sexta-feira, 21 de maio de 2010

O TARTUFO

Título original: Le Tartuffe
Autor: Molière
Tradução: Jenny Klabin Segall
Editora: Martins Fontes
Assunto: Teatro
Edição: 1ª
Ano: 2005
Páginas: 252
Nota: Publicado juntamente com “O Misantropo”


Sinopse: Tartufo (em francês Le Tartuffe) é uma comédia de Molière, e uma das mais famosas da língua francesa em todos os tempos. Sua primeira encenação data de 1664 e foi quase que imediatamente censurada pelos devotos religiosos que, no texto, foram retratados na personagem-título como hipócritas e dissimulados.
Por meio de um diálogo de enorme sutileza e força cômica, o autor apresenta a figura de um homem sensual e lascivo que, sob a aparência de asceta virtuoso, consegue aproveitar-se da confiança de seu protetor, inclusive voltá-lo contra a família, e só é desmascarado quando tenta seduzir a dona-de-casa.

O livro todo se apresenta com uma homogeneidade perfeita de Alexandrinos de rimas ricas, conservando de Molière a graça e seus métodos de criação e as suas virtudes de autor.

Enredo:

Orgon, pessoa muito importante da sociedade parisiense, havia caído sob a influência de Tartufo, um religioso bastante hipócrita, além de ser extremamente inescrupuloso. Na verdade, os únicos que não se dão conta do verdadeiro caráter do espertalhão são Orgon e sua mãe, madame Pernelle.

Tartufo exagera em sua devoção religiosa, chegando mesmo a ser o diretor espiritual de Orgon.

Desde que o vilão passara a residir em sua casa que Orgon segue-lhe todos os conselhos, chegando ao ponto de prometer-lhe a filha em casamento, apesar de a mesma estar noiva de Valerio. A jovem Mariana fica bastante infeliz com a decisão paterna, e sua madrasta Elmira tenta desencorajar o embusteiro de suas pretensões matrimoniais. Durante este diálogo, Tartufo tenta seduzir a jovem esposa do velho Orgon, cena esta testemunhada por Damis, filho de Orgon.

Damis relata ao pai o que vira, mas este, longe de acreditar, deserda Damis e decide passar a própria casa para o nome do caloteiro – uma forma de assim forçar o casamento contra o qual todos pareciam tramar. Aumenta a tristeza de Mariana, e Elmira adia a sua assinatura do contrato feito pelo marido. Ela então propõe ao marido que, escondendo-se sob uma mesa, seja ele próprio testemunha do verdadeiro caráter de Tartufo.

Orgon concorda com o estratagema, e ante as palavras de Tartufo para sua mulher, descobre finalmente qual o verdadeiro caráter daquele hipócrita a que tanto confiara, e que sua família sempre tivera razão.

Colocando Tartufo para fora da casa, este porém impõe-se como seu novo proprietário. E Orgon dá-se conta de que depositara com o falso devoto documentos de um amigo, cuja fuga ocultara, comprometendo-o.

A mãe de Orgon vem lhe visitar. Pernelle tem ainda grande admiração por Tartufo, e não se deixa convencer sobre o real caráter dele. Surge então o Sr. Loyal, policial enviado por Tartufo, a fim de avisar que a família tem até o dia seguinte para desocupar o imóvel. Só depois disso Pernelle reconhece que ele é mesmo um caloteiro.

Enquanto a família reunida discute como safar-se daquela situação vexatória, chega Valerio, informando que Tartufo entregara ao Rei os documentos que incriminavam Orgon, e este deveria ser preso. Planejam rapidamente uma fuga, mas Tartufo reaparece, desta feita acompanhado por um policial.

Autoritário, o falso amigo expede a ordem para que Orgon seja preso. Mas este, para surpresa de todos, prende o próprio Tartufo: ele era um caloteiro conhecido, tendo já aplicado outros golpes. A doação feita é anulada, e finalmente Orgon permite o casamento de Valerio e Mariana.

Reações à obra:

A obra foi apresentada perante o Rei em maio de 1664, antes de sua estréia e numa versão inacabada, com apenas três atos. Apesar disto, conseguiu indignar os devotos, por seu conteúdo. A Companhia do Santo Sacramento utilizou de sua influência para conseguir que a obra fosse proibida: viam nela um ataque frontal à religião e aos valores que ela propugnava.
O certo é que, por trás das críticas à hipocrisia, que é o tema principal da obra, se vê um ataque ao papel demasiado influente que tinham alguns devotos que se passavam por guias espirituais, quando na verdade eram saqueadores de heranças.

Após algumas apresentações particulares, Molière tratou de representar sua obra com o título de "Panulfo, ou o Impostor", em agosto de 1667. Mas depois da primeira apresentação, o responsável pela polícia proibiu novamente a obra, com o argumento de que "não é o teatro o local para se pregar o Evangelho". O Arcebispo de Paris, Hardouin de Péréfixe, chega a ameaçar com a excomunhão todo aquele que represente ou assista tal obra, que acusa ser um violento ataque à religião.

Foi mister esperar até fevereiro de 1669 para que Louis XIV autorize a Molière a representar sua peça, que além disso recupera o título original de Tartufo.

Intenções de Molière:

Ao escrever sua obra, o autor ataca um grupo muito influente: os devotos. Entre estes se contavam homens cuja religiosidade era sincera, mas a maioria era de manipuladores conscientes do poder que poderiam obter com a falsa devoção. Foi a este segundo tipo que Molière atacou.

Mas também descreve uma rica família da alta burguesia. Orgon, uma vez tendo consolidado sua posição financeira, busca uma espécie de ligitimidade religiosa. Como todos os altos burgueses descritos por Molière, mostra uma certa ingenuidade. Exerce um tipo de ditadura sobre seus filhos. O tema do matrimônio de conveniência, algo que Molière não aceitava, também se acha nesta obra.

A peça se insere na realidade histórica com alusão à revolta da Fronda que se deslanchara em França, quinze anos antes. O Rei aparece como símbolo do bom senso.

Em torno de Orgon e Tartufo (que somente surge quando a peça está bastante avançada) aparecem outros personagens freqüentes em Molière: os jovens ingênuos e impetuosos (Damis, Mariana e Valerio), os sábios e razoáveis (Elmira e Cleanto), a serviçal com senso vulgar e linguagem curta e direta (Dorina), a velha fora do tempo e da razão (Mme. Pernelle).

Curiosidade:

Na língua portuguesa, o termo tartufo, como em outro idiomas, passou a ter a acepção de pessoa hipócrita ou falso religioso, originando ainda uma série de derivados como tartufice, tartúfico ou ainda o verbo tartuficar - significando enganar, ludibriar com atos de tartufice.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

OS DEMÔNIOS

Título original: Biêsi
Autor: Fiódor Mikháilovitch Dostoievski (1821-1881)
Tradução: Paulo Bezerra (Tradução do original russo)
Assunto: Romance
Editora: 34
Edição: 1ª
Ano: 2004
Páginas: 704

Sinopse: Os demônios é um romance essencial para compreender a mente revolucionária, a mentalidade de radicais políticos de todos os matizes e, sobretudo, para compreender uma das mais nefastas criaturas políticas de todos os tempos: o terrorista. O romance é essencial, também, para compreender o utopista ideológico ateu (Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski) que produz o revolucionário prático (Piotr Stiepánovitch).

Inspirado por um episódio verídico ― o assassinato do estudante I. I. Ivanov cometido na Rússia por um grupo niilista liderado por S. G. Nietcháiev em 1869 ―, Dostoiévski fez a anatomia ficcional do fanatismo ideológico, antecipando muito dos horrores dos séculos seguintes, do stalinismo ao fundamentalismo que amedronta o mundo hoje.

O livro trata, também, da redenção do homem ateu (Stiepan) que pretendeu divinizar o mundo e ao final da vida descobre Deus e reconhece que viveu uma ilusão durante toda a sua existência. É o encontro do ateu com Deus.

Este livro é recomendado a todos aqueles que desejam compreender a gênese das idéias revolucionárias e utópicas (Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski) até o aparecimento de um louco (Piotr) que pretende colocá-las em prática originando mais tarde os horrores do marxismo-leninista que vitimou mais de cem milhões de pessoas em todo o mundo. E por que disso? Porque a mente revolucionária dos utopistas pensa que é possível matar Deus e destruir a realidade do mundo existente para colocar em seu lugar um homem novo e um mundo novo, ambos construídos por eles.

José Monir Nasser diz que a obra é “um bisturi afiado dissecando a mente revolucionária”.

Comentários sobre o autor e sua obra: Dostoievski publicou Os demônios dez anos antes de morrer. Trata-se de um romance a fazer parte do quarteto que compõe o ápice de sua carreira. Os demônios é, de fato, uma referência inevitável no crepúsculo de uma carreira que não conheceu crepúsculo, antes, chegou ao limite no seu máximo, embora o sujeito Fiódor Mikháilovitch já sucumbisse a uma existência torturada tanto pela doença (epilepsia), quanto pelos problemas mais agudos como o vício do jogo, as dívidas altas e recorrentes, a viuvez, a morte de um filho, a prisão e a condenação à morte (da qual se salvou não sem trauma).

Falar em Dostoiévski é falar no romance bruto, no sentido mais metafórico e, simultaneamente, justo para o gênero. Seus temas, seu estilo, nervoso, fundos até a exaustão das figuras e das circunstâncias que as engolem, representam para a ficção moderna uma retomada narrativa que antes dele se dava de forma quase plana. Dostoiévski antecipa Freud, sem as explicações deste, mas com todas as doenças da alma expostas sem piedade, nas ruas, pensões, salas, quartos, salões, e até mesmo numa poltrona; sem conforto ou com conforto, seus protagonistas sofrem o dilema de carregarem o peso de si mesmos.

É de se recortar do romance (embora seja uma operação condenada à derrota esse recorte, já que o ficcionista escreve com fervor cada linha, descreve sua gente e o destino que a empurra para o precipício numa atmosfera de constante febre) a morte irrepetível de Chátov (Toda morte é irrepetível, e isso não é metafísica barata. Em Dostoiévski esta máxima, a do irrepetível, se cumpre praticamente de cinco em cinco páginas). Todos são protagonistas, tudo é protagonismo, e o cenário envolve como uma camisa-de-força os seres que cumprem à risca os papéis menos recomendáveis, como Kirillov, uma bomba ambulante, Stavróguin, aristocrata, vendo o mundo de cima e quase cuspindo nele, Piotr Stiepánovitch, que lidera a revolução que prega com a obsessão dos líderes frente aos quais nenhum argumento cala e todo adversário sabe ou saberá, bem cedo, o tamanho da sentença com que Piotr Stiepánovitch responde a qualquer contrariedade.

A dimensão política faz seu nicho e o que é clamado em nome da sociedade termina por escravizar cada homem.

Um detalhe importante. No Brasil saíram algumas traduções anteriores do livro. Muitas com o título de Os possessos. Paulo Bezerra, que traduziu o livro diretamente do russo, diz que chamar de possessos ao grupo das personagens da obra é tirar-lhes a dimensão demoníaca. E eu acrescento que não há possessão, há demonização expressa nos atos de homens que já não consideram a espiritualidade como única possibilidade humana para levá-lo a verdadeira felicidade que só pode ser encontrada em Deus. O diabo não é inimigo de Deus, porque Deus não tem inimigos. O diabo é inimigo dos homens. Portanto, é preciso combatê-lo.

Enfrentar um romance desse naipe é cair na sua realidade, é o pesadelo das atrocidades que vêm se somando com Lênin, Stálin, Mao tse-tung, Pol Pot, Fidel Castro, entre outros. E não são esses ases do terror os únicos demônios. Há outros, notadamente os que estão sendo produzidos aqui no Brasil e na América Latina.

Portanto, há demônios entre os homens e homens entre os demônios, e a aliança se faz quando os demônios intentam destronar Deus, divinizar a humanidade e criar o Brave New World.

Quando o ser humano diviniza o mundo real, o Estado e a sociedade, tudo perde o sentido. A vida de cada um de nós tem que ter um sentido e este sentido precisa ser interior e jamais exterior. Nós é que não queremos enxergar, ou, se enxergamos, onde está a força de espírito para encarar o monstro e extingui-lo em nome de uma humanidade que mereça seu nome?

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O LEITOR

Título Original: The Reader
Gênero: Drama
Atores: Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross, Bruno Ganz, Mattias Habich, Susanne Lothar, Kkaroline Herfurth, Alexandra Maria Lara, Volker Bruch, Burghart KlauBner.
Diretor: Stephen Daldry
País: Alemanha, Estados Unidos.
Ano: 2008
Duração: 123 min

Sinopse: Baseado no romance Der Vorleser, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink.

Na Alemanha pós-2ª Guerra Mundial o adolescente Michael Berg (David Kross) se envolve, por acaso, com Hanna Schmitz (Kate Winslet), uma mulher que tem o dobro de sua idade. Apesar das diferenças de classe, os dois se apaixonam e vivem uma bonita história de amor. Até que um dia Hanna desaparece misteriosamente. Oito anos se passam e Berg, então um interessado estudante de Direito, se surpreende ao reencontrar seu passado de adolescente quando acompanhava um polêmico julgamento por crimes de guerra cometidos pelos nazistas.

Enredo: O filme começa em 1995, na cena em que Michael (Ralph Fiennes) prepara o café-da-manhã para uma mulher com quem passou a noite. Quando ela vai embora, Michael olha pela janela e vê um U-Bahn amarelo, fazendo-o lembrar de quando, em 1958, então com 15 anos, morando em Neustadt, passa mal durante o trajeto do U-Bahn e acaba vomitando na entrada de um prédio, sendo em seguida socorrido por Hanna Schmitz (Kate Winslet), uma trocadora que morava naquele prédio.

Em casa, Michael é diagnosticado como portador de escarlatina. O médico da família ordena que o jovem fique de cama pelos três meses seguintes. Após a recuperação, ele manifesta vontade de visitar a desconhecida que o ajudara. Os dois acabam se envolvendo e passam a ter um caso. Durante os encontros no apartamento da trocadora, o jovem passa a ler para ela obras literárias que estuda no colégio, como a Odisséia, de Homero, A Dama do Cachorrinho, de Anton Checkhov, e Huckleberry Finn, de Mark Twain. Os encontros passam, então, a ter sempre uma sessão de leitura seguida de uma relação sexual. Hanna sempre se refere a Michael como "garoto" (kid), nunca pelo nome. Um belo dia, Hanna é promovida, sendo avisada de que iria trabalhar no escritório da empresa, e subitamente desaparece sem deixar rastros.

O filme volta a mostrar Michael já adulto, seguindo a carreira de advogado, quando então volta ao ano de 1966, com Michael cursando direito na Universidade de Heidelberg. Como parte de um seminário sob o comando do Professor Rohl (Bruno Ganz), um judeu sobrevivente de um campo de concentração, Michael passa a assistir o julgamento de várias mulheres acusadas de terem deixado trezentas prisioneiras judias morrerem queimadas em uma igreja em chamas no ano de 1944, em um evento conhecido como "Marcha da Morte", ocorrido após a evacuação do campo de Auschwitz. Uma das rés é Hanna Schmitz.

Atordoado, Michael visita um campo de concentração. O julgamento divide o seminário, com um dos alunos argumentando que não havia nada a aprender com aquilo, a não ser que coisas horríveis haviam acontecido diante dos olhos de milhões de cidadãos alemães, que falharam em não agir diante dos fatos e por isso haveriam de sofrer por toda a vida.

A evidência chave do julgamento é o depoimento da sobrevivente judia Ilana Mather (Alexandra Maria Lara), que escrevera um livro contando como ela e sua mãe conseguiram sobreviver à marcha da morte. Hanna, ao contrário das outras rés, admite que Auschwitz era um campo de extermínio e que as dez mulheres que eram "selecionadas" a cada mês eram enviadas à câmara de gás. Ela nega ter sido a autora de um relatório redigido após o incêndio da igreja, apesar da pressão das demais rés, no entanto, acaba confessando a autoria quando o juiz lhe solicita uma amostra de sua caligrafia.

Michael, então, descobre o grande segredo de Hanna: ela é analfabeta funcional, tendo ocultado o fato por toda a vida. Passou a integrar a SS após ter sido promovida em um emprego anterior, o que iria lhe obrigar a revelar seu segredo. Michael revela a seu professor que possui uma informação relevante, favorável a uma das rés, mas não sabe se faz a revelação, já que a mesma havia optado por escondê-la. O professor lhe diz que, se não havia aprendido nada com o passado, então não havia necessidade de participar daquele seminário.

Hanna é condenada à prisão perpétua por seus crimes de guerra, enquanto as demais rés recebem penas menores. Nos anos posteriores, Michael se casa, tem uma filha e se divorcia. Ao rever seus livros e notas de aula dos tempos de seu caso com Hanna, resolve gravar os textos em fitas cassete e envia as fitas, junto com um tocador, para Hanna. Com o tempo, ela aprende a ler e a escrever, e passa a enviar cartas para o rapaz.

Michael nunca retorna as cartas, mas continua enviando fitas. Em 1988, uma funcionária da penitenciária (Linda Basset) telefona para Michael e pede sua ajuda: Hanna tivera um afrouxamento de pena e será libertada, mas sua transição para uma vida em sociedade poderia ser problemática. Michael encontra um lar e um emprego para ela, e finalmente a visita. No entanto, na noite anterior ao dia de liberdade, Hanna se suicida e deixa uma carta para Michael, e junto com ela uma lata com algum dinheiro.

Comentários: Muitos podem pensar que o conflito está em Hanna. Por ela ter trabalhado no campo de concentração, mas eu não creio nessa possibilidade. No filme há uma discussão sobre o fato de ela estar “apenas fazendo o seu trabalho”. Ela precisava de um emprego. Essa discussão fica para cada um. Contudo, é muito difícil imaginar o que cada um teria feito, inclusive esta é a pergunta que Hanna faz para o juiz no tribunal. Cada um pode dizer com certeza que não teria participado? Esta é uma questão complicada de ser respondida.

O mais provável que o problema maior do filme seja a vergonha. Michael sente vergonha da relação que teve com aquela mulher. Ele sabe um segredo sobre ela que pode livrá-la da condenação dela, mas ainda assim se cala. É possível, também, que o sentimento de Michael seja uma metáfora para o sentimento de todo o povo alemão: É mais fácil ignorar que aconteceu, do que realmente aceitar o fato que faz parte do seu passado.

Conclusão: O Leitor é uma história que nos levará a questionar todas as nossas mais profundas verdades. A sociedade acredita que é guiada pela moralidade, mas isto não é verdade. Trata-se da história de medos e segredos escondidos pelo tempo.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O HOMEM REVOLTADO

Título original: L´Homme Révolté
Autor: Albert Camus.
Tradução: Valerie Rujanek
Editora: Record.
Assunto: Ensaio (Literatura estrangeira).
Edição: 6ª
Ano: 1996
Páginas: 352

Sinopse: Em outubro de 1951, deu-se a publicação de um livro que abalou a esquerda francesa. Tratava-se do ensaio de Albert Camus intitulado O Homem Revoltado, uma brilhante e literariamente bem articulada exposição sobre as mazelas da revolução através dos tempos contemporâneos, inclusive com reparos aos acontecimentos decorrentes de 1789. Entre outras coisas, a obra provocou o fim da longa amizade que Jean-Paul Sartre mantinha com ele.

Mais de 50 anos depois de sua primeira publicação, com as disputas ideológicas e os questionamentos existenciais da humanidade radicalmente deslocados de seus eixos, este livro adquire uma dimensão especial. Não e possível mais ignorar crimes contra a humanidade sejam eles quais forem seus pretextos revolucionários. A revolta não desculpa tudo. E assim que o humanismo proposto por Camus revela-se fundamental para aqueles que preferem defender os seres humanos antes de defenderem sistemas teóricos abstratos.

"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso. Mas esse regime só pode ser concebido, realizado e sustentado por homens que saibam que não sabem tudo, que se recusem a aceitar a condição proletária e nunca se conformem com a miséria dos outros, mas que recuse, justamente, a agravá-la em nome de uma teoria ou de um messianismo cego."

Albert Camus, novembro de 1948

Comentários: O homem revoltado é todo o indivíduo que se revolta contra o mundo porque acha o mundo injusto e se rebela contra essa realidade culpando Deus pela sua condição humana trágica. Albert Camus faz a denúncia contra os crimes praticados pelos intelectuais revoltados que utilizam um projeto lógico de matança para conceber um mundo idealista e utópico. As mortes de paixão e cobiça, embora condenáveis, são da natureza humana; todavia, não se pode conceber as mortes ideológicas iniciadas com a Revolução Francesa e depois continuadas pelas revoluções que se seguiram, as quais, até 1951, assassinaram em torno de 90 milhões de seres humanos tendo por base a matança lógica alimentada por uma ideologia utópica, só porque aqueles humanos não comungavam da idéia de que o Estado é capaz de resolver a ordem estabelecida por Deus no mundo.

O Homem Revoltado é um livro que exige, depois de uma primeira leitura, uma re-leitura mais cuidadosa - os conceitos, ideologias e atitudes de tantos e diferentes homens são imensas, mais a argumentação de Camus sobre eles, torna muito difícil fazer uma síntese deste ensaio sob pena de pecar por defeito e não expressar condignamente o pensamento do autor. Nada substitui a leitura do livro.

Um pouco de Albert Camus

Nascido em 7 de Novembro de 1913, nos arredores de Mondovi (Argélia), Albert Camus viria a ficar na História como um dos maiores escritores e ensaístas de língua francesa. Tendo superado uma infância pobre e difícil, Camus logrou, ainda assim, licenciar-se em Filosofia. Não pôde, devido à doença, prosseguir uma carreira no ensino.

Com o advento da segunda guerra mundial, Camus junta-se à resistência francesa, primeiro como jornalista do jornal Combat, tendo posteriormente assumido a sua direção. É nesta época da sua vida que trava conhecimento com Jean-Paul Sartre. Prêmio Nobel da Literatura em 1956, Albert Camus viria a falecer no dia 4 de Janeiro de 1960, num acidente de automóvel (um Facel-Vega dirigido por seu editor Michel Gallimard).

Gostaria, porém para finalizar, de escrever umas linhas sobre o que esteve na origem do corte de relações entre Camus e Sartre, precisamente quando da publicação de “O Homem Revoltado”.

Esta obra, ao tratar do tema dos extermínios em massa, tocou num ponto sensível do pensamento intelectual parisiense da época. A existência de campos de concentração na URSS era conhecida como um fato, mas no círculo mais próximo de Sartre discutia-se qual a atitude a adotar em relação a esse fato. Camus deixara inequívoco que iria denunciar essas situações e condená-las, repudiando todas as considerações políticas e táticas sobre o assunto. É que, segundo os seus opositores do círculo de Sartre, era inoportuno tomar uma posição clara contra o terror Estalinista, na medida em que, para eles, a existência da União Soviética era ainda a garantia de uma desejada mudança revolucionária. Tais construções intelectuais da história, face às quais o sofrimento humano se torna secundário, são rejeitadas por Camus em nome das vítimas. Nos seus Carnets, escreve: “É fácil pensar a história, mas é difícil a todos aqueles que a sofreram no corpo compreender as suas razões”.

Depois de “O Homem Revoltado” ter sido alvo de uma crítica demolidora na revista Les Temps Modernes, dirigida por Sartre, crítica essa que termina com o anúncio da cessação de qualquer forma de comunicação por parte de Sartre, Camus escreve ainda nos seus Carnets: “Arrivistas do espírito revolucionário, novos-ricos e fariseus da justiça. Sartre, o homem e o espírito, não leal”. Em 1956, perante a sublevação popular na Hungria, pode-se ler, ainda com mais violência: “Intelectuais do progresso. Eles fazem o tricô da dialética. A cada cabeça que cai, eles apanham as malhas das reflexões rasgadas pelos fatos”.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Original: Brave New World
Autor: Aldous Leonard Huxley
Assunto: Romance distópico
Editora: Globo
Edição: 2ª
Ano: 2001
Páginas: 310


Sinopse: Admirável Mundo Novo é o retrato sombrio e profético da tirania com face humana. Escrito em 1931 e publicado em 1932, este livro é uma antevisão de um futuro no qual o domínio quase integral das técnicas e do saber científico produz uma sociedade totalitária e desumanizada. Esta ficção científica surpreende pela clareza do texto, pela lucidez de Huxley e pela atualidade das questões levantadas.

Narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. A sociedade desse "futuro" criado por Huxley não possui a ética religiosa e valores morais que regem a sociedade atual. As crianças têm educação sexual desde os mais tenros anos da vida. O conceito de família também não existe.

A maior parte da trama passa-se em Londres, seiscentos anos no futuro (632 d.F). O mundo foi dominado pelos controladores mundiais, cujo objetivo é assegurar a estabilidade e felicidade sociais, tal qual a apologia das esquerdas nos tempos atuais. Por causa disso, o conceito estruturador do regime é o utilitarismo, ou a maximização da felicidade geral da sociedade. O romance começa no Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central, um centro de produção de seres humanos, cuja quantidade é mantida num patamar “ideal”.

O livro retrata a sociedade imaginada por Huxley, onde “todos pertencem a todos”, num esforço para erradicar o individualismo. Todos são felizes e perfeitos... A Sociedade "perfeita" é mostrada por Huxley através da história de uma jovem típica, pertencente a uma das castas altas, que, em uma crise existencial, conhece uma reserva de selvagens e particularmente um selvagem (a reserva é uma alegoria para o mundo real). As duas personagens representam o antagonismo entre a nova e a velha sociedade, os novos e os velhos padrões. Ela vive em uma sociedade formada por pessoas pré-programadas genética e psicologicamente para desempenhar um papel social e gostar deste, sem questionar ou desejar, nem mais nem menos, simplesmente ser o que lhe foi designado pelo Estado, mantenedor do Bem-estar geral. O selvagem, por outro lado, vive em um mundo cheio dos antigos valores e costumes, dogmas e tradições.

É uma forma de criticar a substituição das pessoas por máquinas, de uma forma diferente: substituindo o lado humano, os sentimentos e emoções, por sensações pré-programadas. Os seres humanos são produzidos em linhas de montagem como os produtos genéricos e condicionados a aceitar uma série de dogmas sociais, são padronizados e, no entanto continuam presos a dogmas, embora estes mudem de uma sociedade para outra, sendo atribuídos de formas diferentes: por um lado, através da educação infantil e, por outro lado, através do condicionamento hipnopédico (em outras palavras, adestramento).

As crianças são criadas em centros de condicionamento do Estado. A figura de pai e mãe é completamente abolida. O lar é descrito como um local doentio, mal cheiroso e palco de intimidades e emoções. Os dominadores substituíram a cultura com campanhas contra o passado, destruição de monumentos e livros e banindo a reprodução sexual. A religião, particularmente o cristianismo, foi transformada em um culto a Henry Ford. Para enfatizar a produção em massa, todas as cruzes foram cortadas para a forma de “T”. Além disso, havia sido inventada uma nova droga chamada soma, com os mesmos efeitos da cocaína e heroína, mas sem efeitos colaterais. O soma garante que as pessoas passem mais tempo alucinando do que pensando e, por causa disso, é distribuído gratuitamente pelo governo.

A grande mensagem de Aldous Huxley: o Homem ainda faz parte da Natureza. Ele não pode anulá-la, pois ela vive dentro dele próprio. Ele ainda pode voltar a ser o que era antes de se "destacar" de seus "irmãos", se é que chegou a ser.


Estudo sobre Aldous Huxley

Prefácio a Admirável Mundo Novo, escrito para a reedição dessa obra pela Editora Globo, São Paulo, 2001.

Olavo de Carvalho


1. Admirável Mundo Novo

Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.

 Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo público, foi com freqüência visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.

 Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visão a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e auto piedade, ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto. Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais. A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxley o soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três séculos de idealismo filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma “coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real.

 Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A “arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção contemplativa ante a realidade do mundo.

 A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios ópticos, filia-o a uma tradição ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz -- luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto remonta à “filosofia iluminativa” de Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmente sohrawardiana.

 Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da média dos romancistas do seu tempo.

 Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em “Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados” atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.

 Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.

 Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial.

 O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o Sr. Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.

 As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real, mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.

 A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo” eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada -- erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em 1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.

 No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo, com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os “selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia, rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley.

 Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita: qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.

 Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Sta. Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.

 Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.

 Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley, malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.

 26/03/01


A ANÁLISE DO LIVRO (Por Guilherme Freire)





O FILME (LEGENDADO)


quinta-feira, 18 de março de 2010

A QUEDA

Título original: La ChuteAutor: Albert Camus
Tradução: Valerie Rumjanek
Editora: Record
Assunto: Romance
Edição: 12ª
Ano: 2002
Páginas: 114

Sinopse: "A queda" narra a história de um advogado francês que num bar de marinheiros em Amsterdam, faz seu exame de consciência a um desconhecido. Após presenciar o suicídio de uma mulher nas águas do Sena, se isola completamente do mundo.


Comentários: Como assinala um dos biógrafos de Camus, A queda “é talvez a mais penetrante, mais pessoal de suas obras de criação, assim como a chave para entender seus anos mais sombrios”. É das desilusões e da solidão de Camus, assim como da sua mágoa de ser julgado e condenado pelos intelectuais, que surgiu o longo monólogo do livro.


O narrador, autodenominado “juiz-penitente”, faz uma grande denúncia da própria natureza humana misturada a um penoso processo de autocrítica.


O homem que fala em A queda se entrega a uma confissão calculada”, escreveu Camus sobre o romance. E pergunta: “Onde começa a confissão e onde começa a acusação?”. É a reação do homem que aceita e assume suas responsabilidades pelos erros da humanidade. Mas que não quer fazê-lo sozinho, que deseja ver cada um de nós fazer o mesmo. “Aquilo que o homem suporta com mais dificuldade é ser julgado.


O ser humano tem uma sede desmesurada de absoluto; quer compreender o mundo, quer reduzi-lo a si mesmo, quer fazê-lo seu, só que entre o mundo e o homem há um grande divórcio. Não se trata de uma exclusão, mas antes de uma presença comum de duas realidades que são mutuamente alheias e ininteligíveis.

Tanto de si como do mundo, o homem só conhece estilhaços, pedaços aqui e acolá que de forma alguma lhe proporcionarão um verdadeiro conhecimento. De nada servirão ao homem as mais perfeitas e acabadas teorias da ciência que perversamente tudo pensam explicar, quando nem de si próprio o homem tem certezas!

O mundo camusiano é o mundo do absurdo. Camus se revolta porque acha o mundo injusto, assim como muitos intelectuais de sua época e hodiernos que se revoltam e acham que o Estado é capaz de resolver a ordem estabelecida por Deus. Camus, os intelectuais e mesmo pessoas comuns não compreendem que existe uma condição humana que é trágica e que pode ser minorada, mas não suprimida.

Resumo da narrativa: Certa noite, atravessando a Pont des Arts, ouviu algo como uma gargalhada. Virou-se. Não viu ninguém. Foi uma iluminação. Naquela mesma ponte, numa outra noite, há muitos anos, Clamence viu uma mulher jogar-se no Sena. Talvez pudesse salvá-la. Não fez nada. Tornou-se culpado. Agora, como por um golpe, reconhece que todos os seus sentimentos nobres sempre foram apenas máscaras do seu egoísmo, da sua covardia – a partir desse momento, virou outro homem. Abandonou a advocacia. Procurou a companhia de receptadores, cáftens e prostitutas. Enfim, retirou-se para Amsterdam, ‘Refugiado num deserto de pedras, de brumas e de águas pútridas, profeta vazio para tempos medíocres, Elias sem Messias... cobrindo de imprecações homens sem lei que não podem suportar nenhuma julgamento.’ Fixou sua residência num obscuro bar no Zeedijk, no bairro do porto, esperando quem pudesse servir-lhe de confessor.

O livro é mesmo essa confissão, feita a nós outros: retrato e espelho ao mesmo tempo, oferecido para que os ouvintes se reconheçam no espelho e se julguem assim como Jean Baptiste Clamence se julgou. (Excerto entre aspas, extraído de “A queda de Camus”. Otto Maria Carpeaux, v. 1, p. 660)

Otto Maria Carpeaux afirma que a confissão de Jean-Baptiste Clamence não é o espelho que reflete o retrato “de tous et de personne”. Reflete apenas a atitude de Albert Camus, penitenciando-se de sua excessiva confiança nas possibilidades morais da condição humana. É a queda do próprio Albert Camus, conclui.

segunda-feira, 8 de março de 2010

JORNADA PELA LIBERDADE

FILME

Título Original: Amazing Grace
Gênero: Biografia / Drama / Histórico
Atores: Ioan Gruffudd (William Wilberforce), Romola Garai (Barbara Spooner), Benedict Cumberbatch (William Pitt), Albert Finney (John Newton), Michael Gambon (Lorde Charles Fox), Rufus Sewell (Thomas Clarkson), Youssou N´Dour (Olaudah Equiano), Ciarán Hinds (Lorde Tarleton), Toby Jones (Duque de Clarence), Nicholas Farrell (Henry Thornton), Sylvestra Le Touzel (Marianne Thomton).
Diretor: Michael Apted
País: Estados Unidos / Reino Unido
Ano: 2006
Duração: 117 min.

Sinopse: Jornada pela Liberdade conta a história de um homem que desafiou o poder dos nobres da Inglaterra para interromper o tráfico de escravos da África e liderar o movimento abolicionista britânico.

A história de William Wilberforce, membro parlamentar do poderoso Império Britânico, é a história de como a perseverança e a fé de um homem mudaram o mundo. O filme mostra a luta épica para criar uma lei com o objetivo de acabar com o tráfico negreiro. Durante esta jornada, Wilberforce encontra oposição intensa dos que acreditavam que a escravidão estava diretamente ligada à estabilidade do império britânico. Em seus amigos, incluindo John Newton, um ex-capitão de navio negreiro que compôs o famoso hino Amazing Grace, encontrou suporte para continuar lutando pela causa.

Comentários: Orador brilhante e eleito para o parlamento inglês com apenas 21 anos de idade, Wilberforce experimenta uma profunda conversão que o leva inclusive a pensar em deixar a política para se dedicar ao ministério religioso. O seu melhor amigo, William Pitt – posteriormente primeiro-ministro da Inglaterra – temeroso de perder o seu aliado mais talentoso, chega a provocá-lo: “Você pretende usar a sua bela voz para louvar o Senhor, ou para mudar o mundo?”. Mas é John Newton, um ex-traficante de escravos – brilhantemente interpretado por Albert Finney – que o convence de que ele estaria fazendo as duas coisas engajando-se na luta política contra a escravidão. O título do filme em inglês deve-se a Newton, que compôs a bela Amazing Grace – talvez a canção cristã mais famosa do mundo – após uma dramática experiência de conversão que o levou a abandonar o tráfico negreiro.

A história de Wilberforce é importante porque desmente o argumento dos ateístas de que o cristianismo sempre foi conivente com a escravidão. O cristianismo tem sido acusado pelo ateísmo – que lança livros aos borbotões com violentos ataques à religião em geral e à fé cristã em particular – não só de antiintelectualismo, mas de ser essencialmente imoral. É um ataque sui generis, e que talvez muitos não estejam preparados para responder. E uma das imoralidades que nos atribuem é a nossa conivência histórica com a escravidão.

Na verdade não há honestidade quando se julga os erros do passado com os parâmetros do presente. É fácil apontar o dedo para os erros cometidos na história, analisando os fatos séculos depois, a bordo de todas as transformações culturais que nos permitem ver coisas de forma diferente que nossos antepassados.

Se no passado havia cegueira quanto à escravatura ela não recaía sobre a comunidade cristã, mas sim sobre toda a humanidade. Vivia-se num ambiente de escravidão e esse era o sistema aceito por todos.


TRAILER


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A CARTUXA DE PARMA

Título original: La Chartreuse de Parme
Autor: Stendhal (Henri-Marie Beyle – 1783-1842)
Tradução: Vidal de Oliveira
Editora: Globo
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 2004
Páginas: 553

Sinopse: O livro (1839) narra as aventuras amorosas vividas pelo protagonista na Itália da era napoleônica. Iniciando-se com a célebre cena em que o herói Fabrício Del Dongo se perde no campo de batalha de Waterloo, sem saber que participava de um momento crucial da história européia. O livro é uma apologia da liberdade de espírito e da leveza, do ímpeto e da energia individuais, que Stendhal identifica na ensolarada Itália, aqui usada como imagem em negativo da Restauração e do naufrágio dos ideais da Revolução Francesa.

Fabrício Del Dongo, de alguma maneira, também ilustra a concepção que Stendhal tinha da vida: a “busca da felicidade”.

Enredo e comentários: A criação de A Cartuxa de Parma foi, em muito, inspirada em leituras de documentos sobre famílias antigas da Itália, como a família Farnese, que Stendhal teve acesso em suas inúmeras passagens pela Itália, como cônsul. O Romance tem como protagonista Fabrício Del Dongo, um jovem aventureiro, de família nobre e de poucas ambições. Assim como Julien Sorel, protagonista de O Vermelho e o Negro, Fabrício é admirador de Napoleão e essa admiração constitui um dos aspectos sócio-históricos apresentados na obra, pois mostra uma Itália que sofre as consequências sociais da restauração da monarquia em territórios que pertenceram anteriormente ao Império Napoleônico, como os territórios do Piemonte, onde se passa o Romance.

Fabrício vive em seu mundo nobre, mas sem as ambições típicas de seu meio, é estuvado, ingênuo, juvenil e desapegado às coisas do dinheiro. Sua ambição é lutar e conhecer o Imperador Napoleão. Essa admiração dá início às suas peripécias, pois ele segue escondido de seu pai, monarquista, para lutar em Waterloo. A partir daí ele se vê em apuros, contando apenas com a ajuda de sua tia, Gina Pietranera. A afeição entre os dois vai crescendo e se confunde muitas vezes com um amor carnal e incestuoso. Essa dualidade entre amor fraternal e carnal constitui-se como um aspecto dramático, que seguirá as duas persnoagens até o desfecho da obra. No entanto, desvincilhado da influência de sua tia, Fabrício percebe que não a amava como mulher. Preso, coagido e vítima de inúmeros processos decorrentes das brigas entre partidos políticos e traições de côrte, Fabrício se apaixona por Clélia Conti, filha dum general do partido de oposição do amante de sua tia, Conde Mosca. Essa paixão deflagra o período mais belo da obra, em que ambos nutrem um amor impossível de se realizar, já que Fabrício, além de se encontrar preso, possui parentesco com inimigos políticos do pai da jovem. Livre por uma fuga arquitetada por sua tia, ele se vê infeliz, já que exilado jamais poderia rever Clélia.

O drama do amor impossível acaba constituindo o fato que doravante daria fim à saúde e à vida de Fabrício. Sua morte é seguida da de Clélia e Gina.

Sobre o autor:
Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, França, 23 de janeiro de 1783 - Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um primo longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO

Título original: Das Glasperlenspiel
Autor: Hermann Hesse
Tradução: Lavinia Abranches Viotti e Flávio Vieira de Souza
Editora: Record
Assunto: Romance
Edição: 7ª
Ano: 2003
Páginas: 592

Sinopse: Último romance escrito por Hermann Hesse, publicado em 1943, 'O Jogo das Contas de Vidro' descreve uma comunidade mítica, no ano 2200, onde as regras, a linguagem figurada e a gramática do jogo representam uma espécie de linguagem oculta, altamente evoluída, de que participam várias ciências e artes, especialmente a Matemática e a Música (ou seja, a musicologia). Essa linguagem tem a possibilidade de expor o conteúdo e os resultados de quase todas as ciências e de relacioná-los entre si.

O livro propriamente dito divide-se em três partes. A primeira é um curto estudo histórico sobre o jogo que dá nome à obra, também conhecido por Jogo de Avelórios, uma atividade lúdica e intelectual fictícia, à qual muitos sábios e acadêmicos da também fictícia comunidade de Castália se dedicam profissionalmente em um futuro distante (não há menção direta à datas na narrativa, mas a contra-capa da edição diz que a ação principal se passa no século XXIII; isso não faz do livro uma história de ficção científica, no entanto). O próprio tema do jogo também é recorrente na maior parte do livro, e em geral ele parece servir de metáfora para a idéia do saber acadêmico e da erudição vazias, que são um fim em si mesmos e pouco ou nada devolvem à sociedade pelo tempo e recursos que consomem; eu, no entanto, acabei por fazer uma relação um tanto diferente a seu respeito. Pela nata profissional intelectualizada que o pratica, pela trabalhosa forma de preparo das partidas, com extensas pesquisas de referências e temas acadêmicos, e pela sua natureza pretensamente artística, me ocorreu em algum momento da leitura que o tal Jogo de Avelórios tem muito comum com a visão intelectulizada que alguns jogadores parecem ter do RPG; e, assim, muito dos avisos e decadências por que o jogo passa no decorrer da sua história, com o crescente afastamento do povo comum e a sua restrição a uma comunidade cada vez mais isolada e distante de jogadores, me pareceram ser bastante relevantes também para o RPG, se esse tipo de visão se tornar predominante. Mas isso já é outra história.

A segunda parte do livro, a mais extensa e que constitui o corpo principal da narrativa, trata de uma biografia fictícia de José Servo, uma virtuose no jogo desde a infância, que em dado momento da sua vida recebe o cargo de Magister Ludi, ou Mestre do Jogo de Avelórios, o mais alto título dado a um jogador, que tem por função coordenar e regular a prática do jogo. Os detalhes da sua vida são destrinchados desde a infãncia, com a entrada no universo acadêmico, passando pela sua descoberta e envolvimento com o jogo, e também pelo conflitos e discussões com duas figuras em especial - um colega de fora do universo acadêmico e um historiador beneditino que conhece durante um seminário que ministra sobre o jogo em uma abadia. A estes confrontos, entre outros tantos, é dado bastante importância na narrativa, pois é a partir deles Servo que se faz os principais questionamentos e reflexões a respeito do papel que ele e toda a comunidade acadêmica onde vive desempenha na sua sociedade, e sobre a função do saber e do cultivo do espírito, o que gradualmente vai se tornando no mote principal da história; por isso tudo, é certamente um livro bastante interessante e reflexivo para qualquer um com algum tipo de aspiração dentro deste universo da Academia, uma vez que não é difícil cair neste tipo de questionamento e dúvida. Eu sei que eu já passei bastante por isso, e ainda me pego muitos vezes pensando e refletindo sobre esse tipo de questão.

A segunda parte, enfim, acaba com a morte abrupta e um tanto inesperada do protagonista, o que também não é nenhum spoiler, já que é um fim anunciado desde bastante cedo na narrativa, além de esperado da maioria das biografias. Quem espera o fim da leitura, no entanto, se deparará então com aquela que é, talvez, a melhor e mais envolvente parte do livro, na centena de páginas final: as obras póstumas de José Servo. Constituem as tais obras alguns poemas atribuídos a ele, e, principalmente, três contos que fecham definitivamente a narrativa. A partir de três personagens bastante diversos - um xamã primitivo, um ermitão cristão e um príncipe indiano -, ele explora de forma mais sucinta e direta os temas que haviam composto o livro até então, com habilidade e clareza bastante nítidos e evidentes, e um resultado bastante cativante e espirituoso.

Resumo da narrativa: Joseph Knecht (José Servo) é um estudante bastante dotado que foi «descoberto» e recrutado pelo Mestre da Música da Ordem de Castália, uma sociedade quase monástica onde se cultiva o estudo de todas as ciências e artes, sem lugar para a história e temas relacionados com a sociedade, sendo uma referência da nação e servidor de professores nas disciplinas mais puras e sublimes, tais como a matemática e a música. A jóia da coroa de Castália é o Jogo das Contas de Vidro, que consiste numa arte de montagem de divagações racionais a partir de qualquer tipo de conhecimento puro, misturando quaisquer disciplinas deste. Knecht é um homem que, devido às suas capacidades, mas, sobretudo, devido à sua abertura de espírito, rapidamente ascende ao lugar de Magister Ludi, supremo Mestre do Jogo das Contas de Vidro. O seu percurso de vida é deveras singular, permitindo que Knecht se confronte e complemente os seus conhecimentos e crescente sabedoria com vários sábios representantes de diferentes apologias face à vida.

Nos seus primeiros tempos em Castália é nomeado para ser seu representante nas discussões com Designori, pessoa do mundo secular que defende a vida do homem fora de elitismos de sabedoria tais como são vividos em Castália, com constantes críticas à mesma, firmemente, mas amigavelmente rebatidas por Knecht. Após a sua formação, Knecht parte em viagem pelo reino de Castália (cuja Ordem tem instalações em vários sítios da nação), aprofundando os seus conhecimentos, tomando contacto com um sábio ostracizado por Castália pelo seu excesso de misticimo, a quem chamam «O Irmão Mais Velho», aprendendo com ele novas perspectivas sobre o conhecimento e a sabedoria. Pouco depois, é designado para passar alguns anos num Mosteiro, para uma aproximação maior de Castália à Igreja, onde vai encontrar Frei Jakob, outro grande sábio, desta feita na vertente histórica/religiosa, com quem aprende muito e trava discussões bastante interessantes. Fruto de todas estas experiências, Knecht cria uma aura de calma, serena e ampla sabedoria que o torna no candidato preferencial ao lugar de Mestre do Jogo das Contas de Vidro, quando este falece, pelo que é eleito para esse lugar.

Mas não pára por aqui a fantástica aprendizagem de Knecht. No declínio da velhice do Mestre da Música (o seu tutor na juventude) constata nele a silenciosa sabedoria de quem tudo compreendeu. E, com Tegularius, seu colega em Castália e maior admirador, as desvantagens de uma postura rígida face à necessidade de flexibilidade quer em relação às instituições, quer em relação a conhecimentos opostos aos seus (de Castália). Interiormente, é cada vez maior a constatação da existência dos dois pólos, por Knecht: o aprofundamento ou a diversidade, representando esta última o eterno recomeço e a verdadeira apetência do ser humano na busca da sabedoria. O reencontro com Designori dá-se muitos anos depois dos seus confrontos de juventude, ambos desiludidos com a sua vida atual, mas que desperta em Knecht o rumo a seguir nos anos seguintes.

Todo este percurso, conforme previsto desde o início do livro, vai ter um final inevitável: embriagado por um constante aumento de sabedoria, Castália já não pode satisfazer Knecht, que, após uma brilhante troca de cartas e discussão com o presidente Mestre Alexander, vai sair de Castália e voltar à vida secular, seguindo a sua intuição que, até aí, lhe tinha sido sempre preciosa na sua busca pela sabedoria, mas que, depois, lhe vai proporcionar um final inglório embora comovente e revelador.

Comentários: Por tudo aquilo que se referiu acima, pode-se considerar este romance como um romance de idéias, apesar do forte enfoque na personalidade de Joseph Knecht, símbolo irreal de um homem completamente aberto a todo o tipo de conhecimentos e sabedoria, que tudo absorve e potencia na sua visão sobre a vida, cumprindo sem limites o potencial maximizado do ser humano na sua busca da compreensão do mundo.

É importante destacar, no entanto, que talvez O Jogo das Contas de Vidro não seja uma obra fácil de ser lida por qualquer um. É um romance indiscutivelmente erudito, em parte por ser recheado de referências eruditas e falar de um personagem erudito que se desenvolve em um universo de erudição, mas também por tratar de temas e questionamentos que dizem respeito principalmente ao mundo dos eruditos e acadêmicos. Por mais cativante e envolvente que seja a narrativa, não consigo deixar imaginar boa parte dos leitores em potencial se sentindo entediados e fatigados pelos extensos devaneios e diálogos a respeito da filosofia e natureza da História ou da função do saber acadêmico, por exemplo. De qualquer forma, para alguém que se identifique nestas questões, e saiba se conectar ao enredo e personagens do livro, é uma leitura facilmente encantadora, e talvez mesmo transformadora.

Descrito como sublime por Thomas Mann, este excelente romance valeu a Hermann Hesse a atribuição do Prêmio Nobel da Literatura em 1946.

Excerto:

Nenhum ser nos foi concedido. Correnteza apenas
Somos, fluindo de forma em forma docilmente:
Movidos pela sede do ser atravessamos
O dia, a noite, a gruta e a catedral

Assim sem descanso as enchemos uma a uma
E nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta,
Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante,
A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão

Não sabemos o que de nós quer Deus
Que, barro em suas mãos, conosco brinca,
Barro mudo e moldável que não ri nem chora,
Barro amassado que nunca coze


Ser enfim como a pedra sólido! Durar uma vez!
Eternamente vivo é este o nosso anseio
Que medroso arrepio permanece apesar de eterno
E nunca será o repouso no caminho


Conclusão: O «Jogo das Contas de Vidro» transmite uma mensagem de esperança e uma visão libertadora da materialidade e da quantidade como critérios fundamentais da Vida e do Conhecimento.


Hermann Hesse, (1877-1962)