DIÁRIO
DE UM PÁROCO DE ALDEIA
Título
original: Journal d´un curé de campagne
Autor: Georges Bernanos (1888-1948)
Tradução: Thereza Christina Stummer
Editora:
Paulus
Assunto: Romance. Subgênero: romance confessional (Literatura
estrangeira).
Edição: 2ª
Ano: 2000
Páginas: 285
Sinopse: Escrito em 1934 e publicado em 1936, este romance em
tom confessional traça o doloroso itinerário espiritual de um jovem sacerdote,
pobre e doente, enviado para uma terriola habitada por uma sociedade
pragmática, descrente de fé e de cristandade. Neste cenário começa a luta
contra a penetração do mal com armas como a humildade, o sofrimento e a
solidão.
A história descreve a vida
de um jovem padre católico na paróquia de Ambricourt, no norte da França, quase
divisa com a Bélgica. A vida do padre é marcada por um câncer no estômago e
pela falta de fé da pequena população local.
Comentários:
Uma grande obra é aquela que agrega conhecimentos sobre a realidade e aumento
de consciência da condição humana. Diário
de um pároco de aldeia faz isso com magistral propriedade. Mais que isso,
ultrapassa esses propósitos e nos dá uma verdadeira demonstração de fé,
cristianismo e santidade e uma aula verdadeiramente filosófica. É uma história
comovente, muito bonita e maravilhosa, contada com grande maestria literária.
Entretanto, não é um livro fácil de ler porque é um livro com sentido
filosófico onde a personagem central está argumentando em torno de idéias e o
leitor moderno não está mais acostumado com isso. (JMN)
Enredo e análise da obra:
O nosso herói é um jovem padre, cujo nome nós
não sabemos e que registra em seu diário a vida angustiante que leva numa
paróquia de interior. A obra denuncia como o Cristianismo está sendo
transformado em rotina no mundo moderno, simbolizada pelo padre na aldeia de
Ambricourt. No fundo é a morte simbólica do mundo.
O livro começa com o padre descrevendo
como é a vida na sua paróquia. O tempo todo se tem a impressão de que o padre
está lutando contra um caso perdido, como se àquele lugar não pudesse ser recuperado.
“Minha paróquia é uma paróquia como todas as outras. Todas as
paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Eu dizia ontem ao
pároco de Norenfontes: o bem e o mal devem ficar em equilíbrio nelas, só que o
centro da gravidade está lá embaixo, bem lá embaixo. Ou se preferir, os dois se
sobrepõem nelas sem se misturar como dois líquidos de densidades diferentes. O
padre riu na minha cara. Ele é um bom sacerdote, muito benevolente, muito
paternal, e que no arcebispado passa até por incréu, um pouco perigoso. Suas
tiradas fazem a alegria das casas paroquiais, e ele as reforça com um olhar que
ele gostaria que fosse vivo, e que acho tão gasto e cansado que sinto vontade
de chorar.”
Minha paróquia é devorada pelo tédio, essa é a palavra certa. Como
todas as outras paróquias. O tédio a devora diante de nossos olhos e não há
nada que possamos fazer. Talvez um dia destes sejamos contagiados, e
descubramos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.”
Há algo de errado na sociedade e que acaba
influindo na vida do pároco. E como o padre é jovem, os problemas são maiores,
as dúvidas são maiores, e os sonhos são grandes. O problema está no grande
abismo que separa o pároco entre o que ele sonhou ser e o que a aldeia espera
que ele seja, e o que ele consegue ser, na prática.
Ele é um pároco numa cidade de gente descrente, gente
cínica, gente ferozmente pragmática. Ele não tem nenhum colega de profissão que
o ajude de verdade, porque todos eles estão apenas tentando transformá-lo em um
ser tão cínico quanto eles. Em última análise, ficou sozinho e completamente
solitário nessa vida.
“Eu me dizia então que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente,
é preciso refletir um pouco para se dar conta disso, não é uma coisa que se
perceba imediatamente. É uma espécie de poeira. A pessoa vai e vem, sem a ver,
respira essa poeira, come e bebe essa poeira, e ela é tão fina que nem faz
barulho quando é mordida. Mas basta parar um momento e ela torna a cobrir o
rosto e as mãos da pessoa. É preciso se agitar sem parar a fim de sacudir essa
poeira de cinzas. Por isso mesmo, o mundo se agita muito.”
Este tédio que o padre descreve, é algo
que não se percebe que acontece, uma espécie de poço invisível, um estado de
coisas profundo e estabelecido, que não se consegue mexer. É como a poeira com
a qual as pessoas se acostumam e com a qual não conseguem lidar. Este é mais ou
menos o clima que se estabeleceu ali na paróquia do nosso herói.
O padre acha que a sua própria vida não
tem mistério algum e o diário que ele se utiliza é um exercício para anotar as
coisas que acontecem, com sinceridade que ele tem com ele mesmo.
A primeira condição para que qualquer
pessoa possa ter qualquer pensamento filosófico, é ter a capacidade de contar a
sua própria vida para si mesmo. Portanto, a primeira condição para ser um
filósofo, é ter a capacidade de contar a sua própria vida, com sinceridade.
O padre de Torcy é um alter ego, uma
espécie de duplo do pároco de Ambricourt. Se o pároco de Ambricourt é um pouco
ingênuo, jovem demais, um pouco sonhador, um pouco idealista, o padre de Torcy,
ao contrário, é um sujeito experiente, pragmático, realista, com uma idéia
muito boa sobre o que está pensando, muita segurança. Portanto, esses dois
padres farão um contraponto o tempo todo.
Aqui o autor nos aproxima essas duas
personagens para que possamos comparar uma com a outra e percebermos, com mais
clareza, em que o padre de Ambricourt se parece diferente.
O refúgio
Nem mesmo Deus, por incrível que pareça no
diário de um padre, aparece muito. Mas lá está o pastor-mor desse pobre
pastor-menor e muito perdido: o pároco de Torcy. Como responsável dos párocos
da região, é ele quem ainda consegue inflamar o coração do pobre pároco de
aldeia, que consegue sanar, mesmo que epidermicamente, as profundas chagas de
uma vida desvirtuada, não em pecado, mas em sentido.
- Agora, os seminários nos mandam coroinhas, pés-rapados que
pensam que trabalham mais do que ninguém porque nunca conseguem nada. (Pároco
de Torcy)
– Uma paróquia é suja,
obrigatoriamente. Uma comunidade cristã é mais suja ainda. Esperem o dia do
Grande Julgamento, vão ver o que os anjos vão ter de retirar dos mais santos
mosteiros, às pás cheias – que esvaziamento! (Pároco de Torcy)
Para tentar abafar um pouco seu
sofrimento, o pároco refugia-se no vinho, que é uma das poucas coisas, segundo
ele, que seu frágil corpo ainda suporta digerir. Pão e vinho, às vezes com um
pouco de açúcar. E, raramente, algumas maças. Mas de refrigério para o corpo, o
vinho – que era, na verdade, pura tinta, segundo o pároco de Torcy, que um dia
surpreendeu o pároco em plena beberagem – acaba se tornando o veneno para a
completa destruição do padre.
- A
questão não é de saber quanto ele [o homem] vale, mas sim, quem o comanda.
(Pároco de Torcy)
A luta
Mas a luta é grande no coração do pároco.
Sua vida entra em choque com ex-colegas e amigos que largaram a batina e foram
tomar outros rumos.
“Você
deve ter compreendido há muito tempo que, como dizem, deixei a batina. Meu
coração, no entanto, não mudou. Apenas se abriu para uma concepção mais humana,
e, por conseguinte mais generosa da vida. Ganho minha vida, eis uma grande
frase, uma grande coisa. Ganhar a vida! O hábito, adquirido desde o seminário,
de receber dos nossos superiores, como uma esmola, o pão de cada dia, ou a
pratada de feijão, faz de nós, até a morte, uns meninos de escola, umas
crianças. Eu era, como provavelmente você ainda é: absolutamente ignorante de
meu valor social.” (carta de Louis Dufrety, amigo padre que largou a batina, ao
pároco)
A vida do pároco da aldeia também vai de
encontro aos desejos libidinosos das aluninhas da catequese. Esforça-se por não
explodir com as secretárias que teimam em ajeitar-lhe a vida e a paróquia
diferentemente do que deseja. Quase entra em disputa com os ricos do lugarejo,
ele, que desde pequeno só conheceu a pobreza.
- A
Igreja foi encarregada por Deus de manter no mundo o espírito da infância, a
ingenuidade, este frescor. O paganismo não era inimigo da natureza, mas o
cristianismo é o único que a engrandece, a exalta, a coloca na medida do homem,
do sonho do homem. Gostaria de agarrar um desses sabichões que me tratam de
obscurantista, eu diria a ele: “Não é minha culpa se uso uma roupa de agente
funerário. Afinal, o papa se veste de branco, e os cardeais, de vermelho”. Eu
teria o direito de passear vestido como a rainha de Sabá, porque trago a
alegria. Eu a daria de graça a você, se me pedisse. (Pároco de Torcy)
E lá pelas tantas, resolve questionar um
sentido na vida de uma das moças da paróquia, justamente a filha do conde. E
conversa com a mãe. Nesse diálogo, vê-se como pode ser profundo o sofrimento de
alguém, mesmo que a aparência esconda até o limite. Duas vidas bloqueadas pelo
sofrimento, a da mãe e a do pároco, digladiam-se tentando encontrar um sentido,
uma razão para continuar lutando.
- Eu o
impeço de calcular a precessão dos equinócios, ou de desintegrar os átomos? Mas
de que lhe adiantaria fabricar a vida, se você perdeu o sentido da vida? Só lhe
restaria estourar os miolos diante de suas retortas. (Pároco de Torcy)
A doença
Desse diálogo revelador, a história toma
outro rumo bastante diferente do que o pároco previa. E a dor e o sofrimento
por não ver um sentido em toda uma vida acabam refletindo na saúde do padre.
Como um câncer de estômago.
Escapar!
Fugir! Encontrar o céu do inverno, tão puro, onde esta manhã eu vira surgir,
pela porta do vagão, a aurora. O doutor Laville deve ter-se enganado. De
repente, tudo se esclareceu dentro de mim. Antes que tivesse terminado a sua
frase, eu já não passava de um morto entre os vivos.
Câncer…
Câncer de estômago… Foi principalmente a palavra que me chocou. Esperava outra.
Esperava a palavra tuberculose.
Estava
só, inexprimivelmente só, diante de minha morte, e essa morte não passava da
privação do ser – nada mais. O mundo visível parecia estar se esvaindo de mim,
com velocidade aterradora, e numa desordem de imagens, não fúnebres, mas, ao
contrário, muito luminosas, ofuscantes. “Será possível? Tê-lo-ia amado tanto?”,
dizia a mim mesmo. Aquelas manhãs, aquelas tardes, aquelas estradas. Aquelas
estradas mutantes, misteriosas, estradas repletas de passos de homens. Teria eu
amado tanto as estradas, nossas estradas, as estradas do mundo?
Por que
me inquietar? Por que prever? Se tiver medo, direi: tenho medo, sem ficar
envergonhado por isso. Que o primeiro olhar do Senhor, quando sua sagrada face
aparecer diante de mim, seja, portanto um olhar que tranqüilize!
A partir desse momento, tudo rui. Não
sobra nada, nem o sacerdócio, nem a paróquia, nada. Nada interessa. Se antes
nada tinha sentido, agora o que poderia restar?
Há
certamente algo de doentio no apego que tenho por estas folhas. Elas foram para
mim um grande auxílio na hora da provação, e hoje me trazem um testemunho muito
precioso, por demais humilhantes para que sinta prazer com ele, e o bastante
exato para fixar meu pensamento. Ela me libertaram do sonho. Não é pouca coisa.
A morte
Assim, vencido pela luta da vida,
gastando-se numa incompreensão da qual não encontra saída, o pároco acaba se
desfazendo de tudo aquilo – pouco, bastante pouco – que havia construído como
homem e como padre. E é assim que ele encontra a redenção.
Odiar a
si mesmo é mais fácil do que se pensa. A graça está em esquecer. Mas se
todo orgulho estivesse morto em nós, a graça das graças seria amar-se
humildemente a si mesmo, como qualquer um dos membros sofridos de Jesus Cristo.
Alguns
instantes mais tarde, sua mão pousou sobre a minha, enquanto o seu olhar me
fazia claramente sinal para que aproximasse meu ouvido de sua boca. Pronunciou
então, distintamente, embora com extrema lentidão, estas palavras, que estou
certo de repetir com exatidão: “O que importa? Tudo é graça”.
Creio que
morreu logo em seguida. (carta de Louis Dufrety ao pároco de Torcy)
O autor:
Georges Bernanos foi um escritor e jornalista francês. Bernanos participou intensamente da vida política francesa: foi soldado de trincheira na Primeira Guerra Mundial e repórter na Guerra Civil Espanhola.
Georges Bernanos foi um escritor e jornalista francês. Bernanos participou intensamente da vida política francesa: foi soldado de trincheira na Primeira Guerra Mundial e repórter na Guerra Civil Espanhola.
― Cronologia ―
1888
|
Georges Bernanos nasce no dia 20 de fevereiro,
|
1906
|
Entra na faculdade de direito em
Paris e no Instituto Católico. Envolve-se na crise política de Portugal, ao
lado dos defensores da monarquia. Preso, escreve numa cela seu primeiro
artigo publicado. Associa-se à Ação Francesa [Action Française] de Charles Maurras.
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1913
|
Dirige em Rouen o semanário
monarquista A Vanguarda da Normandia.
Publica várias novelas.
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1914
|
Participa da I Guerra Mundial como
voluntário. Obtém a patente de cabo.
|
1917
|
Casa-se no dia 14 de maio com
Jeanne Talbert d´Árc, descendente de um irmão de Joana d´Arc. Terão seis
filhos.
Rompe com a Ação Francesa por
discórdias políticas.
Assume o cargo de inspetor da
companhia de seguros La Nationale.
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1922
|
É PUBLICADA NOVELA “Madame Dargent” na Revista Semanal.
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1925
|
Bernanos completa a redação do
romance “Sob o Sol de Satã”. O livro é publicado com grande sucesso, pela
Pion no ano seguinte.
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1926
|
A Action Française é excomungada pelo Papa Pio XI.
Bernanos escreve “A Impostura”.
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1927
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Recusa a Legião de Honra.
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1929
|
Publica “A Alegria”, seu terceiro romance.
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1930
|
Termina “O Grande Medo dos Bem Pensantes”.
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1931
|
Muda-se para
Começa polêmica pública com a Ação
Francesa.
|
1933
|
Bernanos sofre acidente de
motocicleta que o deixa invalido. Muda-se para as ilhas Baleares para reduzir
seu custo de vida.
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1934
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Em Maiorca escreve “Um Crime”, “Diário de um Pároco de Aldeia”, “A Nova História de Mouchette” e “Os Grandes Cemitérios sob a Lua”.
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1937
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Volta à França, mas parte quase
imediatamente para o Paraguai e para o Brasil: “Fui embora quase imediatamente do meu país. Já não era possível um
homem livre escrever ou até mesmo apenas respirar ali”.
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1938
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Recusa novamente a Legião de Honra.
Escreve “Nós Franceses” e “Escândalo
de Verdade”.
Mora numa fazenda em Pirapora-MG,
no interior do Brasil.
|
1943
|
Publica “M. Ouine”, uma personificação do mal.
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1945
|
Volta à França chamado por De
Gaulle que foi seu colega de classe na escola.
Recusa todos os cargos que lhe são
oferecidos.
|
1946
|
Recusa novamente a Legião de Honra.
|
1947
|
Escreve “Diálogos das Carmelitas”. Sua doença hepática se agrava e é
levado para Paris às pressas.
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1948
|
Georges Bernanos morre no dia 5 de julho no Hospital Americano de
Neuliy.
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