segunda-feira, 1 de abril de 2013

NO CAMINHO DE SWANN

Título original: Du cotê de chez Swann
Autor: Marcel Proust (1871-1922)
Tradutor: Mário Quintana
Assunto: Romance
Editora: Globo
Edição: 3ª
Ano: 2006
Páginas: 558


Sinopse: Os sete volumes da obra 'Em busca do tempo perdido' constituem um emaranhado complexo de personagens, cenas, detalhes que reaparecerão muito depois e somente aí adquirem seu real significado, articulados pela memória que, ativada por circunstâncias fortuitas, medita livre por diferentes campos, sendo as artes um dos mais freqüentados. Este primeiro volume também procura exemplificar isso, pois Swann, um das principais personagens, é um refinado aristocrata conhecedor de literatura, colecionador de objetos de arte e freqüente nos salões parisienses. O narrador o conheceu quando criança em Combray, cidadezinha imaginária onde ele passava as férias de Páscoa. No segundo, o narrador, já adolescente, desistindo do amor de Gilberte, filha de Swann, parte com a avó em viagem de férias para a fictícia praia de Balbec, com imaginárias ruínas antigas, em seu périplo de conhecimento da arte e de si. Assim, cada volume e todos se transformam em complexo programa de formação estética e humanística. Neste volume, Proust se dedica principalmente à narração de sua infância e adolescência.

Excertos do prefácio: “Abrimos as primeiras páginas do primeiro volume e somos convidados a entrar pelo Caminho de Swann.

Neste primeiro volume, vamos conhecer a cidadezinha fictícia chamada ‘Combray’, lugar em que o herói do livro vem passar as férias de Páscoa com os pais, quando criança. Ali, eles recebiam a visita de Swann, homem muito fino, colecionador de obras de arte, leitor cultivado, freqüentador dos principais salões de Paris.

A Combray de Proust é a pequenina cidade de passado medieval que ainda mantém contato com os campos e sítios ao seu redor. Para chegar até eles, há dois caminhos possíveis: saindo pela porta da frente da casa, toma-se o de Méséglise, caminho mais curto, que passa pela propriedade de Swann; saindo pelo portão dos fundos, alcança-se o longo caminho de Guermantes, trilha fluvial que vai dar no castelo dessa família, Entrar pelo caminho de Swann é simplesmente tomar uma dessas opções de percurso que se oferecem ao caminhante. O caminho de Swann é, nesse primeiro sentido, apenas uma referência espacial com a qual se designa o itinerário a ser feito.

Já ou outro significado desse título envolve a própria história da criança que vem com os pais em visita à cidade de Combray e que, muito mais tarde, vai se tornar o narrador do livro que estamos lendo. Para ele, percorrer o caminho de Swann é percorrer o mesmo trajeto da personagem Swann, experimentar as mesmas dores no amor, o ciúme, o contato com a arte e compreender como Swann pôde lidar com tudo isso. Em busca do tempo perdido começa, assim, como no início de uma caminhada, de uma longa caminhada de leitura do sentido da vida.” (p. 8)

Resenha: O prof. José Monir Nasser nesta resenha diz que Samuel Beckett (1906-1989) escreveu no ensaio Proust [1] dizia que para compreender a obra do escritor francês é preciso começar pelo tempo, “este monstro de duas cabeças, salvação e danação”. Mais ainda, Beckett afirma que “as criaturas de Proust são, portanto, vítimas desta circunstância e condição permanente: o tempo”. De fato, a obra magna de Marcel Proust (1871-1922), escrita em sete volumes, entre 1909 e o último dia da sua vida, chama-se Em Busca do Tempo Perdido (À la recherche du temps perdu).

O tempo submete tudo, porque a vida humana é composta de fragmentos, de experiências estanques a que a nossa mente dá a aparência de continuidade, criando um passado presente (aquilo que já passou) e um futuro presente (aquilo que esperamos que aconteça), que se fundem com o presente presente. A impressão é de uma linha contínua, conjugando aquilo que aconteceu, aquilo que está acontecendo e o que pode acontecer.

Mas como a experiência humana é fragmentada e só adquire unidade pela intervenção da mente, as partes tendem a se perder, a se tornar indisponíveis. Não temos acesso a tudo o que aconteceu na nossa vida. Tudo foge (tempus fugit) e se dilui pela própria passagem. Este é o tempo perdido que Proust procura sistematicamente no fundo da consciência latente, para ele, a única coisa real. Ou seja, está tudo lá, mas como não conseguimos manter nossa atenção focada em tudo ao mesmo tempo, percebemos apenas recortes da totalidade da nossa experiência. Como resultado, não conhecemos nosso “eu” profundo, embora saibamos o que queremos que os outros pensem sobre nós, em outras palavras, conhecemos apenas nosso “eu” social.

Como antídoto a essa fuga incontrolável dos fragmentos de memória que escapam sistematicamente à consciência, Proust erige o edifício imenso da recordação, mas cuidado! Proust só confia na recordação espontânea. Explica Beckett: “A memória voluntária, Proust repete ad nauseam, não tem valor como instrumento de evocação e provê uma imagem tão distante da real quanto o mito de nossa imaginação ou a caricatura fornecida pela percepção direta”. Proust só acredita no poder de invocação dos sentidos. Daí a famosa passagem de No Caminho de Swann, em que a infância volta plena à lembrança, quando o narrador mergulha uma madalena em sua xícara de chá: “E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de tê-lo mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto”.

Para Proust, qualquer estímulo, como um trecho de uma sonata, a visão de uma paisagem, determinado odor ou certa expressão, produzirá a recuperação do tempo perdido. Quem nunca foi transportado de volta à infância pelo reencontro com o sabor antigo de uma fruta, pelo aroma de um café recém-passado ou por um perfume sugestivo? Para Proust, os sentidos reconstroem a totalidade da experiência, remetendo-nos para os mundos perdidos durante a passagem implacável do tempo.

Proust despreza as memórias voluntárias porque teme que as memórias inventadas, intermediadas pela mente, portas abertas para nosso eu “social”, aquele que reflete o que o mundo pensa de nós, ocupem todo o espaço no lugar do que realmente importa. Proust teme que este “eu” utilitário, usado socialmente, possa usurpar os direitos do verdadeiro “eu”, como uma personagem que tomasse de assalto a personalidade do ator Lawrence Olivier deixando de ser Lawrence Olivier e passando a ser Hamlet para sempre...

A catedral de Em Busca do Tempo Perdido já está delineada na obra No Caminho de Swann, primeiro dos sete volumes. Publicado em 1913, com recursos próprios do autor, No Caminho de Swann expõe o método proustiano da recordação e apresenta as principais personagens que voltam à memória do narrador. Em especial, conta a história do amor de Charles Swann e Odette de Clécy, única trama em toda a obra que não envolve o narrador diretamente.

O tempo, este monstro de duas cabeças, é simultaneamente danação e redenção. É danação porque nos aprisiona dentro dele. Somos escravos do ontem, porque o ontem nos deformou de alguma maneira. Por outro lado, pela recuperação do tempo, descobrimos nosso “eu” real, e aí está o maior exercício espiritual de todos.

Sobre o autor: Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (Auteuil, 10 de Julho de 1871 — Paris, 18 de Novembro de 1922) foi um escritor francês, mais conhecido pela sua obra À la recherche du temps perdu (Em Busca do Tempo Perdido), que foi publicada em sete partes entre 1913 e 1927.

Filho de Adrien Proust, um célebre professor de medicina, e Jeanne Weil, alsaciana de origem judaica, Marcel Proust nasceu numa família rica que lhe assegurou uma vida tranquila e lhe permitiu frequentar os salões da alta sociedade da época.

Após estudos no Liceu Condorcet, prestou serviço militar em 1889. Devolvido à vida civil, assistiu na École Libre des Sciences Politiques aos cursos de Albert Sorel e Anatole Leroy-Beaulieu; e na Sorbonne os de Henri Bergson (1859-1941) cuja influência sobre a sua obra será essencial.

Após a morte dos seus pais, a sua saúde já frágil deteriorou-se mais. Ele passou a viver recluso e a esgotar-se no trabalho. A sua obra principal, Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu), foi publicada entre 1913 e 1927, o primeiro volume editado à custa do autor na pequena editora Grasset ainda que muito rapidamente as edições Gallimard recuaram na sua recusa e aceitaram o segundo volume À Sombra das Raparigas em Flor pela qual recebeu em 1919 o prêmio Goncourt.

Trabalhou sem repouso à escrita dos seis livros seguintes de Em Busca do Tempo Perdido, até 1922. Faleceu esgotado, acometido por uma bronquite mal cuidada.


[1] BECKETT, Samuel. Proust. Tradução de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

sexta-feira, 1 de março de 2013

O INSPETOR GERAL

Título original: Revizor
Autor: Nicolai Gógol
Tradução: Arlete Cavalieri
Editora: Peixoto Neto
Assunto: Drama
Edição: 1ª
Ano: 2007
Páginas: 244

Sinopse: Na antiga Rússia, existia um vilarejo comandado por um prefeito totalmente corrupto e seus colaboradores de mesma índole: O chefe dos correios, o inspetor de escolas, o juiz, o encarregado da assistência social, o médico da província, o comissário de polícia e até dois pequenos proprietários de terras.

Eles mantêm as instituições públicas sem as mínimas condições de saúde, organização ou humanidade e tratam os moradores como se fossem animais, pensando apenas nos lucros pessoais. Tudo transcorre desta forma, até que um dia recebem a notícia de que o governo enviou um inspetor geral do alto escalão das repartições públicas para averiguar as condições dos órgãos locais. O prefeito manda chamar o encarregado da assistência social, o inspetor de escolas, o juiz, comissário de polícia, o médico e dois policiais para dar-lhes a notícia. Todos ficam apavorados e resolvem fazer uma faxina na cidade, os médicos eliminam alguns doentes e trocam as roupas de cama, o juiz manda tirar a criação de gansos do tribunal, o Inspetor de Escolas pede para os professores pararem de bater nos alunos etc.

Enquanto isso, um malandro jogador de cartas, Khlestakóv, está hospedado no hotel local e é confundido com o tal inspetor geral e acaba recebendo a visita do prefeito que o convida para mudar-se para sua casa onde é tratado com as mais altas regalias, inclusive recebendo grandes somas de dinheiro em forma de propina de todos que o visitam.

Na confusão das inspeções não faltam situações hilárias de denúncia aos meandros do poder, à corrupção, à delação, à impunidade, aos favores etc. Khlestakóv aproveita-se da situação e, após encher os bolsos de dinheiro, vai embora, mas não sem antes marcar casamento com a filha do Prefeito.

Resumo da narrativa: O resumo do enredo é a própria sinopse supracitada.

Comentários: O Inspetor Geral, escrita em 1836 pelo ucraniano Nicolai Gógol, fala de política - mas não só. Destila críticas a políticos e administradores de maneira geral, a subornadores e subornados, ao serviço de aparência e à hipocrisia das instituições e dos cargos públicos. Não faltam espirros ácidos ao comportamento frívolo das mulheres, à credulidade simplória e à hipocrisia insensível dos homens, mas, sobretudo fala da consciência moral do ser humano, mais especificamente do tribunal interno da consciência humana.

Interpretação da obra: O prof. José Monir Nasser explica que o leitor desatento e aquele que lê para simples entretenimento pensa que está lendo uma obra de comédia, uma sátira ou um libelo anti-burocrático e anti-czarista. Nada mais equivocado. O próprio czar, Nicolau I, impediu a censura e autorizou a apresentação da peça que foi encenada pela primeira vez no dia 19 de abril de 1836.

Após a apresentação, o público atônito nada entendeu. Gogol teria se manifestado com estas palavras: “é a primeira concebida com o propósito de corrigir nossa sociedade, e não creio havê-lo conseguido; só viram, na minha comédia, uma tendência partidária a ridicularizar nossas leis e a ordem estabelecida, que só pretende estigmatizar certos abusos e certos atos ilegais”. Desgostoso com o público passa os anos seguintes fora da Rússia.

A peça é satírica, é verdade, mas interpretá-la como tal, é enxergar apenas a camada mais superficial da obra. A história é mais complexa que simples burocratas e funcionários públicos indolentes.

Assim como nós, todos os moradores daquele vilarejo são seres humanos comuns. Na condição de seres humanos comuns, é preciso ter consciência que sentir culpa é da natureza humana e aquelas pessoas, ante a iminente presença de um inspetor geral, são tomadas pelo pânico do sentimento de culpa que na realidade é a consciência moral agindo sobre o indivíduo. Portanto, é a consciência moral pesada que está conduzindo o comportamento daquelas pessoas.

O pressionado pela consciência moral sempre espera uma punição e é essa possibilidade de punição que aterroriza aquelas pessoas, porque o tribunal interno da consciência é sempre mais poderoso do que o tribunal externo.

É preciso, portanto, recuperar a consciência de culpa e a chegada do verdadeiro inspetor geral simboliza essa recuperação da consciência de culpa para aquelas pessoas.

A obra trata, ainda, do diabo no sentido metafísico e Khlestakov simboliza o diabo em pessoa.
 
Assim, é preciso ler a obra nos seus aspectos simbólicos para que possamos compreendê-la em todo o seu sentido, tal como o autor quer nos transmitir. Infelizmente, por conta da modernidade, nós perdemos a capacidade de leitura e interpretação simbólica e por isso temos enorme dificuldade de compreender as grandes obras da literatura universal, os grandes clássicos. Portanto, tal como o Inspetor Geral simboliza a recuperação da consciência dos moradores daquela cidade, nós precisamos não só recuperar a nossa consciência, mas reaprender a leitura simbólica, senão não vamos entender nada. Nem da obra e nem do mundo que nos cerca. (Anatoli Oliynik)

Conclusão: O Inspetor Geral é a descrição de como funciona a condição humana, esclarece o prof. Monir.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

ANTROPOTEÍSMO – A Religião do Homem

Autor: Orlando Fedeli (1933-2010)
Editora: Editora e Livraria Monfort
Assunto: Religião
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 286

 
Sinopse: O professor Dr. Orlando Fedeli, discute de maneira sistemática e profunda o culto do homem, em suas vertentes gnóstica e panteísta. Segundo o Professor Fedeli, há uma profunda unidade por trás dos diversos sistemas religiosos que surgem ao longo da história e essa unidade é dada, como procura provar, por conta do culto que as diversas religiões prestam, em última análise, ao próprio Homem, diferentemente do que ocorre no catolicismo. Além do interesse, por conta de seu próprio valor, que essa obra possa suscitar, ela se apresenta como de capital importância para o entendimento da atuação do Dr. Orlando Fedeli como polemista e professor católico.

Comentários do autor: O “rio cársico” do Antropoteísmo tem uma longa e misteriosa história, com surtos ora superficiais, ora subterrâneos. Tanto a Gnose, quanto o Panteísmo rejeitam a criação ex nihilo. No Panteísmo, o Cosmo é apresentado como uma simples etapa da evolução divina. O Universo seria um ser divino, eterno e infinito, um organismo vivo. Para a Gnose, a passagem do Pleroma divino para a situação atual se deu por meio de uma “queda”, uma ruptura, um “exílio”, uma degradação da divindade, que constituiu a criação. Foi essa “queda”, ou pecado original pré-cósmico, que produziu o universo e todos os males atuais, não só os males físicos e morais, mas o que para os gnósticos é o verdadeiro mal, o fato de ser, a existência, isto é, o mal metafísico.

A escatologia panteísta é otimista: o Deus que se transformou no mundo alcançará de novo o primitivo estado de perfeição. Por meio da evolução, tudo caminha para uma perfeição cada vez maior. O homem, redentor do universo e de si mesmo, pela sua razão, pela ciência e pela técnica, eliminará todos os males e todas as limitações que nos afligem e construirá, na Terra, o paraíso. O Panteísmo é, pois, progressista e utópico.

A Gnose considera que as partículas divinas que se desprenderam da divindade e que agora jazem no túmulo da matéria pouco a pouco serão libertadas pelo conhecimento e retornarão à divindade. Enquanto, porém, não estiverem autoconscientes de sua natureza divina, permanecerão neste mundo-cárcere e, após a morte, serão condenados a renascer ou a transmigrarem para corpos de animais, de plantas, e até, segundo alguns, a caírem na matéria bruta.

Para a Gnose, a Encarnação do Verbo não se deu, pois que ela significaria a aceitação da matéria e do corpo. Os gnósticos negavam [e negam] que Cristo tivesse corpo.

Daí, logicamente, não poderem admitir uma igreja estruturada. Para a Gnose, a verdadeira igreja era puramente espiritual, pneumática. Ela seria formada somente por aqueles que, tendo recebido a doutrina gnóstica, já estariam salvos. A união dos pneumas dos perfeitos formaria a verdadeira igreja invisível, porque espiritual.

Para evitar essas confusões, propomos chamar de Antropoteísmo ou Religião do Homem ao “rio cársico” da história. Isto é, consideramos que o que une tantas seitas, escolas e movimentos é o culto do Homem como sendo Deus. Essa Religião do Homem se dividiria em dois ramos: a Gnose e o Panteísmo.

Sendo o homem um ser composto de corpo e alma, isto é, uma parte material e outra espiritual, é logico que a adoração do Homem se divida em dois ramos fundamentais: um que diviniza o corpo, isto é, a matéria; outro que diviniza a alma, isto é, o espírito.

A corrente antopoteísta que diviniza o corpo e a matéria engloba todas as seitas e sistemas filosóficos panteístas. A corrente antropoteísta que diviniza apenas a alma, o elemento espiritual, é a Gnose propriamente dita, e que inclui todas as seitas que em geral são classificadas como gnósticas pelo comum dos autores.

VIDEO-AULAS EM DUAS PARTES
 
PARTE 1

 



PARTE 2

 

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

MUITA RETÓRICA POUCA LITERATURA

De Alencar a Graça Aranha

Autor: Rodrigo Gurgel
Assunto: Crítica literária
Editora: Vide Editorial
Edição: 1ª
Ano: 2012
Páginas: 230

 
Sinopse: Este livro reúne vinte ensaios publicados, entre 2010 e 2012, no jornal Rascunho, numa série, ainda não terminada, cuja proposta é reler os prosadores da literatura brasileira. A leitura segue, de maneira proposital, parâmetros em grande parte desprezados na atualidade, quando a crítica literária não só difunde, mas também sofre dos três males apontados por Tzvetan Todorov: formalismo, niilismo e solipsismo. Trata-se, logo, de uma leitura à contracorrente.

Os ensaios estão dispostos cronologicamente, como convém a um trabalho que, embora crítico e analítico, também se apresenta sob a perspectiva da história. Cada autor eleito comparece com uma obra no tribunal do júri, que o crítico escolheu por seu caráter paradigmático, sua capacidade de representar o conjunto da produção de cada escritor. O movimento interno de cada ensaio é, portanto, de alternância, sempre ágil, entre análise particular da obra escolhida e a perspectiva global do autor focalizado.

Entre os autores analisados encontram-se os nomes clássicos de José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Raul Pompéia e Machado de Assis, mas Rodrigo Gurgel também relê grandes prosadores esquecidos, como João Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos, Eduardo Prado e vários outros.

Comentários: 1) Deve o leitor se lembrar da reivindicação de Croce: que a história da literatura seja feita por autores, não por “épocas” ou “estilos”. Este Muita Retórica Pouca Literatura não é historiográfico, mas sob aquele aspecto é livro croceano, e livro deliciosamente “impressionista” – graças a Deus.

O título deste conjunto de ensaios poderia denunciar uma tese; denuncia, antes, a impossibilidade de quaisquer “teses” em grande parte de nossa literatura: o gosto pelo verbo fácil a par do desgosto de imaginações pouco poderosas, entre os que fundaram nossa prosa literária, concorrem para a formação de um vício da nação – o cosmetismo cultural, de que o formalismo desvairado e inculto de nossos romances mais recentes são o último rebento.

O drama, aqui, encontra-se no embate, amiúde velado, entre as figuras-tipo José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida. Porque não teve descendência que confessasse sua paternidade, Memórias de um sargento de milícias, mostra Gurgel, merece revisita para que nele reencontremos algo de muito machadiano, o que se insere numa saudável – porém nem sempre prazerosa de se ler – genealogia da sensibilidade nacional.

Destacam-se aqui, ainda, a prosa de João Francisco Lisboa, esse Juvenal brasileiro; do reacionário Eduardo Prado; da pouco conhecida memorialística de Taunay. E tem ainda Gurgel o topete de nos apontar o que há de enfado em Dom Casmurro e explicar por que Canaã é “o mais pedante romance brasileiro”.

Que este livro nos reavive o bom costume, hoje fora de moda, de nos estapearmos furiosamente pela leitura direta de nossos clássicos. Amen. (Ronald Robson)

2) Li a obra de um só folego, dois dias após o lançamento em outubro de 2012. Recomendo a sua leitura desta e justifico utilizando os argumentos de José Carlos Zamboni que diz textualmente: “É preciso avisar os cursos de Letras, com certa urgência: a crítica literária ainda é perfeitamente possível. Só não esperem o renascimento dentros dos muros da universidade.” Faço minhas, as palavras de Zamboni. (Anatoli Oliynik)
 

A SEGUIR DOIS VÍDEOS
 

Palestra de lançamento com Rodrigo Gurgel - "Muita Retórica - Pouca Literatura"

 



Olavo de Carvalho comenta Muita Retórica - Pouca Literatura

sábado, 1 de dezembro de 2012

NOTAS PARA A DEFINIÇÃO DE CULTURA

Título original: Notes towards the definition of culture
Autor: T. S. Eliot
Tradutor: Eduardo Wolf
Assunto: Ensaio filosófico
Editora: É Realizações
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 144

Sinopse: “Tenho observado com crescente ansiedade a trajetória da palavra cultura nos últimos anos. Pode nos parecer natural e significativo que, durante um período de destruição sem paralelo, essa palavra viesse a ter uma importante função no vocabulário jornalístico. Seu papel é dividido com a palavra civilização. Neste ensaio, não busquei de modo algum determinar a fronteira entre os significados dessas duas palavras, pois cheguei à conclusão de que qualquer tentativa nesse sentido somente poderia resultar em uma distinção artificial, peculiar à obra, distinção essa que o leitor teria dificuldade em reter e que, após fechar o livro, provavelmente o abandonaria com uma sensação de alívio. Com efeito, usamos assaz frequentemente uma palavra em um contexto no qual a outra quadraria igualmente bem; há outros contextos em que uma palavra obviamente é adequada e a outra não; e não creio que isso deva causar embaraço. Existem obstáculos inevitáveis o suficiente nessa discussão sem que se ergam outros desnecessários.” T. S. Eliot.

Conteúdo do livro: O próprio T. S. Eliot nos dá os detalhes do que trata o livro. Tanto melhor, pois assim não corremos o risco de escrever alguma impropriedade.

Diz Eliot: “No começo de meu primeiro capítulo, busquei distinguir e relacionar os três principais usos da palavra e chamar a atenção para o fato de que, quando usamos o termo em um desses três modos, devemos estar atentos para os demais. A seguir, tentei expor a relação essencial entre cultura e religião, e deixar claras as limitações da palavra relação como uma expressão dessa ‘relação’. A primeira asserção importante é que nenhuma cultura surgiu ou se desenvolveu a não ser acompanhada por uma religião: de acordo com o ponto de vista do observador, a cultura aparecerá como o produto da religião, ou a religião como o produto da cultura.

Nos três capítulos seguintes, discuto o que me parecem ser três importantes condições para a cultura. A primeira dessas é a estrutura (não apenas planejada, mas em desenvolvimento) orgânica, de tal modo que promova a transmissão hereditária de cultura dentro da própria cultura: e isso requer continuidade de classes sociais. A segunda é a necessidade de a cultura ser analisável, do ponto de vista geográfico, em culturas locais: isso levanta o problema do ‘regionalismo’. A terceira é o equilíbrio entre unidade e diversidade na religião – ou seja, universalidade da doutrina e particularidade do culto e da devoção. O leitor deve ter em mente que não pretendo explicar todas as condições necessárias para que uma cultura floresça; discuto três que chamaram minha atenção em particular. Deve lembrar-se igualmente de que não ofereço um conjunto de indicações para a produção de uma cultura. Não estou afirmando que, ao começar a produzir essas ou outras condições adicionais, podemos confiantemente esperar que melhoremos nossa civilização. Afirmo apenas que, até onde se pode alcançar minha observação, é improvável que haja grande civilização onde que que essas três condições estejam ausentes.

Os dois últimos capítulos fazem uma modesta tentativa de desembaraçar a cultura da política e da educação.

Assim, uma nova civilização está sempre em construção: o estado de coisas que desfrutamos hoje ilustra o que acontece com as aspirações de cada época por um futuro melhor. A questão mais importante que podemos perguntar é se existe uma modelo permanente pelo qual podemos comparar uma civilização com outra, e através do qual podemos prever o progresso ou o declínio de nossa própria.

Caso sejamos bem-sucedidos, ainda que em parte, em responder tal questão, devemos ficar alertas contra a ilusão de tentar produzir tais condições com vistas a melhorar nossa própria cultura. Pois quaisquer que sejam as conclusões definitivas a emergirem deste estudo, uma delas certamente é a seguinte: a cultura é algo ao qual não podemos ambicionar deliberadamente. Ela é o produto de uma pletora de atividades.

De resto, devemos buscar a melhoria da sociedade, do mesmo modo como buscamos melhorar como indivíduos em questões particulares relativamente menores. Não podemos dizer: ‘Devo transformar-me em uma pessoa completamente diferente’; podemos dizer apenas: ‘Vou abandonar este mau hábito e tentar adquirir aquele bom’. Do mesmo modo, a respeito da sociedade somente podemos dizer: ‘Devemos tentar aperfeiçoá-la quanto a este ou àquele aspecto em particular, em que o excesso ou a ausência é evidente; devemos tentar incluir simultaneamente em nossa visão tantas coisas, de maneira a podermos evitar, ao consertar algo que estava errado, estragar alguma outra coisa’. Até mesmo isso é a expressão de uma aspiração maior do que podemos efetivamente alcançar: pois é tanto – ou mais – em virtude do que alcançamos aos poucos, sem compreender ou prever as conseqüências, que a cultura de uma época difere daquela de sua antecessora.”
 
Sobre o autor:
 
Thomas Stearns Eliot (St. Louis, 26 de setembro de 1888 — Londres, 4 de janeiro de 1965) foi um poeta modernista, dramaturgo e crítico literário britânico-norte-americano. Em 1948, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Eliot nasceu nos Estados Unidos, mudou-se para a Inglaterra em 1914 (então com 25 anos) e tornou-se cidadão britânico em 1927, com 39 anos de idade. Sobre sua nacionalidade e sua influência na sua obra, T.S. Eliot disse:

"My poetry wouldn’t be what it is if I’d been born in England, and it wouldn’t be what it is if I’d stayed in America. It’s a combination of things. But in its sources, in its emotional springs, it comes from America."

[Minha poesia não seria o que é se eu tivesse nascido na Inglaterra, e não seria o que é se eu tivesse permanecido nos Estados Unidos. É uma combinação de coisas. Mas, nas suas fontes, na sua força emocional, ela vem dos Estados Unidos.]

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A VIDA INTELECTUAL

Seu espírito, suas condições, seus métodos
Título original: La Vie Intellectuelle – Son Esprit, Ses Conditions, Ses Méthodes
Autor: A.-D. Sertillanges (1863-1948) [Antonin-Dalmace Sertillanges]
Tradutor: Lilia Ledon da Silva
Assunto: Educação clássica
Editora: É Realizações
Edição: 1ª
Ano: 2010
Páginas: 200
Nota: (Traduzida da edição de 1944, da J. Lecouvert, :Vic. Gen., Paris, França)

Sinopse: A Vida Intelectual, do padre A.-D. Sertillanges, redigida originalmente em 1920, ainda se mantém atual para os leitores do novo milênio.

Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo.

A vida intelectual não é uma dimensão separada da vida prática, e sim abarca e transcende esta, trazendo novas possibilidades e responsabilidades diante de si, dos outros e do mundo.

Assim, o espírito de uma vida intelectual está no fato de que se ela transcende a vida prática, deve ser no sentido de propiciar um maior entendimento dela. Suas condições são os valores éticos, como a honestidade intelectual e a sinceridade. Seu método consiste nos exemplos que percorrem toda a escrita do padre Sertillanges.

Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam uma vida plena – em todas as suas potencialidades, e não há nada mais atual que esse desejo.

Excertos: “Uma vocação não se satisfaz de modo algum com leitura soltas e trabalhinhos esparsos(p.21). “...ninguém estará agindo com sabedoria se deixar seu espírito retornar pouco a pouco a seu estado de indigência inicial(p. 21). “A ambição ofende a verdade eterna quando a transforma em sua subordinada(p.23). “Obter sem pagar é o desejo universal; mas é um desejo de corações covardes e de cérebros enfermos(p. 23). “Que cada qual pense a respeito, enquanto pensar ainda pode vir a ser útil(p.24). “Pobre tartaruga trabalhadeira, nada de entreter-se, só perseverança, e ao cabo de alguns anos terá ultrapassado a lebre indolente cujo ritmo desimpedido causava inveja a seu andar penoso(p.25).


Sobre o autor: Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges nascido em Clermont-Ferrand, a 16 de novembro de 1863 e falecido em Sallanches, a 26 de julho de 1948, foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do século XX.

Em 1883 ingressa na ordem dos dominicanos, mudando o próprio nome para Antonin-Gilbert. Chefe de redação da Revue Thomiste, em 1900 é nomeado professor de Ética do Institut Catholique de Paris, onde permanecerá até 1922. A publicação do seu monumental Thomas D’Aquin (1910) dá-lhe notoriedade nacional e internacional. Em 1918 é eleito membro da Académie des Sciences Morales et Politiques. Depois de um longo período em Jerusalém (1923), transfere-se para o convento de Le Saulchoir como professor de Ética Social, fazendo-se cada vez mais notar como um dos principais representantes do neotomismo francês, ao lado de Jacques Maritain [que apostata para aderir ao marxismo] e Etienne Gilson. De volta a Paris em 1940, falece oito anos depois, aos 85 anos, de parada cardíaca durante uma convenção num convento de Haute Savoie.

Segundo Sertillanges, toda atividade humana e todo saber encontram a própria razão de ser no cristianismo. Em Le Christianisme et les Philosophies, publicado em dois volumes, em 1939 e em 1941, trata os dados do próprio pensamento segundo as relações entre cristianismo e filosofia. Depois da aparição dos Evangelhos não pode haver filosofia alguma que possa prescindir dos seus ensinamentos. Segundo Sertillanges: “Sem o cristianismo não haveria nenhuma filosofia aceitável (...) todas as que apareceram depois do Evangelho, por mais úteis que sejam se fundidas com ele, jamais poderiam sozinhas trazer qualquer benefício à nossa civilização (...)”.

O teólogo francês é também um profundo conhecedor e admirador de Santo Tomás, de quem se aproximou desde que, no final do séc. XIX, foi nomeado chefe de redação da Revue Thomiste. A sua biografia do santo, publicada, como já se disse, em 1910, é uma obra imprescindível a todos que desejam aprofundar-se no estudo da vida e da obra do Aquinate. Voltará a ocupar-se de Santo Tomás em La Philosophie Morale de Saint Thomas D’Aquin (1916) e Les Grandes Thèses de la Philosophie Thomiste (1928). De Santo Tomás, Sertillanges aprecia sobretudo a aguda inteligência amparada em sólida fé e em vigorosa tensão espiritual. Logra, além disso, extrair a radical modernidade da metafísica tomista do ser (em latim, esse) e sua profunda autonomia em relação a Aristóteles, que, não obstante, o santo tinha por modelo. Escreve o filósofo francês: “[Santo Tomás] não hesita em afastar-se da autoridade de Aristóteles sempre que lhe pareça justo (...) ele engrandece a doutrina de Aristóteles e a enriquece infinitamente (...)”.

Sertillanges também é conhecido por seus estudos sobre Pascal (Blaise Pascal, 1941) e sobre Bergson (Henri Bergson et le Catholicisme, 1941), a quem era ligado por uma profunda amizade. Os seus ensaios de divulgação têm tido difusão enorme, como os teológicos Catéchisme des Incroyants (1930) e Dieu ou Rien? (1933), além de La Vie Catholique (1921) e Recueillement (1935), de inspiração moral. O teólogo também tratou de aspectos estéticos do culto cristão, sobretudo em Um Pèlerinage Artistique à Florence (1895) e Art et Apologétique (1909).

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

DOIS AMORES, DUAS CIDADES

Autor: Gustavo Corção
Assunto: Filosofia da cultura
Editora: Agir
Edição: 1ª
Ano: 1967
Páginas: 281
 
Sinopse: A obra em dois volumes versa sobre os passos e as experiências do homem em busca de um mundo melhor ou em busca de si mesmo. Uma obra de referência para o conhecimento das experiências humanas, culturais e políticas, mais especialmente as experiências democratizantes. Tudo disposto em ordem histórica. O ângulo de abordagem é o da filosofia da cultura ou da política, com suprimentos pedidos à teologia.

Ao leitor (Gustavo Corção): Este livro talvez peque pela excessiva fluidez de seu objeto: os homens; ou, quem sabe, por sua excessiva nitidez: o homem. Ou ainda, e mais provavelmente, pelo entremeio de figuras alugadas aos historiadores e das considerações filosóficas em torno delas tecidas – tudo à procura de uma compreensão melhor do mesmo obsessivo e irritante objeto. Posso dizer que ele vem completar uma grande lacuna por mim mesmo deixada nos dez mil artigos de jornal. Aqui suponho que o leitor encontrará mais desenvolvidas e meditadas as idéias que explicam muita posição tomada, muito juízo feito sobre os fatos e os homens de nosso tempo, que na ocasião não pude fundamentar; e espero que encontre também um tom mais repousado e mais demonstrativo do amor que me move.

De um modo geral podemos dizer que este livro, nos seus dois volumes, versa sobre os passos e as experiências do homem em busca de um mundo melhor ou em busca de si mesmo. Poderia ter escolhido o título inspirado em Gauguin: “Qui sommes-nous? D’où venons-nous? Où allons-nous?” [“Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?”]. Preferi tirá-lo de Santo Agostinho, na Cidade de Deus, porque além de tantas interrogações esta obra pretende formular algumas afirmações. E uma delas é precisamente a que se acha condensada no título: dois amores, duas cidades. Ou mais claramente: o mundo, a ordem política, a civilização que está para cristalizar-se, dependem essencialmente, diretamente, do amor que tivermos. E não basta dizer do amor que tivermos para uso próprio em nossa vida particular; é preciso acrescentar: do amor que tivermos e que soubermos projetar, e que assim venha a construir o próprio tecido de um mundo novo que todos nós queremos menos egoísta e menos desumano.

A matéria desta obra são as experiências humanas, culturais e políticas, e mais especialmente as experiências democratizantes, dispostas em ordem histórica; o ângulo com que é considerada é o da filosofia da cultura ou da política, com suprimentos pedidos à teologia, como convém à filosofia adéquatement prise [devidamente tidas]. As partes mais abstratas estão dispostas segundo uma ordem que me pareceu mais didática: a da proximidade da aplicação. A rigor, cada volume por ser lido separadamente, mas o autor ousa esperar que alguns leitores tenham a energia para ler os dois volumes, a fim de aprenderem a síntese que eles propõem. Justamente por ser simples demais, a idéia principal que atravessa estas mil páginas precisa de amparo e do concurso de muitos fatores, precisa de uma mobilização geral de recursos, para livrar-se do lugar comum ou da palavra vazia.

Daí a necessidade de tantas páginas, de tantos assuntos, de tantas perspectivas que expõem esta obra ao risco de parecer-se com a tese de Pico de la Mirandola, intitulada “De omini re scibili” [“Os presságios do cognoscível”]; e ao risco ainda maior de merecer a crítica do leitor malicioso que acrescentou o subtítulo: “et quibusdam aliis” [“e certos outros”]. Não pretendo ter escrito sobre todas as coisas sabíveis, mas pretendo ter escrito, um pouco abundantemente, sobre algumas coisas que, normalmente, deveriam dispensar tamanho discurso.

O Autor

Orelhas do segundo volume: Quem quiser entender, menos superficialmente, as dores e esperanças dos tempos presentes, para entrever as promessas ou ameaças do futuro, terá de volver às experiências passadas, recapitular as buscas, os erros, as conquistas fecundas e as grandes expectações frustradas, tudo isto sentido como coisa passada e ao mesmo tempo atuante, perempta e atual. A genética da história, de que tanto se abusa para anunciar mutações, vale primeiro para assegurar continuidades. Para esse empreendimento vertiginosamente variado e denso é preciso possuir um sólido equipamento de princípios, critérios, eixos, que tenham força e firmeza para medir e julgar o movediço turbilhão de fatos e feitos que encheu os séculos.

É uma ousada tentativa desse gênero que nos traz esse novo livro de G.C. [Gilbert K. Chesterton] que certamente surpreenderá seu leitor habitual, e por mais forte razão aqueles que, a respeito desse autor, descansavam nas classificações definitivas. Ao longo de suas mil páginas, alternadas entre quadros pedidos aos historiadores e especulações às vezes árduas pedidas a filósofos e teólogos, para maior apuro dos princípios e dos critérios, este livro variado, ora exigente de atenção máxima, ora remunerador com agrados do estilo e das imagens, move-se todo na perseguição de uma estrela de Belém ou de uma idéia-luz de inspiração agostiniana, que transparece desde o título: dois amores e duas cidades. O mundo melhor que todos queremos depende de uma essencial opção entre dois amores, e da capacidade que tivermos de colocar tal escolha como constelação zodiacal do novo mundo. “Une nouvelle chrétienté demande à naitre”, diz Charles Journet. Este livro é a prolongada glosa dessa esperança.

Há na estrutura deste livro uma característica que forma certo contraste com a índole personalíssima do autor. Contra seus hábitos, o livro é carregado de citações, ou melhor, o livro é uma conversação onde falam vários autores, às vezes longamente. Não se trata de citações usadas para corroborar o pensamento do autor, mas de toda uma trama de contribuições postas em forma de autêntico diálogo. Trata-se pois de um livro escrito por uma centena de autores. É verdade que no meio das vozes harmoniosas há aqui e ali, como no teatro, passagens inteiras de algum vilão.

No segundo volume, sobretudo nos últimos capítulos, temos uma pungente exposição dos erros terríveis acumulados na Civilização Ocidental Moderna, desde a Renascença e a Reforma, e cobrados agora aos estupefatos habitantes do século XX. É nessa parte do livro que se adensa a contribuição que Gustavo Corção nos traz nesta obra que compendia as reflexões vividas e tantas vezes difundidas pelo autor, em artigos, conferências e aulas, nestes últimos dez anos (1967) A conclusão se chama Inconclusão e diz respeito às perplexidades e lutas do turvado presente. Teremos perdido a primeira batalha? Teremos avançado através da tortuosidade dos caminhos?

sábado, 1 de setembro de 2012

CRISE E UTOPIA: O Dilema de Thomas More

Autor: Martim Vasques da Cunha
Assunto: Filosofia
Editora: Vide Editorial
Edição: 1ª
Ano: 2012
Páginas: 324

Sinopse: Este livro procura falar sobre a 'crise da modernidade' no coração do Humanismo europeu.

Comentários: Habitar um mundo onde desconhecemos o certo do errado, o justo do injusto, o Bem do Mal – eis a “crise da modernidade”, segundo Leo Strauss, que em The Three Waves of Modernity deu rostos a essa crise.

O primeiro deles teria sido Maquiavel, o florentino que aceitou a divisão profunda entre ser e dever ser, recusando o horizonte espiritual do Cristianismo e procurando numa reactualização da Roma Antiga as virtudes pagãs para a manutenção do poder. Se a fortuna é como uma mulher que pode ser subjugada pelo uso da força, de nada valem as antigas piedades cristãs. Elas podem ser boas para a alma individual, mas são nocivas para a firmeza e a conservação dos Estados.

Nas “vagas da modernidade” de Strauss, o que começa com Maquiavel continua com Rousseau e termina com Nietzsche: o niilismo está consumado. Não existe mais nenhum standard universal, transtemporal e transespecial, que permita aos homens atuar na história terrena conservando ainda um quadro axiológico sub specie aeternitatis. Os homens estão agora entregues ao seu destino – o que significa, no limite, que eles escolhem e produzem os seus próprios valores.

A importância de Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More, uma obra notável sobre a “crise da modernidade” no coração do Humanismo europeu, está na escolha de Thomas More como o primeiro rosto que Strauss esqueceu. Maquiavel é já um convertido à “política da fé”, para usar a expressão racionalista de Michael Oakeshott. Mas Thomas More situa-se antes do dilúvio consumado, embora antecipando e vivendo na ansiedade do turbilhão.

E as perguntas – dilacerantes para More – confluem para o mesmo ponto: em que cidade podemos, ou devemos, viver? Na cidade dos homens? Na cidade de Deus? E que relação é possível estabelecer entre ambas? Haverá ainda uma unidade espiritual entre a alma bem ordenada e uma polis que seja a extensão dessa alma? E como atuar neste wretched world? Como conciliar os princípios com as circunstâncias, sem necessariamente sacrificar os primeiros – ou, mais ainda, sem vergar as circunstâncias às “metástases da fé”?

Thomas More formulou todas estas perguntas: na sua conduta privada na corte de Henrique VIII e na sua produção intelectual, onde se destaca Utopia, que Martim Vasques da Cunha apresenta como a culminação irónica e desencantada da “crise da modernidade”: a evidência cruel de que “o recuo da comunidade cristã”, para usar uma expressão cara a Roger Scruton, apenas nos conduz a “palavras, palavras, palavras” – no fundo, a esse Lugar Nenhum onde teremos como cicerone um mestre da efabulação – e das “bobagens”.

Para Leo Strauss, a “crise da modernidade” não representaria apenas um impasse ético, mas também epistemológico: se desconhecemos a verdade, como a procurar? Ou, dito ainda de outra forma, que papel resta ao “intelectual secular” quando ele sente que a ordem espiritual se foi eclipsando na polis? Cabe-lhe ser conselheiro de príncipes, tarefa a que o referido florentino se entregou com entusiasmo? Ou haverá ainda espaço para evitar essa “traição”, como a caracterizou Julien Benda, e conservar um reduto último e inegociável que, na falta de melhor palavra, designaremos por “consciência”?

Martim Vasques da Cunha mostra-nos que as tentativas de resposta a essa pergunta agónica não se limitaram a ocupar a pena de Thomas More. Na verdade, elas o acompanharam literalmente até ao fim da vida.
(Texto de João Pereira Coutinho nas orelhas do livro, Lisboa, 6 de fevereiro de 2012)