terça-feira, 15 de setembro de 2009

UM INIMIGO DO POVO

Título original: En Folkefiende
Autor: Henrik Ibsen (1828-1906)
Tradução: Vidal de Oliveira
Editora: Globo
Assunto: Drama
Edição: 1ª
Ano: 1984
Páginas: 390

O Inimigo do Povo (En Folkenfiende) é uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen em 1882, e apresentada pela primeira vez no Teatro Nacional de Oslo em janeiro de 1883.


Sinopse: O Inimigo do Povo (1882) retrata o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando de que forma a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega transforma o médico local de cidadão honrado em um inimigo do povo por conta de suas convicções a respeito da qualidade das águas que serviam os banhos públicos, fonte de riqueza para toda a cidade.


Interpretação aparente - simplista: A história passa-se numa cidade do interior da Noruega cuja maior fonte de renda advém de sua Estação Balneária. O Dr. Stockmann inquieta-se com as doenças que turistas e concidadãos apresentam e resolve investigar a água da cidade. Para sua surpresa percebe que todo o encanamento de água está poluída. Homem da ciência, sente-se no dever de levar a verdade ao povo, mas sua denúncia representará o fechamento do balneário por dois anos e uma suspeição geral levantada sobre suas qualidades mesmo depois das obras necessárias para resolver a questão. Isso causaria um transtorno para a cidade, que deixaria de lucrar com o turismo. Não denunciar o fato, contudo, vai contra os ideais de Stockmann. A poluição das águas é usada como metáfora no drama de Ibsen para denunciar a sujeira na estrutura social daquela cidade - no governo, na imprensa, no comércio e na sociedade em geral. A insistência do Dr.Stockmann em fazer prevalecer a verdade torna-o persona non grata para a população, sobretudo ao defender a idéia de que os valores daquela cidade estão sustentados sobre a mentira e de que o povo não tem a razão, ou seja, a maioria não tem o monopólio da verdade. Ele torna-se um inimigo do povo e conta apenas com o apoio de sua família e de alguns poucos membros da comunidade, que passam a sofrer represálias por conta disso. A convicção de Stockmann em relação a verdade, contudo, faz com que ele mantenha-se firme em seus propósitos até o fim, mesmo sabendo que seu papel relevante naquela comunidade jamais seria retomado.

Estrutura e trama por atos

O drama de Ibsen é dividido em cinco atos, seguindo uma estrutura típica do drama realista do final do século XIX, que por sua vez herdara tal divisão do teatro do neoclassicismo.

Primeiro ato:

O primeiro desses atos ocorre na sala de estar da casa do Dr. Stockmann, e inicia-se com uma conversação entre a Sra. Stockmann, o prefeito Peter Stockmann – seu cunhado, irmão do Dr. Stockmann – e os dois membros do jornal local, Hovstad e Billing. Eles falam sobre as excelentes condições sanitárias do balneário, da paz e prosperidade que os banhos públicos trouxeram para a cidade e também do trabalho do Dr. Stockmann. Este chega à casa acompanhado do Capitão Horster, um oficial da Marinha Mercante. A conversa entre os dois irmãos revela a relação conflituosa existente entre os dois, e a saída do prefeito dá espaço para que os presentes comentem sobre seu caráter. Ao final do primeiro ato, Ibsen apresenta o cerne do conflito: Dr. Stockmann recebe uma carta na qual toma conhecimento de que suas suspeitas são fundadas – as condições sanitárias das águas que servem os banhos municipais são péssimas e o balneário precisa ser fechado; a notícia é recebida com entusiasmo pelo médico, que vê na sua descoberta um triunfo seu em defesa da saúde da população, e pelos jornalistas, que vêem na novidade mais uma possibilidade de minar o poder local. Este primeiro ato tem funções semelhantes ao prólogo usado no teatro grego clássico; nele, há a apresentação da situação inicial e do espaço em que se passa a trama – sabe-se que a ação ocorrerá em um balneário no qual os banhos públicos são importante fonte de renda e a vida prospera por conta disso –, bem como do protagonista, mostrado inicialmente à platéia por meio das falas de personagens secundários. A chegada da carta funciona como uma mudança da fortuna, indicando fama e glória para o médico mas, ao mesmo tempo, antecipando para o público a situação trágica do drama.

Segundo ato:

Ainda que mantido o mesmo cenário do ato anterior, o problema lançado na trama pela carta recebida pelo Dr. Stockmann configura-se mais detalhadamente: ele e seu irmão entram em franco confronto – um pregando a necessidade de esclarecer a população sobre os perigos do uso daquelas águas, o outro lutando pela defesa dos interesses municipais e pelo abafamento do caso. A discussão dos irmãos é antecipada por um diálogo entre o médico e seu sogro, o padastro de sua esposa, Morten Kiil, cuja presença neste ato serve para corroborar suas ações futuras no desfecho da trama. Os jornalistas – e o dono do jornal, Aslaksen, afirmam seu apoio ao Dr. Stockmann e seu interesse em publicar um artigo do médico esclarecendo a situação à população. É neste segundo ato que o protagonista, Dr. Stockmann, é colocado no centro da situação trágica: sua decisão de divulgar os resultados de suas pesquisas sobre a qualidade da água no balneário é capaz de destruir a paz da pequena cidade.

Terceiro ato:

Em continuação ao que fora iniciado no segundo, trabalha a agudização do conflito: o Dr. Stockmann não mais se encontra no ambiente doméstico, mas em um local de domínio da esfera de trabalho – a redação do jornal “Mensageiro do Povo”, para onde se dirige no intuito de entregar seu artigo para publicação. A interferência de seu irmão e prefeito da cidade, contudo, marcará a mudança da fortuna para o médico: os jornalistas vêem-se impedidos de segui-lo diante da persuasão de Peter Stockmann e todos voltam-se contra as idéias do médico, fazendo publicar um artigo do prefeito no qual ele condena as notícias que considera “infundadas e suspeitas” sobre as condições de higiene das águas.

Quarto ato:

A mudança apresentada no ato anterior representa também o início do isolamento do médico naquela sociedade, encontrará no quarto ato seu clímax: a ação ocorre na sala da casa do Capitão Horster, cedida para abrigar a reunião dos cidadãos para deliberar sobre os destinos do balneário; os homens mais poderosos da cidade, representados pelo prefeito e pelo Sr. Aslaksen, tomam a palavra e propõem que o médico não seja ouvido. Dr. Stockmann toma da palavra, ainda assim, e denuncia o que chama de “envenenamento da vida moral” daquela cidade, o que faz com que seja declarado um “inimigo do povo” e rechaçado pela população. A cena resume, em grande parte, os temas centrais da peça: os conflitos entre individual e coletivo, entre razão e emoção, entre idealismo e pragmatismo e também entre a justiça e o poder.

Quinto ato:

O último ato representa, no ritmo da peça, uma nítida desaceleração em contraste com a agitação do ato precedente: de volta ao âmbito doméstico, Dr. Stockmann contabiliza as perdas materiais – a casa, desde a noite anterior, é alvo de vandalismo – e morais – os filhos que precisam sair da escola, a filha que perde o emprego de professora e ele mesmo que é demitido do cargo que ocupava no balneário – da contenda; ele recebe a visita do irmão (que vai comunicar a ele sobre a demissão), do sogro (que vai lhe dizer que comprara quase todas as ações dos Banhos Públicos com o dinheiro da herança da filha, Mrs. Stockmann) e dos jornalistas, que se oferecem para ajudá-lo em troca de dinheiro; o Dr. Stockmann rechaça-os a todos. A reaparição do personagem Morten Kriil, padrasto de Mrs. Stockmann, no quinto ato, parece justificar-se apenas por uma necessidade de Ibsen em reforçar o caráter do Dr. Stockmann de colocar o idealismo e a verdade acima de quaisquer interesses materiais, visto que Kriil representa a força do dinheiro e o que ele poderia representar de tentador ao herói para que este mudasse suas convicções. A verossimilhança, contudo, é abalada pelo fato de que o Dr. Stockmann parece não ter qualquer dilema interior ao lidar com tal questão – as influências de sua luta pelo fechamento temporário dos banhos públicos na herança da esposa e dos filhos; outro aspecto do quinto ato que de algum modo abala a verossimilhança da peça é a forma como o isolamento do médico e de sua família é resolvido pela intervenção externa à sociedade oferecida pela personagem do Capitão Horster, que lhe oferece a casa ao Dr. Stockmann e família quando todos na cidade lhes parecem segregar. Como um deus ex machina, sua entrada no quinto ato parece ter por função apenas oferecer uma alternativa ao protagonista, cujo mundo está mergulhado no caos. Curiosamente, a solução que antes oferecia o capitão Horster para o desfecho da trama – uma evasão da família Stockmann rumo à América a bordo do navio em que ele trabalhava – é esvaziada pelo fato de o próprio oficial perder seu emprego por conta de seu envolvimento com o Dr. Stockmann, e que funciona no drama para que, dentro do sugerido conflito entre valores materiais e valores morais, seja apresentado um final no qual o médico mantenha-se fiel às suas convicções. O autor, em verdade, deixa pouco a decidir para a platéia: Dr. Stockmann termina a ação otimista, decidido a enfrentar sozinho – em família – a cidade inteira dentro de sua certeza interior de que possui a verdade consigo. A solução é, assim, um retorno à harmonia, ainda que um estado de harmonia distinto daquele de paz e prosperidade apresentado no primeiro ato; mas tal solução representa uma harmonia possível diante do caos representado pelo quarto ato, no qual a massa sufoca e oprime o indivíduo.
O doutor Stockmann decide ficar e dedicar-se a educar os cidadãos para que tenham um espírito mais livre e encerra o drama da obra com o seguinte pensamento: “o homem mais forte que há no mundo é o que está mais só”.


Esta é uma interpretação aparente e simplista que a grande maioria dos leitores faz. Mas não é isso que o autor está querendo nos contar. Ibsen é infinitamente mais profundo, complexo e simbólico que a primeira vista quer nos parecer. O autor quer nos contar algo mais simbólico do que uma simples história, algo que ele oculta e que só é percebido pelo leitor mais atento e analítico, capaz do entender e compreender a mensagem oculta nas entrelinhas de uma história que nos parece comum.

Otto Maria Carpeaux nos revela que a obra de Ibsen não é bem compreensível sem o conhecimento da sua vida; “é esta a porta pela qual devemos nela entrar” assevera. "Ibsen era anarquista, inimigo total de todos os Estados, todas as sociedades, todos os partidos, todas as multidões [...]; em favor do único valor que ele reconheceu: o homem individual e humano."

Em 1848 uma onda revolucionária sacode a Europa e impressiona fortemente Ibsen. Por outro lado, Ibsen recebe influência hegeliana de seu professor Monrad e, em decorrência da ruína econômica de sua família, o que lhe causa profundo ressentimento pessoal que se transforma em ressentimento revolucionário, leva-o a tornar-se um socialista. Observando as obras de Ibsen sob este prisma, concluí-se que a grande maioria tem viés socialista, humanista ou revolucionário. Um inimigo do povo, é um exemplo de um homem revolucionário representado pela personagem principal, Dr. Thomas Stockmann.

A peça provocou muita celeuma. Para os marxistas e para os rousseaunianos em geral, Ibsen, ao tomar a posição do herói solitário contra o resto da sociedade, pareceu-lhes assumir um perfil reacionário.

Interpretação simbólica da obra: O Dr. Thomas Stockmann, embora apresente o perfil de um homem jovial, sincero, honesto e interessante por um lado, por outro, ele é um idealista, arrogante, narcisista, de uma soberba radical que o coloca acima do bem e do mal, detentor da verdade absoluta. Este perfil radicalmente oposto ao primeiro é característico das mentes revolucionárias que querem resolver os problemas do mundo.

O revolucionário é aquele sujeito aparentemente inocente, todavia é o mais perigoso e o que tem o maior potencial destrutivo. Portanto, o dr. Stockmann é o verdadeiro revolucionário.

Ibsen coloca o dilema ético na história, e o dilema ético ocorre quando ambos os lados tem alguma razão. Todavia, o leitor comum não percebe este aspecto e toma uma posição imediatamente radical e favorável ao dr. Stockmann, alimentando assim o desenvolvimento das mentes revolucionárias e ampliação do contingente de homens prometéicos, reformadores do mundo e da sociedade.

Ao final da história encontramos o dr. Stockmann completamente enlouquecido. Este é o fim de todos àqueles que se consideram reformadores do mundo, construtores da nova sociedade que se colocam acima do bem e do mal: terminar na mais completa das loucuras. O psicopata em pessoa.

Um comentário:

Vinícius Cortez disse...

Anatoli, imagino que "O saber é solitário" como máxima não está aqui como coincidência, mas eu te peço: divulgue este blog! Tem um ótimo conteúdo, não faz sentido haver tão poucos visitantes (o seu contador online até hoje não me mostrou coisa outra que um solitário conectado) a resenhas tão boas!