segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O CAPOTE

Título original:
Autor: Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852)
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
Assunto: Novela
Edição:
Ano: 2010
Páginas: 224


Sinopse: Escrita em 1842, é considerada a obra prima da literatura russa. É a história de um pobre funcionário público que, a grandes custos, consegue comprar um novo capote e é roubado no mesmo dia em que o inaugura. Segue-se então, uma via-crúcis pela burocracia russa. Ao invés do capote, ele consegue apenas uma grande bronca de um “alto funcionário”, interessado em impressionar um amigo. Isso, unido a uma gripe que ele contrai por estar sem capote, e, portanto, desprotegido do terrível frio de São Petersburgo, leva-o à morte. Seu fantasma então passa a puxar o capote de todas as pessoas que se aventuram a sair à noite. É um conto que fala muito sobre os fatores sociais da Rússia do século XIX, satirizando todo aquele sistema.

Comentários de Arlete Cavalieri: A obra de Nikolai Gogol constitui não apenas um marco na literatura russa do século XIX, mas uma espécie de matriz para seus rumos futuros. O aspecto inovador no plano da linguagem, estilo e gêneros narrativos, a construção de enredos e de personagens inusitados, o trágico e o cômico que se fundem a elementos de terror e humor, a análise satírica da sociedade de seu tempo, conferem aos textos gogolianos uma vibração particular, rica de nuances, que continua a desafiar o leitor contemporâneo.


Posfácio de Paulo Bezerra: “O Capote” (1842) é a obra mais famosa de Gogol e uma das narrativas breves mais conhecidas de toda a literatura universal. Haviam contado a Gogol a anedota de um pequeno funcionário que morre após perder, no primeiro dia de caça, a espingarda que adquirira após anos de sacrifício. O autor toma essa história como tema e a transforma na história de Akáki Akákievitch.


A construção de “O Capote” incorpora um procedimento muito semelhante das imagens das personagens mitológicas. Depois de introduzir a personagem, que apresenta como um ser indefinido (“um funcionário”) acrescenta-lhe elementos quase desprovidos de relevância (“Não se pode dizer que esse funcionário fosse lá essas coisas”), desenhar-lhes as configurações físicas que muito o assemelha a uma máscara mortuária, e introduzir a categoria funcional como um atributo congênito da personagem, o narrador entre no tema efetivamente da narrativa: o nome. O nome Akáki representa a tradução da essência da personagem. Sua repetição em cadeia – Akáki-aká-aká-kiaká-kiakákiaká – se constitui num exercício de gagueira, a exemplo do que acontece com a fala da própria personagem, que usa uma linguagem quase desprovida de articulação, como se o homem ainda não tivesse criado uma linguagem estruturada.


O nome Akáki personifica uma impossibilidade de articulação do discurso, uma impossibilidade de comunicação, o que não se dá por opção dos pais e padrinhos, mas por força de uma fatalidade mítica: “essa é a sina dele. Já que é assim, o melhor é que ele tenha o mesmo nome do pai. O pai se chamava Akáki, então que o filho também se chame “Akáki” – conclui a mãe. Completa-se esse quadro de fatalidade com a reação do menino, que, ao receber o nome de batismo, chora e faz careta “como se pressentisse que viria a ser conselheiro titular”, um doa cargos mais baixos da burocracia russa. Assim, ao azar do nome junta-se o azar de uma profissão que constitui o alvo de toda sorte de zombarias por parte dos que tomam por Cristo aqueles que não reagem. Como se não bastasse o nome, acrescenta-se-lhe ainda o sobrenome Bachmátchkin (derivado de bachmák, isto é, sapato, algo para ser pisado), e temos a imagem perfeita do eterno ofendido. Portanto, a fatalidade que mais tarde acometerá a personagem obedece a um determinismo de tipo mítico, pois, como afirma o narrador da história, “tudo aconteceu por absoluta necessidade e outro nome seria inteiramente impossível”.


Assim, vemos Akáki Akákievitch arrastando em sua gagueira a condição de humilhado e ofendido, totalmente incapaz de esboçar qualquer reação, tão identificado com o nome e a profissão que seus colegas de repartição chegam a imaginá-lo nascido já conselheiro titular, de uniforme e calvo. Sua única existência se mede pelas folhas que copia. Corre a pena sobre o papel em branco com o mesmo carinho e a mesma habilidade com que o homem apaixonado usa a magia da mão carinhosa para compor páginas inumeráveis de poesia sobre o corpo macio da mulher. Sua relação com o trabalho chega a ser erótica, pois, na sua existência carente, as folhas saciadas por sua letra lhe preenchem plenamente a carência amorosa recalcada. Não tendo oportunidade nem necessidade de companhia feminina, consegue substituí-la por algumas letras favoritas, com as quais sente um prazer semelhante ao que um homem sentiria com seu tipo preferido de mulher.


Seu trabalho é de tal forma alienante que acaba por coisificá-lo; afundado no ramerrão da cópia, anula-se para qualquer outro tipo de atividade, e, quando um diretor quer recompensá-lo dando-lhe um trabalho mais interessante, embora de extrema simplicidade, cobre-se de suor e pede que lhe dêem algo para copiar. Está consumada a coisificação, transformado o amante na coisa amada, Akáki Akákievitch não nascera para escrever nada de si, nascera para copiar e acabara transformando-se em sombra das páginas que copiava.


Akáki Akákievitch leva uma existência de extrema pobreza, que é proporcional à sua indigência lingüística. Por sua vez, essa indigência de linguagem é proporcional à ausência de consciência; não tendo consciência do seu estado de humilhado e por não ter consciência não tem linguagem porque nada tem a expressar –, que está fadado à condição de homem socialmente mudo, que, não tendo como justificar a existência nem direito a nenhuma pretensão, nada pode suscitar a não ser compaixão.


Akáki Akákievitch tenta valer-se da linguagem apenas em dois momentos de sua vida: quando procura combinar com Pietróvitch a confecção do capote, e, após o roubo deste, quando tenta levar um figurão a interceder junto ao chefe de polícia para reaver o capote. Trata-se de dois momentos realmente cruciais em sua vida: a aquisição do capote, que o faz até falar, animar-se, rir diante de uma vitrine, observar um rabo de saia, enfim, comunicar-se com o mundo exterior e assim experimentar a sensação fugaz de um laivo de vida; e a perda do capote, que se traduz no fechamento do curto-circuito comunicativo de sua vida para terminar em um total isolamento. A impossibilidade de articular o discurso implica a impossibilidade de comunicar-se, de socializar-se, o que acarreta fatalmente o silêncio absoluto e a morte.

Comentários do editor do blog: Aristóteles, ao fazer a análise do teatro trágico grego em seu livro “A Poética”, define que as personagens teatrais têm uma hierarquia de poderes. Northrop Frye, a partir desta obra de Aristóteles, sistematizou essa hierarquia das personagens em seu livro “Anatomia da Crítica”. Essas personagens são:

1. Divino
2. Mítico
3. Imitativo alto
4. Imitativo baixo e
5. Irônico inferior.

A personagem classificada como irônico inferior é caracterizada como aquele indivíduo que tem baixo poder de reação frente as circunstâncias ou é um incapaz ou é uma vítima das circunstâncias. De todas as personagens sistematizadas por Northrop Frye, é a mais fraca. Está abaixo da capacidade dos outros. Portanto, é irônica porque ou é deficiente, ou porque é muito pobre, ou porque é prisioneiro de alguém, ou porque é criança. Para as crianças todas as coisas da vida normal são absolutamente terríveis, assustadoras ao extremo, porque aquilo que parece a nós, adultos normais, uma besteira, para as crianças aparenta o maior dos terrores. Aquilo que nós chamamos de educação, é tirar a criança desse terror, é mostrar e ela como é que uma pessoa normal e outros tipos de personagens se comportariam naquela situação.


Assim, podemos classificar Akákis Akákievitch como irônico inferior porque ele é muito pobre, portanto, enquadra-se na classificação. (A. Oliynik)

Sobre o autor: Nikolai Vassílievitch Gógol nasce em 1809, na província de Poltava, atual Ucrânia. Em 1829 muda-se para São Petersburgo e logo publica Serões numa granja perto de Dikanka, reunião de contos inspirados no folclore de sua terra natal. Em 1835 publica mais duas coletâneas: Arabescos e Mírgorod, nesta última incluída a novela Tarás Bulba. No ano seguinte estréia O inspetor geral, sua peça teatral de maior sucesso. Em 1842, após viajar pela Europa, publica a primeira parte do romance Almas mortas. Nesse mesmo ano publica a novela O capote, que exerceria enorme influência sobre diversos escritores russos. Após um período de graves crises existenciais, destrói o manuscrito da segunda parte de Almas mortas, adoece gravemente e, sofrendo constantes delírios, falece em março de 1852.

Sobre o tradutor: Paulo Bezerra estudou língua e literatura russa na Universidade Lomonóssov, em Moscou, e foi professor de teoria da literatura na UERJ e de língua e literatura russa na USP. Livre-docente em Letras, leciona atualmente na Universidade Federal Fluminense. Já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras nos campos da filosofia, psicologia, teoria literária e ficção, destacando-se suas premiadas traduções de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski.

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