreveu cento e setenta e quatro anos depois da morte do autor.

As personagens:

― Don Juan – filho de Don Luís
― Leporelo – Criado de Don Juan
― Dona Elvira – Mulher de Don Juan
― Gusmão – Escudeiro de Dona Elvira
― Don Carlos – Irmão de Elvira
― Don Alonso – Outro irmão de Elivira
― Carlota e Marturina – Componesas
― Pierrô – Camponês
― A Estátua do Comendador
― Violeta e Ragota - Criados de Don Juan
― Sr. Domingos – Comerciante
― La Rammé – Espadachin
― Um pobre
― Comitiva de Don Juan
― Comitiva dos irmãos Don Carlos e Don Alonso

Resumo da narrativa: Don Juan, depois de seduzir e prometer casamento à bela Elvira, a abandona e foge. Atrás dele vão os dois irmãos da donzela, prontos para lavar a honra da família. Na fuga, Don Juan e seu criado Leporello acabam vítimas de uma tempestade, indo parar numa ilha desconhecida. É ali que o incorrigível conquistador se envolve com mais duas beldades: as donzelas Mathurine [Marturina] e Charlotte [Carlota]. Leporelo, na ausência de Don Juan, intercede explicando às moças que o seu patrão “é um salafrário”, capaz de “casar com todas, com a humanidade inteira”.

Chega um cavaleiro e comunica a Don Juan que ele está sendo procurado por doze homens a cavalo. Ele despede-se rapidamente das mulheres como se estivesse falando a apenas uma, prometendo voltar para cumprir a palavra, após “resolver um assunto urgente”.

Acovardado, se disfarça de camponês e Leporelo de médico, e ambos vagueiam por uma floresta para se esconderem dos cavaleiros em seu encalço. A dupla pergunta o caminho a um medigo que os adverte da presença de assaltantes na região e pede uma esmola. Don Juan faz pouco do mendigo e no meio da zombaria a conversa é interrompida por uma cena em que um cavalheiro é atacado por três assaltantes. Don Juan decide intervir e com a sua chegada os três assaltantes fogem. O cavaleiro agredido agradece generosamente explicando que teria vindo com seu irmão e demais cavaleiros para vingar a honra de uma irmã “seduzida e raptada de um convento”.

Cinicamente Don Juan diz ao cavalheiro que conhece Don Juan e propõe auxiliá-lo na procura de tal malefeitor para que ele preste as devidas satisfações. Nesse interim aparece Don Alonso, irmão do cavalheiro atacado, e reconhece Don Juan. Quando todos estavam prestes a empreender o embate, Don Carlos, o cavalheiro salvo por Don Juan, pede magnanimidade e diz que defenderá seu salvador. Com isso consegue para Don Juan o adiamento de um dia no confronto.

Leporelo que havia se escondido ressurge do seu esconderijo e ambos entabulam nova conversa. Enquanto conversa, a dupla dá-se conta da existência próxima de de um mausoléu. Leporelo reconhece o túmulo do Comendador que havia sido morto por Don Juan, que fica muito interessado em conhecer o prédio. Leporelo tenta dessuadir o patrão de tal intento pois não parecia civilizado visitar uma pessoa que este havia matado.

Na visita se deparam com a estátua do Comendador e Don Juan, debochadamente, manda Leporelo convidá-la para jantar com ele. A estátua aceita para espanto de ambos que abandonam o local dissimuladamente para não parecerem covardes.

Já na sua residência recebe a visita de um fornecedor credor e habilmente o impede de entrar no assunto, despachando-o sem pagar a dívida.

Chega Don Luís, o pai de Don Juan que passa-lhe completa descompostura dizendo que a ternuna paterna havia esgotado os seus limítes: “Muito antes do que você imagina, saberei pôr um fim aos teus desregramentos, atraindo sobre tí a cólera do céu”.

O fidalgo recebe a inesperada visita de Dona Elvira, uma de suas incontáveis abandonadas, e suplica-lhe que se arrependa. Este tenta persuadí-la a pernoitar com a intenção de dar vasão as pequenas chamas de seus instintos que começaram a crepitar, mas esta recusa e vai embora.

Durante o jantar, batem à porta. Leporelo atende e retorna apavorado anunciando a presença da estátua do Comendador que convida Don Juan a cear com ela no dia seguinte. O fidalgo aceita e a Estátua parte recusando a tocha oferecida, alegando que “não precisa de luz quem é iluminado pelo céu”.

Já no quinto ato, Don Juan confessa hipocritamente ao pai que havia se convertido e pede ao pai que lhe indique uma pessoa que lhe sirva de guia para marchar seguro pela estrada que escolheu caminhar. O velho, comovido, dá graças aos Céus por ter sido atendido em sua preces, sem se dar conta que tudo não passava de hipocrisia do filho, cujas palavras saídas da boca não correspondiam às que estavam em seu cérebro. Tudo não passava de um “projeto político” para iludir os tolos.

Don Carlos encontra Don Juan e lhe pergunta se ele vai ou não casar com sua irmã Elvira. O libertino diz a Don Carlos que havia recebido diretamente do Céu o aviso para não fazê-lo. Leporelo, que ouviu a conversa, diz ao patrão que este novo estilo é “bem pior do que todos os outros”.

Na cena cinco do quinto ato aparece um espectro sob a forma de uma mulher velada e avisa a Don Juan que aquele é o “último instante para aproveitar a misericórdia divina”. Don Juan quer saber que está ali sob as vestes e, quando se aproxima, “o espectro transforma-se no tempo, com a foice na mão”. Don Juan puxa a espada e atravessa o espectro, que desaparece imediamente. Leporelo insiste em que ele se arrependa, mas o libertino está irredutível.

Don Juan sobrepõe o orgulho sobre qualquer arrependimento e prepara-se para partir, mas a Estátua o impede e lembra-lhe com comprimisso dele em jantar com ela. Don Juan aceita e a Estátua toma-lhe a mão e sob enorme espanto Don Juan vê-se consumido por um fogo invisível que o queima e sufoca. A terra se abre e traga-o para o abismo e enormes labaredas se levantam no lugar em que ele desapareceu.

Leporelo faz um retrospecto dos efeitos produzidos pelo patrão libertino que desaparecera e lastima pelo seu salário não recebido. Quem irá pagá-lo?

Comentários: José Monir Nasser relata que a história de Don Juan foi primeiramente contada por um padre espanhol, Tirso de Molina na peça “El burlador de Sevilha y convidado de piedra” ["O conquistador de Sevilha e o convidado de pedra"], escrita na Espanha entre 1629 e 1635. O teólogo, seguindo as disposições do Conselho de Trento, queria impressionar os fieis contando o destino implacável de um homem dissoluto e imoral incapaz de arrependimento sincero.

Surpreendentemente, o tema demonstrou grande fertilidade e, em torno dele, foram escritas dezenas de versões, sendo a de Molière, de 1665, provavelmente a mais importante e a mais conhecida. Mais de cem anos depois, o libretista italiano Lorenzo da Ponte escreveria uma versão operística da obra de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou o seu “Il dissoluto punito ossia Il Don Giovanni” [Libreto da ópera de Mozart] em 1787. Em 1821, Lord Byron também escreveria o poema épico “Don Juan”. Além deles, Corneille, E.T.A. Hoffamn, Pushkin, Glück e Richard Strauss, entre outros exploram o tema.

Portanto, a história sobre Don Juan foi contada muitas vezes por autores diferentes. O nome às vezes é modernamente e figurativamente usado como um sinônimo para sedutor (ou "playboy").

As visões acerca da lenda variam de acordo com as opiniões sobre o caráter de Don Juan, apresentado dentro de duas perspectivas básicas. De acordo com uns, era um mulherengo barato, concupiscente, cruel sedutor que buscava apenas a conquista e o sexo. Outros, porém, pretendem que ele efetivamente amava as mulheres que conquistava, e que era verdadeiramente capaz de encontrar a beleza interior da mulher. As versões primitivas da lenda sempre o retratam como no primeiro caso. Todavia, essa é uma visão muito estreita da obra. Ela quer nos contar muito mais que isso.

Interpretação da obra: Don Juan é a história de um libertino. Parafraseando o professor Monir, a primeira coisa a fazer para compreender o sentido da obra é não interpretar Don Juan do ponto de vista moderno, ou seja, do ponto de vista meramente sexual. Como o mundo moderno é um mundo associado a sexo, tendo neste ato sua atividade predominante, as pessoas acham que essa é a missão que o mundo lhes dá.

A segunda coisa a fazer é estabelecer o perfil de Don Juan e suas transgressões:

― Mata o Comendador, pai de Anna. (a figura do pai sempre simboliza o espírito)
― Seduz Dona Anna.
― Profana a sacralidade do Convento, seduzindo a freira Elvira.
― Profana a inocência, seduzindo as camponesas Carlota e Marturina.
― Profana a humildade e chantageia um pobre.
― Salva a vida de Don Carlos. O único ato nobre.
― Profana a honestidade, embromando o credor.
― Zomba do Céu quando Elvira aparece transformada.
― Zomba do Espírito quando destrata o pai após ser repreendido por ele.
― Expulsa o cobrador.
― Não se acovarda diante da Estátua do Comendador.

Assim, Don Juan, do começo ao fim da história só pratica atos maus, exceto quando salva a vida de Don Carlos, sendo o seu único ato nobre. É preciso considerar o valor desse ato na história toda: “salvar a vida”.

Don Juan recusa todos os valores transcendentes, mas ele não é ateu porque em nenhum momento diz que Deus não existe. Na verdade, ele é um rebelde metafísico que quer viver sua vida loucamente porque acha que, fazendo o que faz, será mais homem do que em outras circunstâncias. É a atitude do super-homem de Nietzsche.

Esse modo de proceder faz de Don Juan uma personagem nietzscheiana, desprovida de valores transcendentes, que faz tudo ao contrário do que mandam os valores morais e espirituais; que faz as coisas do jeito dele, independentemente das questões externas. É o homem de natureza prometeica nietzscheiana que julga ter a capacidade e autoridade sobre o próprio destino.

Don Juan tem consciência moral, representada por Leporelo que está ao lado dele o tempo todo dizendo a ele as coisas que estão erradas, mas ele quer desafiar a moralidade e tenta criar o homem prometeico – Leporelo é o duplo de Don Juan, uma espécie de consciência moral deste.
Consciência moral é aquela voz que diz para você que você está fazendo errado. Se você não ouve essa voz é um problema grave: ou você é santo ou então precisa urgentemente receber um tratamento de humanização. Se você não ouve essa voz, significa a perda da consciência moral. Não há nada mais desumanizante do que a perda da consciência moral.

Embora Don Juan tenha desafiado a moralidade o tempo todo, ele praticou um ato bom ao salvar a vida de Don Carlos. Este ato de bravura salvou a sua própria vida, pois todas as vezes que se praticam atos bons, o mundo responde positivamente. Foi o que aconteceu com Don Juan, vez que, em seguida Don Alonso o reconhece e se prepara para matá-lo, mas Don Carlos impede, concedendo-lhe mais um dia para enfrentarem-se em duelo.

A queda de Don Juan se dá pela densidade. Ele se torna tão pesado que a terra o traga. Essa densidade é representada pela Estátua de pedra que simboliza a matéria e destrói Don Juan. Portanto, é a densidade da matéria que destrói Don Juan. O contrário acontece com Dona Elvira. Enquanto Don Juan vai caindo, Dona Elvira vai se elevando, aumentando assim o distanciamento entre ambos.

Don Juan sabe que está fazendo errado, ele tem consciência moral, mas resolve desafiar essa autoridade para produzir uma existência humana independente de qualquer convivência superior. Ele faz isso com toda a consciência do mundo. Esta é a idéia central da obra de Molière.

Conclusão: A condição humana exige subordinação ao Céu. Quem não aceita esta condição cai na rebelião metafísica cujo destino é ser tragado para as profundezas do abismo onde reinam as trevas.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MADAME BOVARY

Título original: Madame Bovary
Autor: Gustave Flaubert (1821-1880)
Tradução: Araújo Nabuco
Editora: Circulo do Livro
Assunto: Romance
Edição: 2ª
Ano: 1975
Páginas: 261

Sinopse: O romance conta a história de Emma Rouault, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles Bovary, um médico interiorano tão apaixonado pela esposa quanto entediante. Nem mesmo o nasci
mento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa.

Resumo da narrativa: Charles Bovary – a história começa com sua entrada na escola e com a hilaridade que provocou nos outros alunos seu chapéu ridículo – é rapaz estúpido, insensível de grande inabilidade; também incompetente e realizará operações desastrosas como no pé do aleijado do pobre Hippolyte. Emma, por sua vez, é uma mocinha sonhadora, romântica, acreditando no que suas leituras medíocres lhe contam sobre a felicidade pelo amor. Toda enganada. Emma casa com Charles Bovary, para fugir da estreiteza da casa paterna. A decepção é inevitável. Um baile no castelo do vizinho aristocrático reaviva os sonhos românticos, a que tão pouco corresponde o marido. Frontalmente, cai Emma na aventura adulterosa com Rodolphe, espécie da Don Juan rural, que a abandonará em breve. Agora, as paixões de Emma estão despertas. O jovem Léon, empregado de um advogado, é sua próxima vitima. Ela perde totalmente o equilíbrio. Toma emprestado dinheiro, mais do que poderá jamais devolver. Desespero. Suicídio. Depois da morte, Charles Bovary descobre a verdade. Fica perturbado sem saber o que pensar. E é só. Eis tudo. Uma história triste e, em parte, sórdida. Mas, atenção! Essa história não é simples como parece.

O romance se chama Madame Bovary. O título indica que Emma Bovary é sua “heroína”. Mas será realmente assim? A narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nele desempenham grande papel o estúpido don-juanismo de Rodolphe e a estúpida paixão de Léon, a estupidez do farisaico padre Boumisien e todo esse pequeno ambiente de província, sem saída para Emma e sem saída para ninguém e pode-se afirmar: a verdadeira personagem do romance é a Estupidez humana.

Análise de excertos da obra: A primeira página do livro descreve minuciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como “enfadonha” e “inútil”. Ela pode ser enfadonha – como o próprio Charles Bovary – mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o simbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á simbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné “grego” que usa o farmacêutico Homais e o chapeu de castor do padre Boumisien e o chapéu “elegante” (mas já démodê) do don juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyssard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mais visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance os “Comícios agrícolas”, a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e o sussurro do vento nas árvores – todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance inteiro.

Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na Catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais – é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.

Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovary é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual da arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é fácil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se, como um monge no deserto, para elaborar uma obra dessas.

Comentários: Dois pré-requisitos são necessários para iniciar a leitura da obra de Gustave Flaubert: paciência e envolvimento. A linguagem extremamente trabalhada e descritiva pode sufocar os mais afoitos, já que os fatos acontecem lentamente, sendo interrompidos por bucólicas descrições da paisagem, do tempo, do vestido de Emma, suas rendas, seus caprichos e seu marido apaixonado e tedioso. Afinal, é um romance comprometido com a realidade e há momentos em que é até possível sentir o cheiro do ambiente descrito. Os detalhes possibilitariam a mesma elaboração de uma cena a muitos leitores.

Emma é uma mulher que nunca sabe o que quer. Que quer tudo e que não valoriza quase nada do que tem. Uma problemática bem elaborada pelo autor, Gustave Flaubert, que demorou cinco anos para concluir a obra e que foi acusado de ofensa à moral e à religião por abordar o adultério, o desejo e os caprichos femininos dentro da rotina do casamento entre uma bela donzela e um médico emergente.

Em diversos momentos o autor afirma e reafirma em sua narrativa o quão entediante é Charles, marido de Emma. Mas em uma leitura mais crítica, é intensa a força que Flaubert coloca no texto para perpetuar visão que Emma tem de Charles. Na realidade é ela que, com sua volatilidade, está sempre enfastiada de tudo e todos a sua volta. A rotina a corrói. O dia-a-dia não lhe pertence. Seus desejos enxergam a realidade como algo ínfimo e inferior demais para ser vivido. Ela sonha com príncipes, riquezas e bailes.

Os amantes trazem-lhe a vida e o brilho de volta, brilho que ela parece nunca ter tido, já que, quando solteira, passava a própria existência de forma modesta no campo com seu pai viúvo. A troca de amores de Emma poderia também ser comparada ao que acontece hoje com algumas jovens mulheres que mudam de paixões ao sabor da vontade.

O tédio de Emma vai além da falta de graça e vida de seu marido, porque quase nada a satisfaz por muito tempo. Vaidosa, cheia de vontades, uma verdadeira mulher de fases, que ora alterna o ímpeto da paixão pela vida e pelos amantes, ora entra em um estado de letargia desconsolado com a existência. Nem o nascimento de sua filha faz com que o amor pleno tome conta de Madame Bovary, que procura incessantemente as paixões nas páginas dos romances os quais chegou a ser proibida de ler por causa dos conselhos da sogra, que pouco a estimava.

As traições de Emma parecem ser percebidas por todos da pequena comunidade. Diferente das mulheres prendadas e dedicadas ao marido, ela é uma verdadeira consumista que afunda Charles em dívidas homéricas e irreversíveis. Dinheiro, luxo, sexo, chantagem. Emma buscava amantes que pudessem levá-la aonde ela quisesse, já que sozinha ela não poderia ir. Ela queria ser quem não era fenômeno hoje designado pela psiquiatria como Bovarismo.

A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre como o mais perfeito, o mais inexorável “romance de adultério”, com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal de Sena, em 1857, achou censuráveis. Como estão distantes do verdadeiro sentido da obra! Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse “inútil” o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar (sic). E que temos nós, hoje, com acontecimentos quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840?

Os ambientes sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, a obra de Flaubert tem o valor de grande, exaustivo e exato romance histórico. Mas as conseqüências continuam e com elas os tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres ainda são assim; e assim continuarão por muito tempo.

Sobre o autor: Gustave Flaubert (Ruão, França, 12 de dezembro de 1821 – Croisset, França, 8 de maio de 1880) foi um escritor francês. Prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, seu senso de realidade, sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances, tais como “Madame Bovary” (1857), “L'Éducation sentimentale” (1869), “Salammbô” (1862) e contos, tal como “Trois contes” (1877).

Madame Bovary é considerado o ápice da narrativa longa do século XIX - o chamado século de ouro do romance. Flaubert, o esteta, aquele que buscava o mot juste (a palavra exata) e burilava os seus textos por anos a fio, imbuiu-se da consciência e da sensibilidade da sua personagem. Alcançou com a irretocável prosa de Madame Bovary, um dos mais altos graus de penetração e análise psicológica da literatura universal.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

Título original: Wilhelm MeisterLejrjahre
Autor: Johann Wolfgand von Goethe (1749-1832)
Tradução: Nicolino Simone Neto
Editora: 34
Assunto: Romance
Edição: 1ª
Ano: 2006
Páginas: 608

Sinopse: Goethe narra as aventuras do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas de sua família, desejosa de que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro. Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e diversas ligações amorosas, Meister se vê às voltas com os mais diferentes extratos sociais, cumprindo uma trajetória que desenha o painel da sociedade de seu tempo.

Resumo da narrativa: Com uma habilidade fora do comum para desenhar de forma precisa os movimentos mais sutis e complexos da alma, Goethe narra a trajetória do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas da família, desejosa que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro.

Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e experiência amorosas, Wilhelm Meister se vê às voltas com as mais diferentes esferas sociais, que se sobrepõem e encontram eco em seu espírito – o círculo burguês de seus primeiros anos, a ciranda dos atores e atrizes, as cenas da vida no castelo e na corte, as reuniões secretas de sábios – , esferas que não deixam de constituir, cada uma delas, uma forma específica de representação teatral.

O teatro desempenha, dentro da obra, um papel decisivo na formação do herói, pelo menos até o Livro V. Já no livro VI, peça praticamente autônoma dentro do romance e na qual se convenciou ver o fim de sua primeira parte, têm lugar as “Confissões de uma bela alma”. Esta passagem retrata a educação de uma figura feminina – processo que se desenvolve em isolamento, uma vez que a personagem não deseja sofrer nenhuma interferência externa em sua formação – e funciona, na economia da obra, como um contraponto exato da figura de Wilhelm Meister, sempre pronto e mesmo ansioso por absorver tudo que o mundo lhe oferece.

Já nos livros VII e VIII, sobretudo com a entrada em cena da Sociedade da Torre, a narrativa sofre uma reviravolta e a perspectiva se desloca da formação individual para a formação coletiva, o que incita o leitor a ver com outros olhos o caminho trilhado até o momento – processo que encontra correspondência nas transformações por que passa então o próprio Wilhelm Meister, agora desinteressado da vida artística e disposto a tornar-se um homem preparado para a realidade, ou seja, para o mundo.

Comentários: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em duas partes (em 1795 e 1796), deu origem a um novo gênero literário: o romance de formação (Bildungsroman), a mais importante contribuição alemã à literatura mundial.

Romance enciclopédico, que sintetisa e supera o livro de viagens e de aventuras, o romance de amor, o romance social e o de tese estético-filosófica, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister não só configuram a totalidade social de uma época cmo nela situam com perfeição o ápice de uma concepção humanista da sociedade.

Goethe constrói seu livro em torno da questão da formação do indivíduo em condições históricas concretas, vez que a realização do homem não depende apenas da harmonia de sua vida interior, mas do modo como este se insere no contexto social. Pois é exatamente esta rara aliança entre valores individuais e coletivos que constitui o cerne deste livro que reúne com perfeição, a prosa das relações sociais e a poesia do coração.

Sobre o autor: Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt am Main, 28 de Agosto de 1749 — Weimar, 22 de Março de 1832) foi um escritor alemão, além de cientista e filósofo. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Juntamente com Schiller foi um dos líderes do movimento literário romântico alemão Sturm und Drang.

Excertos do livro:

“Da moral não se podia tirar nenhum consolo. Não podiam bastar-me a severidade pela qual ela pretende dominar nossa inclinação [a inclinação do ser humano é para o mal], nem a complacência com que ela aspira a transformar em virtudes nossas tendências. As noções fundamentais que me infundiram a convivência com meu amigo invisível [está falando de Deus] já tinham para mim um valor muito mais decisivo.”

“As perguntas: ‘Que significa isso?”, “Como se dá tal fato?”, trabalhavam em mim sem cessar noite e dia. Até que, por fim, acreditei avistar num relampejar que, aquilo que eu procurava, devia ser buscado na encarnação do Verbo eterno [Deus], que tudo, inclusive a nós, criou. [Goethe defende aqui a idéia da Criação e não da Evolução]. Que outrora o primordial se tenha colocado como habitante nas profundezas em que mergulhamos, as quais ele vê e abarca, sendo penetrado por nossa condição de grau em grau, desde a concepção e o nascimento até o túmulo [Goethe defende que a vida se dá a partir da concepção; e não o que os abortistas psicopatas advogam para deleite de seus instintos assassinos], e que, por estranho desvio, ele remonta às alturas luminosas, onde também nós haveremos de habitar para ser felizes: eis o que me foi revelado, como a uma distância crepuscular.” [Goethe está dizendo que a felicidade deve ser buscada em Deus e não neste mundo].

“Oh, por que, para falar de tais coisas, temos de empregar imagens que só anunciam situações exteriores? Onde estão ante Ele algo de alto ou de profundo, algo de escuro ou de claro? Só nós temos um alto e um baixo, um dia e uma noite. E é precisamente por isso que Ele se torna semelhante a nós, pois, caso contrário, não poderíamos ter parte alguma nele.”

“Mas como podemos tomar parte nesse inestimável benefício? ‘Pela fé’, responde-nos a Escritura. Mas o que é a fé? Ter por verdadeira a narrativa de um acontecimento, de que pode valer-me? É necessário que eu possa apropriar-me de seus efeitos, de suas conseqüências. Essa fé de apropriação tem de ser um estado próprio de ânimo, desacostumado para o homem natural.” [Goethe está falando de uma das três virtudes teologais: , Esperança e Caridade, únicas que conduzem a Deus]

“Pois bem, ó Onipotente, concedei-me então a fé”, supliquei um dia com o coração totalmente oprimido. Apoiei-me a uma pequena mesa, diante da qual estava sentada, e ocultei entre as mãos meu rosto coberto de lágrimas. Eu estava ali na situação em que se deve estar para que Deus escute as nossas preces, situação essa na qual raramente estamos.” [Que maravilha de passagem!]

“Sim, quem poderia descrever o que eu sentia então? Um impulso transportava minha alma para a cruz onde Jesus um dia morreu; [ ... ] Assim se aproximava minha alma Daquele que se fez homem e que morreu na cruz, e nesse instante eu soube o que era fé.” [pp. 380-381]

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

MACBETH

Título original: Macbeth
Autor: William Shakespeare (1564-1616)
Tradutor: Beatriz Viegas-Faria
Assunto: Drama
Editora: L&PM
Edição: 1ª
Ano: 2000
Páginas: 134 p.

Sinopse: Esta obra – baseada em fatos reais – traz a história de Lady Macbeth e seu marido Macbeth.

Macbeth é um general do exército escocês muito apreciado pelo seu monarca, o rei Duncan, por sua lealdade e seus préstimos guerreiros. Um dia, ele e Banquo, outro general, são abordados por três bruxas, que fazem os seguintes vaticínios: Macbeth será rei; Banquo é menos importante, mas mais poderoso que Macbeth; e os filhos de Banquo serão reis. Macbeth não compreende as confusas palavras das aparições, mas elas calam fundo dentro de si. Ele relata o estranho encontro para a mulher, Lady Macbeth, que, movida pela ambição de tornar-se rainha, seduz o marido a cometer o assassinato do Rei Duncan, pretendendo assim herdar o trono. Macbeth é levado então ao gesto fatal de traição ao rei, fato que desencadeará a tragédia de ambos e uma reviravolta na corte. O ambiente é sombrio, fúnebre, como as almas das personagens e seus sórdidos planos pela conquista do poder. As presenças do sobrenatural e de feiticeiras auxiliam na construção deste clima.

As personagens:
Duncan, Rei da Escócia.
Malcolm e Donalbain, filhos do rei Duncan.
Macbeth e Bancuo, generais do exército do rei.
Fleance, filho do general Bancuo.
Lady Macbeth: Esposa de Macbeth.
Macduff, Lennox, Ross, Menteith, Angus e Caithness, nobres cavaleiros da Escócia.
Siward, Conde de Nothumberland, general das forças inglesas.
O jovem Siward, filho do Conde.
Três bruxas.

Sentido da obra: Para compreender o sentido desta obra, é preciso antes estabelecer um sentido simbólico às personagens da história do livro. As obras de Shakespeare são assim: para compreendê-las, em sua plenitude, é preciso saber ler simbolicamente, atributo que não temos mais, pois a modernidade se encarregou de destruí-lo completamente.

Duncan, rei da Escócia, representa o espírito, ou seja, a santidade que vai ser destruída pelo casal Macbeth. O rei sempre tem o sentido simbólico de “espírito divino”; ele representa, também, a figura do pai. Portanto, matar o rei ou matar o pai, simbolicamente significa matar o espírito, ou seja, matar Deus. Foi isso que fizeram os revolucionários franceses em 1789. É preciso entender que a figura do rei, embora não seja divina propriamente dita, ela simboliza o divino, a santidade, pois aqui estamos falando simbolicamente.

Lady Macbeth, por outro lado, simboliza a matéria que é sempre corruptível. Para compreender esta simbolização, é preciso esclarecer que Lady MacBeth não simboliza a figura da mulher no sentido ontológico, mas a figura de Eva que, por sua vez, não é a primeira mulher. Para compreender isso, que a primeira vista parece ser paradoxal, é preciso recorrer ao Gênese das Sagradas Escrituras. A Eva não representa a primeira mulher. A primeira mulher já havia sido criada antes quando “... fê-lo à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea.” A Eva do paraíso, representa a matéria, o desejo humano ilegítimo. Assim, a matéria corrompe o homem para matar o espírito. É Lady Macbeth que corrompe o marido para matar o rei Duncan.

Macbeth, general do exército do rei, representa o homem que foi corrompido pelo desejo ilegítimo. É ele quem assassina o rei Duncan quando este o visita em seu castelo. A visita que o rei Duncan faz ao General Macbeth simboliza que o Céu visita a Terra, ou em outras palavras, o Espírito visita a Matéria, pois o hospedeiro é sempre o inferior.

Macduff, um nobre cavaleiro da Escócia, simboliza o Anjo Vingador (os anjos não são paridos de mulher). É ele quem mata o usurpador do trono.

Concluída a indispensável explicação, vamos ao sentido da obra propriamente dito:

A história Macbeth simboliza a tensão entre o céu e a terra. Entre o espírito e a matéria, entendendo que céu e espírito são sinônimos, assim como terra e matéria. No meio dessa tensão encontra-se o homem com os seus desejos que podem ser de duas naturezas: legítimos ou ilegítimos. Há, igualmente, um estado de tensão entre ter e não ter consciência moral. O general Macbeth, após assassinar o rei Duncan, passa a viver um terrível drama de consciência moral, entretanto, o mesmo não acontece com Lady Macbeth que não tem nenhum problema com o dilema moral, visto que ela que simboliza o desejo humano ilegítimo, ou seja, a matéria. Portanto, esta é uma história que mostra a tentativa de usurpação do céu pela terra ou em outras palavras, a tentativa de corrupção do espírito pela matéria.

Shakespeare, com inigualável maestria, mostra que o ser humano tem uma natureza dual: somos espírito e matéria. Por isso, vivemos em estado de tensão permanente, pois o tempo todo somos levados a usurpar o espírito pelo desejo material ilegítimo. Shakespeare nos mostra, também, que a vida humana é um processo de queda e redenção e quando acontece a morte do espírito, a ordem de todas as coisas se inverte. É preciso, portanto, recuperar a ordem original, e isso somente é possível no plano espiritual.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

ILUSÕES PERDIDAS

Título original: Illusions perdues
Autor: Honoré de Balzac (1799-1850)
Tradutor: Leila de Aguiar Costa
Assunto: Romance (Literatura estrangeira) – Publicado em 1843.
Editora: Estação Liberdade
Edição: 1ª
Ano: 2007
Páginas: 760

Sinopse: Ilusões perdidas é uma obra que retrata as desiluções das personagens ao longo de suas vidas.

O livro conta a história de Lucien Chardon de Rubempré, um talentoso poeta provinciano que sai do interior da França para tentar a vida como escritor em Paris, mas é surpreendido por uma realidade mais voraz do que a sua ambição. Descrevendo com maestria a França do início do século XIX, Balzac aborda o surgimento da indústria cultural e o papel do indivíduo na sociedade moderna.

Resumo da narrativa: Em toda a primeira parte, batizada de 'Dois poetas', Balzac descreve a vida na pacata Angoulême, colocando seu foco principal na vida de um sonhador, Lucien de Rubempré, que almeja fazer sucesso em Paris como poeta; de seu melhor amigo, David Séchard, que passa a tocar a ultrapassada tipografia de seu pai (um velho avarento, que não dá um ‘vintém’ ao filho, mesmo vendo-o em apuros); de Ève, irmã de Lucien, por quem David se apaixona; e o núcleo aristocrático comandado pela senhora de Bargeton, que será amante de Lucien e, como ele, sonha com os esplendores da capital. Balzac descreve, também, o embate de duas vontades, dois temperamentos, duas veleidades intelectuais. A dualidade: De um lado, a vida da província, a natureza, a vida privada; de outro, a vida parisiense, a sociedade, a vida pública.

Na segunda parte, 'Um grande homem de província em Paris', ele pinta os costumes íntimos da vida parisiense, com a chegada da senhora de Bargeton e Lucien. Nesse capítulo, o maior do livro, Balzac flagra com ironia a vida cultural da grande cidade, principalmente o meio corrompido do jornalismo e do espetáculo teatral.

Na última parte, 'Os sofrimentos do inventor', Balzac volta-se ao cotidiano de Angoulême, retratando as dificuldades de David Séchard com sua gráfica e o retorno de Lucien, após a experiência vivida na metrópole.

Comentários: Ilusões perdidas é um dos mais belos e importantes romances da história da literatura. Quase duzentos anos após a sua primeira edição, esta obra-prima do ciclo romanesco A comédia humana mantém toda a sua força graças ao estilo ferino de Honoré de Balzac e ao seu poder de desvendar as mazelas de uma sociedade em que homens e sentimentos tornam-se impotentes diante das corrupções e dos vícios.

Quando o escritor imaginou Ilusões Perdidas, tinha em mente comparar os costumes da vida provinciana com aqueles da vida parisiense. Mas ao narrar os hábitos de uma família e o cotidiano no interior de uma tipografia de província, o assunto se mostrou de extrema riqueza, e lhe abriu possibilidades enormes, que o fizeram não apenas descrever aquele universo restrito, mas esboçar um amplo panorama da sociedade francesa do começo do século XIX.

A proposição inicial que regia a idéia do livro cresceu de tal forma que resultou em três romances sucessivos, publicados separadamente (em 1836, 1839 e 1843), embora formassem um só conjunto, o das Ilusões Perdidas. As três partes que o compõem – “Dois Poetas”, “Um grande homem de província em Paris” e “Os sofrimentos do inventor” –, giram em torno de três personagens centrais: Lucien Chardon de Rubempré; sua irmã Ève; e seu grande amigo, depois cunhado, o jovem tipógrafo e inventor David Séchard.

Mas é sem dúvida Lucien que absorve todas as atenções do romance. Suas ações impulsivas, movidas por estímulos gerados no coração da própria sociedade, sustentam essa história cativante. O autor acompanha os deslocamentos desse jovem poeta, filho de um farmacêutico com uma de Rubempré, desde sua vida na província, onde, por seu talento e beleza, cai nas graças da senhora de Bargeton, representante local da nobreza, até sua ida a Paris, onde realiza o sonho de ser jornalista e é definitivamente engolido pela vaidade social. Além de retratar os desvios de um jornalismo que de romântico não tinha mais nada, Balzac se debruça com conhecimento de causa sobre o ofício da edição e do comércio do livro em seus primórdios.

Em meio a um universo assim construído, fácil é perder as ilusões, que são as de um tempo e de uma sociedade cujas esperanças eram depositadas nos valores morais, nos talentos, na felicidade, suplantados todos por uma nova e feroz dinâmica sócio-econômica. O mundo é mais que mundo romanesco: é simplesmente o mundo em suas cores naturais.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

MOLL FLANDERS

Título original: The Fortunes and Misfortunes of Moll Flanders
Autor: Daniel Defoe (1660-1731)
Tradução: Antônio Alves Cury
Editora: Abril Cultural
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 1971
Páginas: 362

Sinopse: Moll Flanders é a autobiografia de uma mulher “corrompida desde a juventude, ou antes, sendo ela mesma o rebento do vicio e da devassidão, aparece para relatar suas práticas viciosas e até descer às particularidades e circunstâncias que primeiro a tornaram perversa e à escala do crime por ela percorrida em três vintenas de anos”.

Neste romance, escrito em 1722, Daniel Defoe conta com mestria e riqueza de detalhes, a história dessa mulher que foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão), foi deportada oito anos na Virginia e que, enfim, fez fortuna, viveu muito honestamente e morreu arrependida.

Resumo da narrativa: A mãe de Moll é condenada à morte por roubo e está presa na penetenciária de Newgate, mas é beneficiada pelo costume conhecido por "pleading her belly", dirigido às prisioneiras grávidas. Moll Flanders (que não é seu nome de nascimento, como ela enfatiza, mas nunca revela qual é) nasce na prisão sendo entregue em seguida a parentes que acabam doando-a para uns ciganos com os quais convive durante três anos. A mãe de Moll é deportada para a América.

Após três anos, Moll é abandonada pelos ciganos numa cidade onde é recolhida pelo poder público que a entrega a uma mãe social, uma senhora empobrecida que cuida dela, paga pelo Estado. Aos oito anos às autoridades acham que Moll deve trabalhar e parar de ser sustentada pelo Estado.

Moll se rebela contra aquela idéia porque alimenta o sonho de ser uma “dama de qualidade”, inpirada no exemplo de uma vizinha que é prostituta. Este é o modelo que Moll escolhe para representar a “dama de qualidade” dos seus sonhos, pois ela não tem a minima idéia do que seja uma prostituta.

Quando Moll completa quatorze anos, a mãe social morre e ela é adotada por uma família rica e assim passa a infância e adolescência numa casa aristocrata, como serva. Muito bonita, ela é causa de disputa de dois irmãos da família. O mais velho a seduz com a promessa de casamento e passam a agir como se fossem casados ("act like they were married"), na cama, mas depois ele a convence a se casar com o irmão mais jovem que também a pede em casamento. Ela aceita, embora relutante, mas o sonho de ser uma “dama de qualidade”, fala mais alto. O matrimônio dura cinco anos, ao fim dos quais o seu marido, Robin, morre de causa que nós não sabemos. A família lhe oferece mil e duzentas libras, um dinheiro considerável que possibilita uma pessoa a viver pelo resto da vida, sem trabalhar. Ela aceita e deixa seus filhos aos cuidados dos sogros e começa a se passar por uma viúva rica para atrair homens com quem pudesse se casar e alcançar a segurança financeira.

A primeira vez que ela consegue seu intento, seu marido vai à falência e foge da Inglaterra. Da segunda vez, ela é levada a Virginia (nos EUA) por um bom homem que a apresenta a sua mãe. Após dois filhos, Moll descobre que sua sogra é na verdade sua mãe biológica, o que torna seu marido seu meio-irmão. Ela se separa e volta para a Inglaterra, deixando suas duas crianças para trás. Ela vai morar então em Bath, Somerset, e procura por um novo marido.

Ela se envolve com um homem casado, cuja esposa está confinada por insanidade. Mantendo amizade e desenvolvendo um tipo de amor platônico, os dois acabam tendo três filhos, dos quais apenas um sobreviveu. Mas o seu amante não fica com ela e acaba voltando para a esposa, antes porém, oferecendo-lhe um bom dinheiro.

Moll, agora com 42 anos de idade, conhece então um banqueiro casado e adúltero. Usando do dinheiro dele enquanto espera que se divorcie, Moll na verdade quer atrair outro cavalheiro para casar. Ela então conhece e se casa com um suposto homem rico. Ao contar para ele que na verdade não tinha dinheiro, o seu marido se revela também como aventureiro, que havia contraido o matrimônio pois queria se apossar do seu rico dote, e a abandona, deixando-a grávida novamente. Moll deixa o banqueiro acreditar que ela continua disponível, esperando que seu marido retorne.

O filho de Moll nasce quando a esposa do banqueiro comete sucídio, logo depois que ele lhe pedira o divórcio. Moll se casa com o banqueiro. O banqueiro morre em ruina financeira após cinco anos e dois filhos.

Sem esperanças, Moll se torna uma ladra e acaba sendo presa indo para a prisão de Newgate, como sua mãe. Na prisão ela reencontra um dos seus maridos. E os dois são condenados ao desterro, enviados para as colônias da América. O casal é levado a uma fazenda na Virgínia, onde vivem por muitos anos. Aos 60 anos, ela retorna à Inglaterra e seu marido. Com 68 anos, continua na América por algum tempo para organizar os negócios “Ele virá também para a Inglaterra, onde decidimos passar o resto de nossos dias, numa sincera penitência pela má vida que vivemos”.


Interpretação da obra: A obra não é um tratado sobre o dilema moral, mas sim o tratado das possibilidades de um projeto de vida humana. Portanto, o relato da vida de Moll Flanders é um modelo de vida real e concreto possível de acontecer com qualquer ser humano.

Analisemos, primeiramente, as principais características de Moll Flanders:

a) ela não é perseguida pelo destino.
b) de alguma maneira ela tem sorte.
c) ela não é uma pessoa inocente, mas também não é uma pessoa maligna.
d) ela é inconseqüente.
e) ela é oportunista.
f) ela é simplória.
g) ela tem uma irresponsabilidade diante da vida.
h) ela não possui nenhuma consciência moral.
i) ela tem pouco poder em relação a vida (seus meios de ação são muito pequenos).
j) ela tem como ambição, apenas, ser uma grande dama (é o que ela tenta fazer a vida inteira: ser uma grande dama).


Para compreender melhor a obra Moll Flanders, é preciso antes compreender o modelo do poder da personagem, descrito a seguir:


Modelo do Poder da Personagem que está no livro A POÉTICA de Aristóteles e sistematizado por Northrop Frye no livro chamado ANATOMIA DA CRÍTICA.

Aristóteles, ao fazer a análise do teatro grego, dizia que as personagens teatrais (do teatro trágico grego, pois ele não fala da comédia) têm uma hierarquia de poderes. Trata-se de níveis de poder do herói.

As cinco hierarquias de poder do herói são:

O primeiro nível é o divino, onde a personagem é mais poderosa. O que é o nível de poder divino? É o nível onde está Deus propriamente dito. Neste nível a personagem pode fazer o que bem entender, tem total autoridade sobre a sua vida, tem total capacidade de decisão e os poderes do herói são plenos.

O segundo nível de poder da personagem é aquela personagem que embora não seja Deus, tem uma ligação com Deus. Está de alguma maneira inspirado por Deus ao ponto de poder fazer coisas que parecem coisas divinas, como por exemplo, fazem os profetas. Northrop Frye chama de herói mítico este tipo de herói. Embora seja humano, ele consegue, de vez em quando, fazer coisas que só os deuses são capazes de fazer. Por exemplo: Moisés consegue separar as águas do Mar Vermelho. Esses poderes são temporários, ocasionais e circunstanciais.

O terceiro nível de poder é o imitativo alto. O que é imitativo alto? É aquela personagem que é humana, mas que é capaz de fazer coisas notáveis, mas todas as coisas notáveis que ela faz, são sempre coisas notáveis humanas. O herói deste tipo é o ser humano excepcional. Exemplo: um herói de guerra, um grande poeta, um grande artista. Alguém que é muito grande em relação a média dos outros seres humanos, mas a sua demonstração de grandeza nunca é acima daquilo que o ser humano é capaz de fazer. É o ser humano superior.

O quarto nível de poder é o imitativo baixo. É o sujeito comum, que não tem nenhuma habilidade extraordinária e sua capacidade de ação é limitada. Se o mundo fosse uma peça de teatro, a maior parte das pessoas seriam deste tipo.

O quinto nível é o tipo irônico inferior. De todas as personagens é o mais fraco. Está abaixo da capacidade dos outros. É irônica porque ou é deficiente, ou porque é muito pobre, ou porque é prisioneiro de alguém, ou porque é criança. Para as crianças todas as coisas da vida normal são absolutamente terríveis, assustadoras ao extremo, porque aquilo que parece a nós, adultos normais, uma besteira, para as crianças aparenta o maior dos terrores. Aquilo que nós chamamos de educação, é tirar a criança desse terror, é mostrar e ela como é que uma pessoa normal e outros tipos de personagens se comportariam naquela situação.

Dentro do quadro apresentado, Moll Flanders é uma personagem irônica. Ela não tem a viabilidade de lidar com o mundo de um modo que a favoreça. Está nas mãos das decisões que o mundo fará por ela. Ela está nas mãos das circunstâncias porque é incapaz de controlá-las e muito menos entendê-las.

Não é preciso ser como Moll Flanders para ser uma personagem irônica. Sócrates, por exemplo, no julgamento era uma personagem irônica. Jesus Cristo, na condição que estava na sua condenação, era uma personagem irônica relativamente àquela situação, ou seja, numa condição absoluta de poder fazer alguma coisa.

Apesar disso tudo, ela não é uma personagem perseguida pelo destino no sentido negativo da palavra. No momento em que ela mais irônica, no momento em que ela é ainda pequena, mesmo assim ela não recebe um tratamento cruel. De certa maneira as coisas dão certo para ela. De alguma maneira ela tem sorte, porque todas as coisas boas que acontecem com ela independem de sua ação direta. Portanto, ela é uma criatura completamente nas mãos do destino.

O destino funciona de um modo misterioso e o modo como o destino funciona, nós não entendemos. Talvez a gente entenda no dia do juízo final, nós não sabemos. Talvez um belo dia a gente entenda, mas de modo geral ele é completamente obscuro. Por que aconteceu com aquela pessoa, naquele dia, daquele jeito? Ninguém sabe. Daí a sensação que se tem, quase sempre, das tremendas injustiças da vida, e essas sensações de injustiças na vida naturalmente carregam as pessoas para uma rebelião contra Deus.

Como é que pode Deus fazer uma coisas dessas? Como é que pode um ônibus cheio de criancinhas cair numa ribanceira e morrerem todas? O que é que elas fizeram de mal para terem esse destino?

Como nós não entendemos o que foi que aconteceu, porque nós não sabemos como é esse mecanismo que é secreto, nossa primeira tentativa é julgar que ou Deus é mau ou Deus não existe na verdade.

O sentido simbólico que o Daniel Defoe quer dar a Moll Flanders é que ela é vitima dos jogos da providência que a vida traz a ela, todos eles preparatórios para a sua conversão que acontece na prisão após ter sido condenada à morte. É neste momento que ela faz a descoberta de Deus. É isso que o autor quer nos dizer sobre a Moll Flanders como primeira interpretação.

No entanto, o que essa história tem de mais importante é entendermos profundamente as ações humanas qualquer que seja o plano ou qualquer que seja o tipo de ação que alguém faz na vida, que tudo depende, antes de qualquer coisa e como primeira condição, de uma coisa chamada “Horizonte de Consciência”.

“Horizonte de Consciência” é o quanto você consegue ver de sua própria vida. Neste horizonte de consciência há dois extremos: Um dos extremos caracteriza aquelas pessoas que tem um horizonte de consciência muito maior que a sua própria vida que está vivendo naquele momento. É aquele sujeito que está vendo o mundo numa perspectiva mais ampla do que a de seus contemporâneos. Essa pessoa tende a entrar em conflito com o mundo em que ela vive. Essa pessoa é uma espécie de “Herói Conflitivo”, porque ele está vendo coisas que os outros não vêem e irá exigir coisas que parecem aos outros, coisas sem sentido e sem cabimento. É o caso daquelas pessoas que tem um projeto político, civilizatório (seja bom ou mau, tanto faz). Como ela está olhando de uma perspectiva mais ampla, a tendência dessa pessoa é entrar em conflito com o mundo que ele vive.

HERÓI CONFLITIVO <== Horizonte de Consciência ==> HERÓI INERME

No extremo oposto, está uma pessoa exatamente como a Moll Flanders que tem um horizonte de consciência absolutamente pequeno, tanto é que ela não tem a menor idéia, no início, de como funciona o mundo em volta dela.

A esse extremo oposto ao “Herói Conflitivo”, dá-se o nome de “Herói Inerme” que é aquela personagem que não tem nenhum meio de defesa e que, portanto, não entende nada do mundo que está em volta.

Se, por um lado, o herói conflitivo é aquele sujeito que entende tudo o que os outros não entendem, o herói inerme, por outro lado, é aquele sujeito que não entende nada o que os outros entendem.

O militante político de longo prazo é assim. No processo político há aqueles sujeitos que acham que entendem tudo o que estão fazendo e que montam um plano para tomar o poder em cinqüenta anos, e que tomam decisões de curto prazo que ninguém entende nada. E quem é que executa essas ações de curto prazo? São aqueles que não entendem absolutamente nada do que está acontecendo em longo prazo e que, portanto, são naturalmente bons executores de ações concretas e práticas.

Há, portanto uma diferença de horizonte de consciência enorme entre as personagens literárias.
Estes são, portanto, os dois extremos de possibilidades do Horizonte de Consciência.

E a Moll Flanders o que é? A Moll Flanders se enquadra como Herói Inerme, pois o seu Horizonte de Consciência é curto. Ela não tem uma perspectiva de longo prazo, ela está apenas reagindo às coisas que o dia-a-dia vem trazendo.

É preciso deixar muito claro que não se está dizendo que só quem tem o horizonte de consciência longo, terá sucesso. Pode dar certo, mas também pode dar muito errado. O mesmo pode acontecer com quem tem o horizonte de consciência curto. Pode dar certo ou pode dar errado.

Quem, por exemplo, dá errado? O Julien Sorel, do Vermelho e o Negro; o Raskolnikov, do Crime e Castigo. Estes dois têm o horizonte longo, mas mesmo assim quebram a cara. E quem dá certo? A Moll Flanders que tem o horizonte de consciência curto é no final dá certo.

O que se quer dizer que existem possibilidades de dar certo ou dar errado, portanto, não há garantias dos resultados.

O sujeito que tem um horizonte de consciência longo, está sempre desafiando o destino. Quem tem o horizonte de consciência curto, não desafia o destino nunca. Deixa-se ser levado pela sorte.
Nunca subestimar o destino, pois o destino será sempre o fator central que irá produzir determinados efeitos na vida da gente. E esses efeitos são imprevisíveis.

Uma vez que você definiu qual é o seu horizonte de consciência, vem a segunda parte do plano da ação humana, ou seja, aquilo que você quer ser, a sua ambição, não no sentido negativo, mas no sentido daquilo que você deseja ser. Portanto, aquilo que você deseja ser, a sua ambição, depende fundamentalmente do seu plano de consciência.

É muito difícil falar sobre isso aqui no Brasil, porque noventa e nove por cento das pessoas que você possa conhecer, tem como plano de vida, fundamentalmente, arrumar dinheiro. Aquilo que você quer ser é alguma coisa econômica.

Quando você acha que ser alguma coisa econômica é o objetivo da sua vida, você está invertendo as prioridades da existência e está casando com os meios, porque a sobrevivência econômica não é preceito de vida, é apenas um meio para você ser alguma coisa.

O que as pessoas aqui no Brasil pensam, é o objetivo da vida real é arrumar um emprego em algum lugar, ter uma profissão. Quando você pergunta a alguém o que ele quer ser, um médico, um engenheiro, ele está pensando basicamente na sua situação econômica, ele quer ser alguma coisa econômica.

Por esse motivo, a maior fonte de frustração humana aqui no Brasil é o fracasso econômico. Essa é a fonte de frustração humana maior de todas, porque sendo fracassado economicamente e como o sucesso econômico era o objetivo central de sua vida, então você não pra nada, quando na verdade ninguém tem a preocupação com o fracasso ontológico.

Todos os objetivos de vida que são de natureza não-monetária, portanto reais (ser o maior escritor, ser o maior poeta, ser o maior pintor), eles são todos depreciados e acabam não fazendo nenhuma diferença porque eles são automaticamente substituídos por objetivos exclusivamente econômicos.

Esse é um problema terrível no Brasil, porque o país não consegue entender que o que faz com que a sociedade se desenvolva é a quantidade de coisas que nós queremos SER e não o que nós gostaríamos de TER. Não há nenhum problema em Ter, não é essa idéia; o que se quer dizer é que no Brasil não se consegue conceber objetivos humanos que não sejam exclusivamente econômicos, pois somos uma sociedade exclusivamente voltada para questões econômicas.
Quando se estabelece como objetivo de vida arrumar um emprego, preferencialmente na função pública, isso passa a ser um problema terrível porque por esse critério acaba virando todo mundo funcionário público.

No fundo o que Moll Flanders quer é arrumar um marido. Isso não é errado em si próprio, mas o que acontece é que não dá para você agir assim como se o país todo fosse Moll Flanders, pois não acontece nada, o pais não existe que só tem gente assim.

O problema no Brasil é que aqueles que não têm objetivos econômicos têm objetivos revolucionários. E aí é pior ainda. É melhor ser um país de Moll Flanders, do que um país de José Dirceu, que quer implantar aqui o socialismo, a sociedade perfeita sem classes e outras psicoses.
Um militante político tem na cabeça dele um plano para o Brasil nos próximos trezentos anos, ou seja, esse horizonte de consciência que ele tem do país é enormemente maior do que daqueles que pagam impostos corretamente.

Aquele sujeito que só está querendo o dinheirinho dele, voltar pra casa bonzinho, que paga o imposto direitinho, está financiando o projeto do outro que quer produzir essas revoluções na terra, que quer produzir mundos novos. Portanto, o horizonte de consciência longo, não implica, necessariamente, numa coisa boa, numa coisa saudável. Pode implicar exatamente no contrário.

Seguindo a equação:

Do horizonte de consciência, nasce aquilo que você quer ser.

A equação funciona assim:

A partir do meu horizonte de consciência, eu estabeleço um determinado grau de ambição. Esse grau de ambição será maior ou menor, conforme o grau de consciência que eu tenho. Mas esse grau de ambição, por outro lado, ele precisa de meios para ser implementado. E esses meios para sua implementação depende da adequação e dos meios que eu tenho e o tamanho da minha ambição.

Se a Moll Flanders quisesse ser rainha da Inglaterra, ela não teria sucesso algum, pois os meios dela não davam para isso. No entanto, porque ela acaba dando certo no final? Porque ela tem os meios para conseguir aquilo que ela desejava que era a ambição de ser uma grande dama (dama de qualidade). Ser uma grande dama era possível para alguém como a Moll Flanders. Ela era bonita, educada, não era uma pessoa desagradável, tinha certa simpatia, era uma pessoa desejável. Havia uma adequação entre os seus meios e a sua ambição.

A ambição da Moll Flanders não era ser uma pessoa afetiva (tanto que ela abandona todos os seus filhos). Sua ambição, de verdade, era ser uma grande dama. É uma ambição infantil, simplória, primária porque no fundo ela está querendo resolver o problema da sua infância, mas é a única ambição real que ela tem. É essa ambição que ela tenta resolver pelo resto de sua vida. Como é que ela faz isso? Ela faz isso com um grau de consciência tão pequenininho que ela vai se deixando levar como alguém que é vitima inerme das circunstâncias. Ela nunca se opõe a nada. Ela vai sempre deixando acontecer porque ela imagina que a situação da vida vai ser resolvida desse jeito. Ela não tem visão de consciência para entender o que está acontecendo em volta dela. O que não quer dizer que ela não possa dar certo. No final deu certo, ela acabou ficando rica, uma grande dama. Ela volta para a Inglaterra com o seu projeto de vida resolvido, porque não dava para ser uma grande dama na roça (o que era a Virgínia na época).

O autor quer nos dar a idéia de que ela é salva pela sua recuperação moral, que acontece quando ela é presa e condenada à morte. O que fica estabelecido na obra é que Moll Flanders foi coerente com a sua ambição e que deu certo no final. A mãe dela que era uma picareta, também deu certo. Todavia, há que se considerar que poderia dar errado também, para ambas ou para uma delas.
O livro não é um tratado sobre o dilema moral, embora tenha havido horizontes de consciência moral. Uma das possibilidades é a moral, mas não é só essa, porque por princípio o horizonte de consciência se refere a tudo que se possa imaginar, todas as circunstâncias em volta de sua própria vida.

Após a prisão, o horizonte de consciência de Moll Flanders se alargou enormemente. Fato que pode ser atribuído a intervenção divina quando ela se converteu. Nessa hora ela entende o que aconteceu com ela até então.

Às vezes o modo de se alargar o grau de consciência é pelo modo mais trágico, tal como aconteceu com Moll Flanders.

O Brasil precisa fazer isso. Aumentar o horizonte de consciência. Essa é a coisa mais urgente a fazer para que possamos recuperar aí alguma possibilidade de sucesso do país. Se isso não for feito, o país ficará eternamente voltado para assuntos econômicos, uma espécie de desgraça que assola o país. A idéia de que o objetivo da vida é arrumar um emprego, ter um salário, ter alguma coisa na qual possa se sustentar, não é objetivo de vida nenhum. Isso é apenas um meio de vida, mas os meios de vida são úteis, mas são perigosos: o automóvel é um meio de transporte, mas pode também ser um risco.

Agora, se seu objetivo é, por exemplo, “melhorar a educação do povo brasileiro”, esse é um objetivo completamente isento de qualquer risco, porque este você controla cem por cento, embora você não tenha garantia de realizá-lo, porque o destino pode impedi-lo (você não sabe o que vai acontecer com você. Pode ter um AVC etc.). Por outro lado, você não controla o meio, porque o meio é coletivo; o seu veículo está onde há outros veículos circulando.

Os meios pelos quais é possível criar um horizonte maior de consciência são os seguintes:

1. Ler a maior quantidade possível de romances: (o romance descreve as possibilidades humanas; ele vai abrindo um leque de possibilidades onde justamente aumentamos a nossa capacidade de criar maior potencial de vida).

2. Nunca estabeleça um projeto de vida que seja do tamanho da sua vida: se você é uma pessoa que está ligada à educação, estabeleça como objetivo “Educar o Brasil”, “Educar o Paraná”, “Preservar o cristianismo”, “Recuperar a cultura brasileira” etc. e não dar aquela aula na quinta-feira à tarde e acabou.

3. Nunca perca a idéia de perguntar sempre qual é o sentido da vida: seu objetivo de vida não poder ser receber o salário no dia 30, senão você acaba sendo a Moll Flanders.

Conclusões:
Por mais que a vida humana possa ser de alguma maneira direcionada, controlada, conduzida por ações de maior ou menor consciência, não há dentro dessas ações nenhuma garantia de sucesso, porque paralelamente as ações que nos compete e nos pertence, existem as ações do destino.

Portanto, as nossas ações na vida não garantem o sucesso porque é impossível controlar o destino. O destino está o tempo todo funcionando de modo misterioso e incontrolável. Assim, não somos capazes de produzir o destino que queremos, mesmo que façamos tudo certo na vida, porque não há correspondência entre as ações e os resultados das ações. Nós controlamos e somos responsáveis pelas nossas ações pessoais, mas nós não controlamos o destino porque a providencia agirá por conta própria independente dos nossos desejos.

A vida humana é absolutamente incontrolável, nós nunca saberemos o que acontecerá conosco no próximo minuto. Portanto, é preciso desistir dessa idéia de que nós somos capazes de produzir o destino que nós queremos.

Essa idéia de que é possível produzir o próprio destino é muito comum nos livros de auto-ajuda. Essa conversa de auto-ajuda que você pode tudo que você quer e por ai afora. Nada mais ingênuo e picareta no mundo.

Às vezes nos rebelamos contra o destino porque ele parece ignorar as regras fundamentais do mérito e do demérito. Nós somos criados nessa idéia. Ela não está errada, mas é preciso considerar que há um outro mundo que age sobre nós. A idéia de que aqui se faz e aqui se paga, é uma idéia que tenta resumir a nossa vida humana concreta aqui neste mundo em que vivemos. Pode existir uma outra vida onde as coisas se realizam com justiça. Como nós não queremos admitir isso, nos comportamos de modo unilateral.

A realidade não é assim. A realidade é constituída de pequenos mistérios e grandes mistérios. Como os grandes mistérios estão, de alguma maneira invisíveis, nós nos recusamos de dar a eles uma noção de realidade e ficamos profundamente aborrecidos quando vemos um sujeito que procedeu muito mal e se deu muito bem. É preciso compreender, também, que não há uma ligação direta entre o sucesso desta vida e o seu comportamento moral. É possível que você seja um sujeito mau e se dê mal, como também ser um sujeito mau e se dar bem, como você pode ser alguém que é bom e se dê bem e, finalmente, seja bom e se dê mal. Essas são, na verdade, as quatro possibilidades da vida humana.


Sobre o autor: Daniel Defoe (1660–1731) - Romancista inglês nascido em Londres, considerado um precursor do romance realista inglês e do jornalismo moderno. Filho de um pequeno comerciante e membro de uma família dissidente da Igreja Anglicana e, tentou preparar-se para seguir a carreira eclesiástica, mas devido a uma educação desordenada, desistindo da carreira religiosa. Decidiu estabeleceu-se como comerciante (1683) e viajou muito pela Europa com diversos empreendimentos comerciais, mas em nenhum deles teve pleno êxito. Atraído pela política, estabeleceu-se em Londres (1700) e tentou viver como jornalista e libelista. Metido em intrigas políticas, começou a escrever numerosos panfletos, e foi encarcerado em numerosas ocasiões por dívidas e por motivos políticos. Acusado de espionagem foi encarcerado mais uma vez e condenado ao pelourinho. Enquanto aguardava o cumprimento da pena, redigiu o célebre Hymn to the Pillory (1703), que transformou sua sentença em um retumbante triunfo para ele, embora ainda tenha permanecido preso por quase um ano, em Newgate. Em liberdade e falido, fundou (1704) o periódico The Review, de tendência conservadora, onde expressou finalmente as suas excepcionais qualidades como jornalista. Ganhou celebridade internacional como romancista com a publicação de sua obra mais conhecida Robinson Crusoe (1719) e, então, resolveu retirar-se da vida pública para se dedicar exclusivamente à literatura. Com Moll Flanders (1722) deu um passo decisivo na história do romance social. Apesar da sua vida turbulenta foi um escritor muito prolífico e morreu em Londres, mantendo em seus últimos anos de vida uma intensa atividade literária, publicando obras como A Journal of the Plague Year (1722) e Roxana (1724).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

CERVANTES

Título original: Cervantès
Autor: Jean Canavaggio
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Editora 34
Assunto: Biografias
Edição: 1ª
Ano: 2005
Páginas: 384

Sinopse: Soldado na famosa batalha de Lepanto, onde perdeu a mão esquerda; cativo dos berberes em Argel, e de seus compatriotas na famigerada prisão de Sevilha, a vida de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor do Quixote, é solo fértil para um sem-número de lendas e mitos. Neste livro, o professor Jean Canavaggio levanta minuciosamente toda a documentação acerca do escritor, sobretudo a contribuição monumental, mas por vezes fantasiosa, do grande cervantista Astrana Marín, distinguindo criteriosamente o fato da ficção.

Combinando rigor acadêmico e talento narrativo, Canavaggio acompanha toda a trajetória de Cervantes, dando novo sentido não só a passagens já conhecidas, mas também a aspectos controversos — como os dois assassinatos em que seu nome esteve envolvido; os amores ilícitos das mulheres de sua família, sempre às voltas com fidalgotes da corte; sua paixão pelo jogo de cartas — e outros apenas hipotéticos, como um possível encontro com Shakespeare, em 1605, ou sua presença numa célebre pintura de El Greco.

O resultado é um estudo impecável, que equilibra história, literatura e biografia para traçar, além de uma rica análise de sua obra, o retrato de um Cervantes de carne e osso e um quadro extremamente vivo do fascinante Século de Ouro espanhol.

Comentários: Em 1605, há exatamente quatrocentos e cinco anos, Miguel de Cervantes Saavedra presenteava o mundo com a primeira parte do seu D. Quixote. De lá para cá, muita tinta correu sobre este que é considerado o primeiro – e talvez o maior – romance moderno, na tentativa de entender o encanto e o poder desse livro. A dupla formada pelo Cavaleiro da Triste Figura e seu Fiel Escudeiro deixou de andar apenas pelos campos de Espanha para percorrer cada região do planeta. Sobre as andanças de seu autor, entretanto, pouco se sabe, de modo que ao longo dos séculos a vida de Cervantes se tornou tão lendária quanto a de suas personagens.
Assim, desde os trabalhos inaugurais de Gregorio Mayans y Ciscar e Juan Antonio Pellicer no século XVIII, várias gerações de pesquisadores em todo o mundo vêm somando esforços, formulando hipóteses e buscando preencher lacunas para oferecer a sua própria interpretação da vida do escritor. O cervantista Jean Canavaggio, um dos maiores estudiosos da cultura do século de Ouro espanhol, não é apenas mais um desses detetives-desbravadores a adentrar o labirinto. Seu Cervantes é reconhecidamente a mais importante biografia escrita na atualidade sobre o autor de D. Quixote, tendo recebido o prestigioso prêmio Goncourt quando de sua primeira publicação, em 1986. Desde então, o livro foi traduzido para o inglês, o alemão, o italiano e o japonês, em em toda parte a acolhida do público só reafirmou o parecer dos especialistas.

Consciente de que “explicar Cervantes e uma aventura arriscada”, e procurando evitar armadilhas de seus predecessores, Canavaggio segue um plano de trabalho bastante claro. Em primeiro lugar, estabelecer com o máximo rigor possível tudo o que dele se sabe, discernindo cuidadosamente entre a lenda, o verídico e o verossímil. Em segundo lugar, situa, em seu meio e em sua época, esse escritor que levou uma vida cheia de reviravoltas – verdadeira “testemunha de um tempo de dúvidas e crise” – e que, sob vários pontos de vista, encarna e resume o próprio espírito do Século de Ouro. Por último, Canavaggio conduz o leitor ao encontro de Cervantes até o limite do possível, sem distorcer os dados, sem querer “desvendar seu mistério a todo custo”. Ao contrário: com grande sobriedade, acompanha, passo a passo, o movimento dessa existência que, “de projeto que era enquanto ele vivia, converteu-se num destino” que este belo livro procura tornar inteligível.

O presente volume toma por base o texto francês original e, como o próprio autor observa em nota escrita especialmente para esta edição, incorpora as muitas atualizações feitas desde seu lançamento. Além de levar em conta os ensaios de maior relevo publicados nos últimos vinte anos, Canavaggio lança nova luz sobre determinadas passagens, como os contatos que Cervantes entretém com a corte de Felipe II ao regressar do cativeiro em Argel; suas relações com homens de negócios que, durante a estada do escritor em Valladolid, fizeram dele um intermediário ativo em certas transações financeiras; e, no terreno literário, sobre a redação, já no limiar da morte, de Los trabajos de Persiles y Sigismunda, a derradeira obra de Cervantes, que recentemente vem suscitando uma renovada atenção por parte da crítica.

Apesar do grande número de estudos publicados sobre o “príncipe dos engenhos”, como já foi chamado o autor do Quixote, poucos se equiparam a esta biografia de Jean Canavaggio – que consegue, ao mesmo tempo, informar com rigor e narrar com emoção.

Sobre o autor: Jean Canavaggio nasceu em 1936. Foi diretor da Casa de Velázquez, em Madri, e é atualmente professor na Universidade Paris X-Nanterre. É membro de honra da Hispanic Society e correspondente da Real Academia Espanhola e da Real Academia de História. Coordenou uma Histoire de la littérature espagnole (Fayard, 1993-1994) e a edição em francês das obras completas em prosa de Cervantes (Gallimard, Bibliothèque de la Plèiade, 2001), colaborando também na edição de D. Quixote coordenada por Francisco Rico (Instituto Cervantes, 1998). Entre suas obras se destacam, além desta biografia — que recebeu o prêmio Goncourt em 1986 —, Cervantes dramaturgue: un thêatre à naître (Presses Universitaires de France, 1977) e Don Quichotte, du livre ao mythe (Fayard, 2005).

Sobre o tradutor: Rubia Prates Goldoni é doutora em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo e realizou parte de seus estudos acadêmicos na Universitat Autònoma de Barcelona. Ensinou Língua Espanhola, Literatura e Prática de Tradução na UNESP. Como tradutora, conta com cerca de trinta títulos vertidos do francês e do espanhol, nas áreas de literatura e ciências humanas.
Recebeu o prêmio FNLIJ Monteiro Lobato 2009 - Melhor Tradução Jovem, por Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra (Martins).