Assunto: Filosofia
Editora: Vide Editorial
Edição: 1ª
Ano: 2012
Páginas: 324
Comentários: Habitar um mundo onde desconhecemos o certo
do errado, o justo do injusto, o Bem do Mal – eis a “crise da modernidade”,
segundo Leo Strauss, que em The Three
Waves of Modernity deu rostos a essa crise.
O primeiro deles teria
sido Maquiavel, o florentino que aceitou a divisão profunda entre ser e dever ser, recusando o horizonte espiritual do Cristianismo e
procurando numa reactualização da Roma Antiga as virtudes pagãs para a
manutenção do poder. Se a fortuna é como uma mulher que pode ser subjugada pelo
uso da força, de nada valem as antigas piedades cristãs. Elas podem ser boas
para a alma individual, mas são nocivas para a firmeza e a conservação dos
Estados.
Nas “vagas da
modernidade” de Strauss, o que começa com Maquiavel continua com Rousseau e termina
com Nietzsche: o niilismo está consumado. Não existe mais nenhum standard
universal, transtemporal e transespecial, que permita aos homens atuar na
história terrena conservando ainda um quadro axiológico sub specie aeternitatis. Os homens estão
agora entregues ao seu destino – o que significa, no limite, que eles escolhem
e produzem os seus próprios valores.
A importância de Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More,
uma obra notável sobre a “crise da modernidade” no coração do Humanismo
europeu, está na escolha de Thomas More como o primeiro rosto que Strauss
esqueceu. Maquiavel é já um convertido à “política da fé”, para usar a
expressão racionalista de Michael Oakeshott. Mas Thomas More situa-se antes do
dilúvio consumado, embora antecipando e vivendo na ansiedade do turbilhão.
E as perguntas –
dilacerantes para More – confluem para o mesmo ponto: em que cidade podemos, ou
devemos, viver? Na cidade dos homens? Na cidade de Deus? E que relação é
possível estabelecer entre ambas? Haverá ainda uma unidade espiritual entre a
alma bem ordenada e uma polis que seja a extensão dessa alma? E como atuar
neste wretched world? Como conciliar
os princípios com as circunstâncias, sem necessariamente sacrificar os
primeiros – ou, mais ainda, sem vergar as circunstâncias às “metástases da fé”?
Thomas More formulou
todas estas perguntas: na sua conduta privada na corte de Henrique VIII e na
sua produção intelectual, onde se destaca Utopia, que Martim Vasques da Cunha
apresenta como a culminação irónica e desencantada da “crise da modernidade”: a
evidência cruel de que “o recuo da comunidade cristã”, para usar uma expressão
cara a Roger Scruton, apenas nos conduz a “palavras, palavras, palavras” – no
fundo, a esse Lugar Nenhum onde teremos como cicerone um mestre da efabulação –
e das “bobagens”.
Para Leo Strauss, a
“crise da modernidade” não representaria apenas um impasse ético, mas também
epistemológico: se desconhecemos a verdade, como a procurar? Ou, dito ainda de
outra forma, que papel resta ao “intelectual secular” quando ele sente que a
ordem espiritual se foi eclipsando na polis? Cabe-lhe ser conselheiro de
príncipes, tarefa a que o referido florentino se entregou com entusiasmo? Ou
haverá ainda espaço para evitar essa “traição”, como a caracterizou Julien
Benda, e conservar um reduto último e inegociável que, na falta de melhor
palavra, designaremos por “consciência”?
Martim Vasques da Cunha
mostra-nos que as tentativas de resposta a essa pergunta agónica não se
limitaram a ocupar a pena de Thomas More. Na verdade, elas o acompanharam
literalmente até ao fim da vida.
(Texto
de João Pereira Coutinho nas orelhas do livro, Lisboa, 6 de fevereiro de 2012)
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