sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O REI LEAR

Autor: William Shakespeare (1564-1616)
Tradução: Millôr Fernandes
Editora: L&PM
Assunto: Drama (Teatro inglês)
Edição: 1ª
Ano: 1997
Páginas: 140


O drama O Rei Lear foi escrito em 1605 e encenado na corte no dia 26 de dezembro de 1606.

Sinopse: O rei Lear resolve abdicar de toda a sua autoridade, posses de terras e funções do estado e decide dividir o reino entre as suas três filhas Goneril, Regana e Cordélia, confiando assim nas forças mais jovens para poder caminhar, mais leve, em direção à morte. Durante a assembléia anuncia que a filha que declarar maior amor filial por ele, será aquinhoada por uma recompensa maior.

A resposta de Cordélia, a filha mais jovem e última a falar, não lhe agrada e, por conseqüência é deserdada e expulsa do reino, antes, porém, Lear declara que ela não é mais sua filha.
A decisão do rei desencadeia uma discussão com o conde de Kent que acorre em defesa de Cordélia censurando a atitude de Lear. Este, por sua vez, expulsa igualmente o conde do reino.
A progressiva dificuldade de discernir as atitudes e os discursos daqueles que o cercam, o embotamento da percepção da sinceridade e da falsidade aliada a suspeita errônea de onde viria a traição, desencadeiam todo o drama se desenrola na obra.

Personagens principais: 1. Rei Lear: (Um homem infantilizado pelo poder. Representa a segunda casta, a casta guerreira); 2. Cordélia: (Filha caçula de Lear. Representa a sinceridade, a pureza, a honestidade e a verdade); 3. Edmundo: (Filho bastardo de Gloucester. Representa a falsidade, a traição, a insídia e o caos); 4. Goneril: (Filha mais velha de Lear e organizadora do caos); 5. Osvaldo: (Criado de Goneril); 6. Duque de Albânia: (Marido de Goneril); 7. Regana: (Filha do meio de Lear e co-autora do caos juntamente com a irmã Goneril); 8. Duque de Cornualha: (Marido de Regana); 9. Conde de Gloucester; 10. Edgar: (filho legítimo de Gloucester e rufião); 11. Conde de Kent: (Amigo leal de Lear. É o único elemento unificador da história).

Interpretação da obra: Trata-se de uma história relativa a rebelião contra o espírito e o desvio fundamental da Ordem que culmina com a queda do Homem.
A história do rei Lear não é uma história a respeito da velhice. A velhice do rei tem significação de degenerescência da ordem e do sentido de justiça. Portanto, é uma história que trata das possibilidades de recuperação do Homem após a sua Queda.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

UM RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM

Título original: A portrait of the artist as a young man
Autor: James Joyce (1882-1941)
Tradutor: Bernardina da Silveira Pinheiro
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Editora: Alfaguara Brasil
Edição: 1ª
Ano: 2006
Páginas: 272

Sinopse: Romance de estréia do escritor irlandês publicado em 1916, narra experiências de infância e adolescência de Stephen Dedalus, alter ego do autor; termina com a recriação de seus ritos de passagem para a idade adulta, que incluiriam deixar para trás a família, os amigos e a Irlanda e ir viver no continente.
O livro conta o processo de transição do jovem Stephen Dedalus para a maturidade e o autoconhecimento. Ele deseja profundamente ser um artista, mas, primeiro, precisa vencer as forças que reprimem sua imaginação - as convenções da Igreja Católica, da escola, da sociedade. A obra reflete a profunda relação de amor e ódio que o autor manteve durante toda a vida com sua terra natal, Dublin, e com a cultura que o formou.
Comentários:
Em janeiro de 1904, Joyce escreveu um ensaio autobiográfico que intitulou de “A portrait of the artist”. Era a primeira etapa na elaboração daquela que seria uma de suas obras-primas literárias: “Um retrato do artista quando jovem”. Com 22 anos de idade, Joyce descobriu que podia se transformar em um artista escrevendo sobre o processo de se tornar um artista. A recordação da infância e juventude de um menino católico na Irlanda, seu embate com as noções de pecado e santidade e o desejo de expressão individual.
O Retrato do Artista é um romance de formação (Bildungsroman), tipo de romance em que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, geralmente passando por fases de sua vida (infância, adolescencia, adulta, maturidade). No caso especifico de James Joyce neste livro, até os 14 anos de idade.
Nesta obra, Joyce apresenta o uso sistemático do monólogo interior - desde o primeiro capítulo somos introduzidos na mente de Stephen Dedalus e convidados a acompanhar seus pensamentos, reações e os processos psíquicos de sua consciência. Trata-se de um dos primeiros exemplos da técnica narrativa do fluxo da consciência.

Sobre o Autor:
James Joyce (1882-1941) nasceu em uma abastada família católica, no subúrbio de Dublin, Irlanda. Educado em colégio jesuíta, estudou Filosofia e Línguas na University College. Já nos primeiros anos de faculdade, já publicava artigos na imprensa e começava a escrever os poemas líricos mais tarde reunidos no livro Câmara de música. Morou em Paris, em Trieste e em Zurique, onde a família viveu na pobreza, enquanto ele escrevia Ulisses.
É considerado um dos autores de maior relevância do século XX, e seus textos influenciaram, de uma maneira ou de outra, todos os escritores que lhe sucederam. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Um retrato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans wake (1939). Os três últimos exerceram enorme impacto na literatura inglesa modernista. William Faulkner e Virginia Woolf são alguns dos grandes escritores cujas obras foram fortemente inspiradas pelas de Joyce.
Embora tenha vivido fora da Irlanda durante a maior parte da vida, suas experiências em seu país de origem são de grande importância para a compreensão de sua obra. O universo ficcional de Joyce enraíza-se fortemente em Dublin e reflete sua vida familiar e eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e faculdade.
O autor morreu em janeiro de 1941, dois meses depois de retornar com a família à Suíça. Todos os anos, sua vida é celebrada no dia 16 de junho. Conhecida como “Bloomsday”, a data é comemorada não apenas em Dublin, mas também em diversas outras cidades ao redor do mundo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

LIÇÕES DE ABISMO

Autor: Gustavo Corção (1896-1978)
Editora: Agir
Assunto: Romance (Literatura brasileira)
Edição: 15ª
Ano: 2004
Páginas: 237

Sinopse: Publicado em 1950. Denso e profundo, o livro é o diário final de um homem que se descobre com leucemia. O médico lhe diz que terá três ou quatro meses de vida (a primeira anotação é de 11 de novembro; a última, de 23 de fevereiro). Logo ele constata que a morte, como o amor, não precisa de muito espaço. Mergulhado na memória, avalia o sentido da vida. Os escritos, de lucidez crescente, são reflexões sobre a alma, a verdade, o absoluto, o amor, a frivolidade, o ciúme. Documentam uma volta à fé, o reencontro com a graça.

Breve Comentário:
Nesta obra você se depara com a inapelável fragilidade humana perante a morte, suavizada por uma linguagem poética e severa do autor.
"(...) o mundo parece uma oficina de deteriorar o que as pessoas deveriam ser. A decomposição começa muito antes da sepultura. Mal armada a figura do homem, começa a desfazê-la, como se isto fosse um jogo que se monta por desfastio e que logo se desarma com tédio. E onde se localiza, em nossa vida, o ponto de inflexão? Em que dia comecei eu a ser desmanchado por mãos distraídas? (...)" - página 145.
Lições de abismo é uma referência ao professor João Maria, irremediavelmente vencido por um câncer, indaga, atônito, mas firme no propósito de usar os dias que lhe restam para mergulhar em sua vida, em sua memória, na razão de sua existência.
O professor João Maria, divorciado há dez anos da mulher, e afastado do filho que hoje "é apenas uma sombra" do que representou para ele, descobre que está condenado pela ação de um "monstro líquido" chamado leucemia mielóide aguda. E, mesmo nocauteado pelas poucas linhas escritas no exame que o dr. Aquiles lê à sua frente (e delimita-lhe a condição humana física ao exíguo espaço de tempo de três a quatro meses) é capaz de refletir sobre o sentido e a beleza da vida. "A vida é tudo. Tem um valor infinito: mas não tem sentido nenhum. A vida!" (página 59).
Ao contrário de Ivan, o juiz da célebre novela de Leon Tólstoi, A morte de Ivan Ilitch, que se acovarda na hora da morte e passa o livro inteiro sendo enganado pela família e pelo médico, que mentem sobre sua doença, o professor João Maria recebe o veredicto do doutor Aquiles com um misto de dor e resignação, estoicismo e vontade de lutar. Sim, ele quer lutar, apesar de só ser possível com a arma de um milagre ou com a coragem da imaginação. E é isso que ele faz. "(...) ao menos esses dias eu queria viver, queria viver a minha morte, já que a vida eu não a pudera viver; queria aproveitar essa última oportunidade de harmonia, essa única certeza, essa vantagem, essa vantagem enorme, colossal, que levo de hoje em diante sobre o comum dos mortais. (...)". (páginas 29/30).

Sobre o autor:
Gustavo Corção nasceu em dezembro de 1896, no Rio de Janeiro. Cursou Engenharia na antiga Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Trabalhou em Astronomia de Campo, em Mato Grosso; em serviço de Energia Elétrica, no Rio de Janeiro e Espírito Santo; em Radiocomunicações, de 1925 a 1937, e depois em atividades industriais, até 1948. Casou-se em 1924, e, em segundas núpcias, em 1937. Converteu-se à Igreja Católica em 1939. Publicou seu primeiro livro 'A descoberta do outro', em 1944; em 1945, 'Três alqueires e uma vaca'; em 1951, 'Lições de Abismo', e, em 1952, 'Fronteiras da Técnica'; em 1956, 'Dez Anos' (Crônicas) e 'O Desconcerto do Mundo', em 1965. Foi colaborador semanal de 'O Estado de São Paulo', do 'Diário de Notícias', do Rio de Janeiro, e do 'Correio do Povo', de Porto Alegre. Faleceu em 6 de julho de 1978.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A DIVINA COMÉDIA

Autor: Dante Alighieri (1265-1321)
Tradução: Ítalo Eugênio Mauro
Editora: Editora 34
Assunto: Poesia épica
Edição: 4ª
Ano: 2001
Páginas: 696

A Divina Comédia (Do Italiano "Comedia" ou "Commedia", mais tarde batizada de "Divina" por Giovanni Boccaccio), escrita por Dante Alighieri entre 1307 e a sua morte em 1321, é indiscutivelmente considerado o melhor poema épico da literatura italiana, e um dos melhores da literatura mundial.

Sinopse: A Divina Comédia é dividida em três partes, a primeira com 34 cantos e as outras duas com 33 fechando uma centena. Inferno, Purgatório e Paraíso. Segundo Dante, O Purgatório é um espaço intermediário entre céu e o inferno, um patamar entre os circulos concentricos reservado aqueles que não foram batizados ou nasceram antes de Cristo.

A Divina Comédia propõe que onde é Jerusalém hoje, seria o lugar onde o diabo bateu ao cair do céu, como se a terra santa fosse o Portal do Inferno. Tanto o Inferno, uma esfera circunscrita a esfera da Terra responderia pela depressão mar morto onde todas as águas convergem, o Paraíso e o Purgatório seriam os segmentos dos círculos concêntricos que juntos respondem pela mecanica celeste e os cenários dessa imortal comédia.

As personagens principais da Divina Comédia são Dante Alighieri e Virgílio, aquele que escreveu a história de Roma, a Eneida, mas Virgílio já é uma alma, ele está morto. Dante é um italiano, herdeiro da civilização grega e está vivo.
Virgílio serve como um mentor, uma espécie de condutor, um guia, alguém que mostra o caminho para Dante.

Dante está buscando Deus. Mas para alcançar Deus é preciso fazer uma viagem além-túmulo e Dante faz isso para propor uma redenção moral da humanidade destinada à perdição eterna porque está submetida ao apego aos bens terrenos e às paixões mundanas. Dante busca despertar nos homens a consciência da redenção para que possam salvar-se espiritualmente.
Dante entendia, e eu concordo plenamente com ele, que o homem por mais que se esforce, jamais poderá conhecer Deus servindo-se apenas do instrumento da razão. É preciso dar um salto místico para poder-se alcançá-Lo e acolhê-Lo em todo o seu mistério.

O conceito de ‘Comédia’, à época, não constituía sinônimo de engraçado ou humorístico. Era um conceito aristotélico. É assim denominado porque o final dá certo. Se o final desse errado, a denominação seria ‘Tragédia’.
Para ler a Divina Comédia, é preciso promover a suspensão do ceticismo. Deve-se ler como se verdade fosse para compreender a obra.

Inferno
Quando Dante se encontra no meio da vida, ele se vê perdido em uma floresta escura, e sua vida havia deixado de seguir o caminho certo. Ao tentar escapar da selva, ele encontra uma montanha que pode ser a sua salvação, mas é logo impedido de subir por três feras: um leopardo, um leão e uma loba. Prestes a desistir e voltar para a selva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio - poeta da Antigüidade que ele admira - disposto a guiá-lo por um caminho alternativo. Virgílio foi chamado por Beatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apuros e decidiu ajudá-lo. Ela desceu do céu e foi buscar Virgílio no Limbo. O caminho proposto por Virgílio consiste em fazer uma viagem pelo centro da terra. Iniciando nos portais do inferno, atravessariam o mundo subterrâneo até chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílio guiaria Dante até as portas do céu. Dante então decide seguir Virgílio que o guia e protege por toda a longa jornada através dos nove círculos do inferno, mostrando-lhe onde são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer, conseguem escapar do inferno por um caminho subterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assim voltar a ver o céu e as estrelas.

Purgatório
Saindo do inferno, Dante e Virgílio se vêem diante de uma altíssima montanha: o Purgatório. A montanha é tão alta que ultrapassa a esfera do ar e penetra na esfera do fogo chegando a alcançar o céu. Na base da montanha encontram o ante-purgatório, onde aqueles que se arrependeram tardiamente dos seus pecados aguardam a oportunidade para entrar no purgatório propriamente dito. Depois de passar pelos dois níveis do ante-purgatório, os poetas atravessam um portal e iniciam sua nova odisséia, desta vez subindo cada vez mais. Passam por sete terraços, cada um mais alto que o outro, onde são expurgados cada um dos sete pecados capitais. No último círculo do purgatório, Dante se despede de Virgílio e segue acompanhado por um anjo que o leva através de um fogo que separa o purgatório do paraíso terrestre. Finalmente, às margens do rio Letes, Dante encontra Beatriz e se purifica, banhando-se nas águas do rio para que possa prosseguir viagem e subir às estrelas.

Paraíso
O Paraíso de Dante é dividido em duas partes: uma material e uma espiritual. A parte material segue o modelo cosmológico de Ptolomeu e consiste de nove círculos formados pelos sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno), o céu das estrelas fixas e o Primum Mobile - o céu cristalino e último círculo da matéria. Ainda no paraíso terrestre, Beatriz olha fixamente para o sol e Dante a acompanha até que ambos começam a elevar-se, "transumanando". Guiado por Beatriz, Dante passa pelos vários céus do paraíso e encontra personagens como São Tomás de Aquino e o imperador Justiniano. Chegando ao céu de estrelas fixas, ele é interrogado pelos santos sobre suas posições filosóficas e religiosas. Depois do interrogatório, recebe permissão para prosseguir. No céu cristalino Dante adquire uma nova capacidade visual, e passa a ter visão para compreender o mundo espiritual, onde ele encontra nove círculos angélicos, concêntricos, que giram em volta de Deus. Lá, ao receber a visão da Rosa Mística, se separa de Beatriz e tem a oportunidade de sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, "o amor que move o Sol e as outras estrelas".

Mensagem e conclusão da obra:
Há algum tempo se dissimula o bem da "perfeita bondade" sobre o cunho da nova igreja. Cada vez mais se esquece da principal característica inerente ao ser humano, ou seja, fala-se aqui das variações, que podemos denominar sentimentais. Dante, naquele século, foi um dos precursores sobre o que se chama "ensaio do ser humano", em que se deixa ao lado a hipocrisia e, nesses lugares (inferno, purgatório e paraíso) subjetivos delimita-se a essência das atitudes do Homem.

O ser humano precisa realizar a viagem às possibilidades inferiores para redescobrir a verdadeira natureza humana através do caminho iniciático, que Dante Alighieri faz na sua extraordinária obra.
O caminho iniciático é o caminho da recuperação da verdade ontológica humana. É o único caminho que pode levar o homem a realização humana; é, em suma, a transcendência para o divino. Não é ser Deus, mas ser como Deus.

A Divina Comédia é uma obra para ser lida por toda a vida para verdadeiramente compreendê-la em toda a sua essência e revelação. É o caminho para a mais pura Iniciação.
x-x-x-x-x-x
UM TRIBUTO A DANTE ALIGHIERI

No momento em que a Cristandade medieval deslizava para o abismo, elevou-se no seu seio uma voz, mais forte talvez do que todas aquelas que até então tinham sido ouvidas, para exprimir, numa abra atravessada pelo bater das asas do espírito, tudo aquilo que ela tinha trazido em si de mais sublime – a própria mensagem que entregara à história.

O homem cujo grito deveria transpor os séculos e trazer até nós o testemunho dessa civilização, encontrou-se, como todos os criadores, no eixo do seu tempo, com uma parte do seu ser fortemente enraizada no passado e a outra audaciosamente voltada para o futuro. Da sua obra sairá uma língua, uma das mais perfeitas entre essas línguas nacionais que então aspiravam desabrochar. Graças a ele, a literatura dará um passo decisivo em direção ao seu desígnio moderno: a análise da alma individual, o conhecimento da vida psicológica mais oculta. Mas, ao mesmo tempo, a matéria de que a sua obra brotará será a do passado imediato que ele exprime e glorifica: nada de essencial terá lugar nela se não proceder em substância do ideal afirmado, da experiência adquirida pelas gerações cristãs da grande época. As duas correntes poéticas que tinham surgido no decurso da Idade Média – a popular, da tradição franciscana, e a erudita, dos trovadores e das cortes de amor – confluirão no dolce stil nuovo [novo estilo doce] que ele imporá à admiração do mundo por meio dos seus versos imortais. Às Sumas teológicas, às Sumas filosóficas realizadas na Idade Média, e a essas outras Sumas plásticas que são as catedrais, teremos de acrescentar, para que o quadro fique completo, uma Suma poética. E foi esse homem quem a edificou.

Chamava-se Dante Alighieri. Nasceu na primavera de 1265, em Florença, numa humilde casa da praça de São Martinho o Bispo, ao lado da abadia. A sua infância transcorreu na cidade do lírio vermelho, bem cedo anuviada pela morte da mãe e pelo segundo casamento do pai, e tendo sob os olhos as guerras civis que ensangüentavam a sua pátria. Tudo era ocasião para discórdia na toscana, imagem da pequena Itália da época: guelfos e gibelinos reascendiam as suas querelas; os burgueses oportunistas e os clãs aristocratas disputavam o poder e as suas vantagens; o povo, desesperado, agitava-se sem cessar, prestes a amotinar-se. E o poeta encontrará no mais profundo das suas recordações de infância a imagem do Arno, “que faz correr menos água do que sangue”.

No entanto, certo dia, essa dolorosa infância foi trespassada por uma luz de paraíso. Mas tarde, na Vita Nuova, o livro dos seus trinta anos (1292), Dante contará como, aos nove anos, num primeiro de maio todo perfumado de graça, encontrou uma menina da sua idade, Beatriz, e logo a amou para toda a eternidade. “Foi como se tivesse vindo do céu para a terra, a fim de nos mostrar o que pode ser um milagre...”, murmura ele. Este amor pueril invadiu de tal forma a sua alma de criança que, desde então, nada pode arrancá-lo de si. Mas esse amor não teve de sofrer a degradação da vida, o irremediável desgaste que procede da rotina e do contato diário. Beatriz, cedo levada da terra, tornou-se uma imagem imperecível, o símbolo de tudo aquilo que a alma de um homem traz em si de mais puro e mais elevado, confundindo-se até com a Sabedoria incriada que, por vezes, se dá a conhecer aos sentidos das criaturas mortais na revelação mística, na iluminação do gênio ou na lacerante doçura de uma manhã de primavera.

Foi para se unir a Beatriz no empírico, onde a sua juventude eterna se confundia com o conhecimento inefável, que Dante se entregou inteiramente ao estudo de tudo o que a inteligência podia abranger naquela época. Artes e ciências, filosofia e teologia, nada escapou ao seu bem-aventurado apetite. Preciosas amizades o guiaram nesta infatigável pesquisa: o encantador e melancólico poeta Guido Cavalcanti, o músico Casella, o incomparável Giotto, gênio da cor e da forma, o teólogo frei Remígio de Girolami, discípulo de São Tomás, e sobretudo o bom velho mestre Brunetto Latini, a que ele, no canto XI do Inferno, agradece com palavras emocionadas o ter-lhe ensinado “como o homem se eterniza”. Aos vinte e quatro anos, estava formado.

Mas, na Florença dos fins do século XIII, não era muito fácil a um jovem intelectual prosseguir calmamente a sua tarefa de aperfeiçoamento pessoal sem se ver, que quisesse ou não, envolvido nos acontecimentos. De resto, Dante não era homem para permanecer à margem de lutas em que a verdade estivesse em jogo. Para ele, os princípios se encarnavam e os erros tinham rostos humanos. Já aos vinte e quatro anos, com bom guelfo que era, combatia os gibelinos de Arezzo e depois alistava-se na campanha contra Pisa. O seu temperamento apaixonado e as suas exigência abruptas nunca o deixaram encolher-se diante das batalhas políticas. Casado aos trinta anos com uma certa Gemma Donati, a quem pediu somente que fosse a mãe de seus filhos e a quem nunca se referiu na sua obra, e inscrito na corporação dos médicos, uma das mais honrosas na escala das Artes, Dante seria talvez, em outro tempo e lugar, levado a vida de um burguês tranqüilo, dedicando as suas noites e sonhos a escrever, e bem poderíamos imaginar o que a sua obra teria ganho com isso. Mas os acontecimentos – essa manifestação da Providência – arrancaram-no de uma tal facilidade para entregá-lo a todos os riscos de uma existência patética.

Eleito em 1300 “prior” da cidade, isto é, membro do Conselho de seis pessoas que a administrava, encontrou-se envolvido num maelstroem de intrigas e violências. Os guelfos florentinos dividiam-se então em dois clãs rivais. Embora, como se sabe, todo o partido guelfo fosse da Igreja e tradicionalmente oposto às pretensões imperiais na Itália, uma parte, os “brancos”, consideravam excessiva a pressão que o autoritário Bonifácio VIII exercia sobre a sua cidade por intermédio do seu legado, o cardeal Mateus de Aquasparta. Os “negros”, por sua vez, queriam jogar a fundo a cartada do papa e, sobretudo ajudar o seu aliado Carlos II de Nápoles a recuperar a Sicília. Sendo esse ano o do Jubileu, Florença resolveu fazer-se representar em Roma por uma solene delegação, e Dante foi indicado para participar dela. Acabou por aceitar, talvez para conhecer e julgar melhor Bonifácio VIII e a Cúria, ou talvez para não parecer que tinha medo, pois os seus inimigos poderiam aproveitar-se da sua ausência. “Se eu fico, quem irá?”, disse ele simplesmente. “Mas, se vou, quem ficará?” Não alimentava ilusões. Com efeito, quando os “negros” tomaram o poder e chamaram Carlos de Valois, a pacificação fez-se à custa de decretos, de exílios e de prisões de “brancos”. Em janeiro de 1302, Dante era expulso da sua pátria, lançado para fora do “belo redil onde vivera quando era um cordeiro” (Paraíso, XXV, 2).

Começava para ele a vida errante, numa permanente agitação. “Este gosto amargo que tem o pão dos outros, este duro caminho que é subir e descer as escadas de outrem”, foi o que ele experimentou durante vinte anos, até morrer. Terrível é o destino daquele que é arrancado da sua pátria e lançado ao acaso pelas estradas do mundo! Uma pessoa deslocada conhece a humanidade sob os seus aspectos mais insensíveis e mais cruéis. Foi essa a sorte de Dante, que a sofreu até o mais profundo do seu ser. E assim conheceu a incurável baixeza das lutas políticas. “Fazer um partido só para ele!”, tal era o seu sonho; mas essa é uma felicidade pela qual os políticos têm o costume de cobrar caro. Passando por Verona, Lucca, Ravena e talvez até Paris, peregrinou pela terra, sem outra pátria que não a interior, aquela em que se elaborava a obra do seu gênio. Certa vez, Florença propôs-lhe que voltasse, mas em troca de uma grande humilhação – uma penitência pública na catedral. “Não é esse o caminho de volta para a minha pátria”, foi o que ele respondeu a essa oferta.

Fixou-se em Ravena, a doce e sonolenta cidade dos mosaicos, onde um homem de bem, Guido Novello da Polenta, o próprio sobrinho de Francesca de Rimini, pecadora que ele imortalizara, o acolheu sob a sua proteção. Os sofrimentos do exílio, as privações, a angústia e talvez a febre insidiosa dos pântanos haviam burilado os seus traços, agora de uma beleza fascinante, e, como a sua obra literária começava a ser conhecida, os habitantes da cidade, ao vê-lo passar, sombrio e trágico – no dizer de Bocaccio –, exclamavam uns para os outros: “Eis o homem que vai ao inferno e de lá regressa”. Sim, o poeta abdicara de todas as alegrias da vida.Vira o seu inimigo Bonifácio VIII afundar-se sob o golpe de Nogaret e sofrera com isso, admirado de ver a Sé de Pedro desmoronar-se tão depressa. Vira também o imperador Henrique VII entrar na Itália e, em vez de ali restabelecer a paz, como era o seu sonho, aumentar ainda mais a anarquia. Nada lhe restava no coração a não ser uma esperança que transcende a terra e – como diz no último verso do seu poema – “esse amor que move o sol e as estrelas”. Convidaram-no a partir para Veneza como embaixador e ele aceitou, embora já no limite das suas forças. Servir a paz não seria ainda servir a Deus?

Morreu em 14 de setembro de 1321, em Ravena, e essa nobre cidade que fora tão doce para o seu exílio, quis conservar o seu corpo. Florença, a pátria ingrata, tentou levá-lo para lá quando o seu nome se tornara célebre, mas nada conseguiu. Repousa a dois passos da igreja de São Francisco, onde tantas vezes rezou, dessa comunidade de irmãos mendicantes cujo burel vestiu no leito de morte. A sua última morada é um minúsculo jardim, feito de sombras frescas e silêncio. Para além dos sofrimentos e das violências da terra, como na sublime visão criada pela sua imaginação, e para além dos círculos do inferno e da montanha das expiações, terá ele alcançado a paz definitiva, ou sete andares do céu, em cujo cimo reina o Cordeiro?

(Resumo feito por Anatoli Oliynik, com excertos traduzidos por Emérico da Gama, retirados de “A Igreja das Catedrais e das Cruzadas” de Daniel-Rops. São Paulo: Editora Quadrante, 1993.)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA

Título original: De Philosophiae Consolatione
Autor: Boécio (475/480-524)
Tradução: Willian Li
Assunto: Ensaio filosófico
Editora: Martins Fontes
Edição: 1ª
Ano: 1998
Páginas: 200


Sinopse:
Boécio realiza a “passagem” da Patrística à Escolástica, servindo como elo de ligação entre dois momentos importantes da história filosófica do Ocidente.
‘A consolação da filosofia’ foi escrita na prisão por um condenado à morte. A admiração que essa obra latina do século VI suscitou ininterruptamente desde então não deve nada, ou deve muito pouco, às circunstâncias ‘trágicas’ de sua composição. A obra é um testemunho da grandeza à qual um homem pode elevar-se pelo pensamento em face da tirania e da morte.

Comentários:
O livre-arbítrio e a presciência (previdência) divina são discutidos também por Boécio (475/480 - 524) no século VI d.C., na obra “A Consolação da Filosofia”. No capítulo V, quando questionada sobre o tema, a Filosofia responde dizendo inicialmente que o livre-arbítrio existe sim, e que é uma faculdade dos seres possuidores da razão. Para ela “nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade de julgar”. E, diversamente do que possa ser imaginado, a alma humana será tanto mais livre, quanto mais se mantém na contemplação da inteligência divina, e, tanto menos livre quanto mais desce a juntar-se às coisas corporais, às que se ligam à carne, e, finalmente quando levados pelos vícios, perdem a posse da razão. Boécio utiliza o seu hipotético diálogo com a Filosofia para tentar responder ao desafio de conciliar a possibilidade de Deus conhecer previamente todas as coisas com o livre-arbítrio humano. Desafia-a dizendo tratarem-se de coisas contraditórias e incompatíveis. O diálogo, a forma que o autor encontra para expor suas convicções na “Consolação”, agora existe para dar corpo à argumentação de Boécio para explicar a presciência divina, questão que, para ele, está relacionada à própria natureza das coisas e à hierarquia existente que as diferencia. Parte do princípio de que as coisas são conhecidas não a partir de suas próprias propriedades e natureza específicas, mas segundo a natureza de quem as procura conhecer. Os sentidos conhecem as coisas de uma forma, e dentre estes, a visão da melhor maneira; a imaginação conhece de outra forma, mais completa; a razão, mais completa ainda; e a inteligência divina conhece tudo de forma absoluta. Além disso, as faculdades superiores podem compreender as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores. A forma de conhecimento divino, portanto, não é a forma do conhecimento humano. É a razão humana, em última instância, que não consegue conceber a presciência daquilo que não é necessário. Mas isso se deve à limitação que nela existe em relação ao conhecimento divino supremo e absoluto. Do mesmo modo que os sentidos devem ceder à imaginação, e esta à razão, é necessário, pois, que “a razão ceda e reconheça a superioridade da inteligência divina”. Somente dessa forma é que ela poderá entender o que ela não pode ver em si mesma, o que concebe a presciência divina, com toda a precisão e certeza, mesmo que esses acontecimentos não se realizem.

Sobre o autor:
Anicius Manlius Torquatus Severinus Boetius (Roma, c.475/480 - Ticino, 524)
Filósofo platônico, estadista e teólogo romano. Último pensador latino a compreender o grego, sendo, portanto, a única fonte européia sobre esses textos digna de crédito, em sua época. Traduziu o Organon, de Aristóteles, e resumiu vários tratados sobre matemática, lógica e teologia. Como senador em 510, foi acusado de traição e magia. Por conseguinte, foi submetido à tortura e condenado à morte. Na prisão, escreveu De Consolatione Philosophiae (Do Consolo Filosófico). Além disso, foi autor de Sobre a Instituição da Música, que o tornou um dos grandes teóricos musicais da antiguidade. Apesar de não ter se convertido ao cristianismo, é considerado um mártir da Igreja, pelos serviços que prestou aos cristãos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A METAMORFOSE

Título original: Die Verwandlung – Escrito em 1912 e a primeira edição em 1915.
Autor: Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Assunto: Novela (Literatura estrangeira)
Editora: Companhia das Letras
Edição: 2ª
Ano: 2000
Páginas: 102

Sinopse: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa dá por si na cama e vê-se transformado num gigantesco inseto”. É deste modo que Kafka inicia a história de Gregor, um caixeiro-viajante que deixou de ter vida própria para suportar financeiramente todas as despesas de casa.

Gregor sente que se transformou num inseto horrível com um “dorso duro e inúmeras patas”. A princípio, as suas preocupações passam por pensamentos práticos relacionados com a sua metamorfose.

Depois, as preocupações passam para um estado mais psicológico e até mesmo sentimental. Gregor sente-se magoado pela repulsa dos pais perante a sua metamorfose. Apenas a irmã se digna a levar-lhe a alimentação, mas mesmo assim a repulsa e o medo também começam a se manifestar. A metamorfose de Gregor vai além da modificação física. É sobretudo uma alteração de comportamentos, atitudes, sentimentos e opiniões.

Gregor passa a analisar as coisas que o rodeiam com muito mais atenção. Entrementes, outra metamorfose ocorre no seio familiar: o pai volta a trabalhar, a irmã também arranja um emprego e passam a alugar os quartos vagos na própria casa onde habitam. As atitudes dos pais perante o filho podem induzir o leitor à idéia que Gregor era apenas o “sustento” da casa, todavia, quem interpretar a história dessa forma estará totalmente equivocado.

Interpretação da obra: Há muitas interpretações da obra. A maioria é, ou de natureza psicanalítica freudiana ou de natureza socialista-marxista. Ambas equivocadas, pois Kafka jamais escreveria uma obra para dar uma interpretação tão simplória.
Kafka não conta apenas a história de um homem que se transformou num inseto. Ele relata, sobretudo, uma história em que Gregor Samsa quer pagar a divida de seus pais. Mas que dívida seria essa e quem seria o credor dessa dívida? Kafka não nos conta isso, mas a dívida é a do pecado original e o credor é Deus. Gregor é o único da família que tem consciência real dessa dívida e sabe que ela precisa ser paga de alguma forma, mesmo depois que ele metamorfoseou-se em inseto, a dívida contínua sendo objeto de sua preocupação. Ela não é dele, é também dos demais membros da família que não a reconhecem e não aceitam a própria culpa do pecado, pois à medida que Gregor vai definhando em sua vida de inseto, a família vai renascendo na proporção contrária, porque Gregor é o único membro da família que poderia acusá-la da culpa do pecado original da dívida humana. Gregor foi morto pelo próprio pai com uma maçã. A mesma maçã de Adão e Eva no paraíso, a maça do pecado original. É o cordeiro inocente sendo imolado para incorporar a culpa humana do pecado original. Assim como Caim matou Abel para que pudesse dar início a construção da humanidade material, é a sociedade sendo construída e organizada sobre bodes expiatórios, uma espécie de mimetismo humano de René Girard em ação. Portanto, o que Kafka faz é um alerta sobre o comportamento humano frente a culpa relativa ao pecado original.

O autor: Franz Kafka Nasceu em Praga, na Boêmia (hoje República Tcheca), em 1883. Fez seus estudos na cidade natal, formando-se em direito em 1906. Tuberculoso, alternou temporadas em sanatórios com o trabalho burocrático. Jamais deixou de escrever, embora tenha publicado pouco e, já no fim da vida, pedido inutilmente ao amigo Max Brod que queimasse seus escritos. A maior parte de sua obra, toda escrita em alemão, foi publicada após sua morte, que ocorreu em 1924, num sanatório perto de Viena. Quase desconhecido em vida, é considerado hoje um dos maiores escritores deste século.