Autor: Thomas Mann (1875-1955)
Tradução: Kristina Michahelles
Editora: Zahar
Assunto: Ensaios
Edição: 1ª
Ano: 2011
Páginas: 208
Sinopse: Thomas Mann tem uma vasta e relevante produção não
ficcional, pouco conhecida e/ou publicada no Brasil. Para divulgá-la, a Zahar
está lançando a série Thomas Mann - Escritos & Ensaios, com volumes
organizados especialmente para o público brasileiro. Este primeiro volume, 'O
escritor e sua missão', reúne 12 ensaios a respeito da obra (e muitas
vezes também a vida) de expoentes como Tolstói, Goethe, Dostoiévski, Hermann
Hesse, Shaw, Heinrich Heine, Ibsen, Zola e Tchekhov. São textos escritos por
Mann em contextos variados: homenagens em datas comemorativas de Goethe e
Tolstói, necrológio para George Bernard Shaw e Hugo von Hofmannsthal, prefácio
a uma edição de Dostoiévski, resposta a uma pesquisa de um jornal no caso de
Ibsen... E versam sobre temas não menos diversos, tais como os pontos de
aproximação entre as obras de Ibsen e Wagner, papel de Goethe como
representante da era burguesa, a relação entre Dostoiévski, sua doença e sua
produção literária. Eruditos e instigantes, os ensaios oferecem uma luz
original não apenas sobre outros autores, mas também sobre o próprio Mann, pois
dialogam com sua produção ficcional, refletindo os interesses, preocupações e
desafios que o estimularam ao longo de sua trajetória.
Em alguns momentos, o leitor terá a impressão de que o
autor comenta seus próprios textos ao analisar os escritos alheios. Um livro
essencial para se aprofundar não apenas na obra de escritores modernos europeus
e o contexto em que foram realizados os seus escritos, mas também no próprio
pensamento de Thomas Mann.
Resenha: O artigo que abre o volume intitula-se “Sobre
Heinrich Heine”. Trata-se de um pequeno texto em que Mann elogia a obra
desse poeta alemão de origem judaica que foi, provavelmente, o primeiro sujeito
a receber a alcunha de “último dos românticos” e que foi celebrizado pela
musicalização que compositores como Schumann, Brahms e Schubert fizeram de seus
versos. O artigo visava defender a construção de um monumento em homenagem a
Heine, projeto que, na época, estava atravancado pelo furor antissemita que
grassava na Alemanha.
O segundo texto é “Ibsen e Wagner”. Nele,
Mann estabelece um paralelo entre as obras do compositor Richard Wagner, famoso por “O Anel dos
Nibelungos”, seu ciclo operístico megalomaníaco (no melhor dos sentidos), e a
dramaturgia de Henrik Ibsen,
partindo de uma observação casual de Hermann Levy, um famoso regente de
Bayreuth, que, ao assistir pela primeira vez a uma peça de Ibsen, teria dito:
“Ou bem isto é ridículo, ou é tão grandioso quanto Wagner.” Mann advoga que
Ibsen e Wagner, na comédia de costumes e na ópera, respectivamente, foram
capazes de transcender os gêneros que cultivaram, criando, a partir de sua
matéria bruta, algo novo e perfeito.
A seguir, o [terceiro] ensaio “Tolstói – no centenário do seu
nascimento” apresenta um retrato semiliterário do romancista russo. Mann o enaltece como um
homem de fibra e personalidade, representante dos melhores valores e do
espírito épico da segunda metade do século XIX, uma espécie de profeta que,
mesmo quando tencionava deixar a arte de lado para transmitir lições e
opiniões, escrevia com criatividade e imensa lucidez, tanto que, nas palavras
de Mann, foi capaz de conceber “o romance social mais poderoso da literatura
mundial”: Anna Karenina.
[Quarto ensaio] O necrológio “In memoriam Hugo von
Hofmannsthal” focaliza muito mais a relação de amizade de Mann com o poeta e dramaturgo austríaco do que a obra
deste, a qual, pelo menos no Brasil, é mais conhecida através dos libretos que
ele escreveu para várias óperas de Richard Strauss. Não deixa de ser
interessante apreciar, através dos relatos de Mann, um pouco dos bastidores da
cena literária alemã do começo do século XX, da camaradagem e das trocas entre
os autores de então, e ainda deparar com percepções preciosas de Mann, como a
seguinte descrição da pessoa de Hofmannsthal:
“Ele tinha uma maneira de compreender
antes que o próprio interlocutor compreendesse, de aperfeiçoar e dar sequência
a coisas que capturava no ar, fazendo com que a conversação transcorresse com
leveza onírica e jocosamente inteligente.”
O quinto texto, “Discurso sobre Lessing”, é um ensaio
caudaloso no qual Mann disserta sobre a obra de Gotthold Ephraim Lessing, poeta,
dramaturgo, crítico de arte e filósofo, autor de Laocoonte, ou Sobre as
fronteiras da pintura e da poesia, um clássico da teoria estética,
enaltecendo-o como um tipo “fundador, em que vidas futuras se reconhecem”, um
dos espíritos “mais crentes, bondosos e esperançosos que já viveram e se
preocuparam com o humano”. Mann defende o status de poeta muitas vezes negado a
Lessing pela crítica, aborda sua tendência à polêmica (descrevendo um célebre
embate teológico em que Lessing se envolveu e ao final do qual acabou proibido
de publicar textos sobre religião) e ainda traça um instigante paralelo entre
ele e Lutero, tendo ambos como exemplos de personalidades libertárias,
questionadoras e à frente de seus tempos.
[Sexto ensaio] Em “Goethe como representante da era
burguesa”, Mann parte de três possíveis maneiras de avaliar a
significância e o impacto de Goethe na cultura: a
primeira, mais modesta, seria considerá-lo como o mestre do classicismo alemão
que, de fato, forjou a noção de uma cultura alemã; a segunda, grandiloquente,
mas não necessariamente exagerada, consistiria em colocá-lo entre os “grandes
vultos que já passaram pela Terra”, um desses expoentes cuja influência se
estende por milênios e que, por isso, acabam adquirindo aura mítica; a
terceira, uma espécie de meio-termo entre as duas primeiras abordagens, seria
alçar Goethe à condição de representante da “era burguesa”, isto é, o período
histórico que se estende desde o século XV até a virada do século XIX. A partir
daí, Mann busca retratar o autor de Werther e Fausto como um
típico burguês, de “modos simples e educados”, amante da boa comida e da
bebida, que se agradava da rotina e do fato de pertencer a um estrato social
confortavelmente mediano, o qual seria propício ao talento, pois, nas palavras
do próprio Goethe, “encontramos todos os grandes artistas e poetas nas classes
médias”. Levando-se em conta o contexto histórico, é plenamente justificado o
esforço de Mann para retratar Goethe dessa forma: trata-se de uma resposta aos
nazistas que, na época, em 1932, ganhavam cada vez mais poder e buscavam legitimar
seus ideais e suas doutrinas deturpando a imagem de grandes pensadores
germânicos, como Goethe, o qual, não raro, era convenientemente descrito por
eles como populista e ultranacionalista.
O sétimo ensaio que compõe o volume é “Dostoiévski,
com moderação”, um prefácio redigido por Mann para uma coletânea de
romances do autor russo publicada
nos Estados Unidos. Aqui, Mann demonstra seu fascínio pela condição de
epilético e pelo estigma de homem doente sob o qual vivia o autor de Os
Demônios, condição essa que abarcaria a “grandeza religiosa dos
amaldiçoados, do gênio como doença e da doença como gênio, do tipo do
atormentado e do possesso, no qual o santo e o criminoso se tornam um só”.
Analisa, então, a repercussão dessa doença de êxtases e convulsões sobre a
personalidade marginal de Dostoiévski e sobre a sua produção literária,
chegando, em certos momentos, a tecer saborosas (porém equivocadas)
especulações sobre uma eventual origem psíquica da epilepsia:
“Em minha opinião ela indubitavelmente tem
suas raízes no campo sexual e é uma forma selvagem e explosiva de sua dinâmica,
um ato sexual deslocado e transfigurado, uma devassidão mística.”
A partir da convicção nietzscheana de que as situações
de exceção condicionam o artista, “todas as situações que são profundamente
aparentadas e entretecidas com sintomas doentios”, e da pré-existência do
conceito de “super-homem” na obra de Dostoiévski (mais especificamente nas
falas da personagem Kirilov, em Os Demônios), Mann estabelece ainda um
diálogo entre o romancista russo e o filósofo niilista alemão.
[Oitavo] Segue-se o texto congratulatório “Hermann
Hesse – homenagem ao seu 70º aniversário”. Nesse artigo, mais uma vez,
Mann apoia-se na sua relação pessoal com o escritor comentado para tratar de
assuntos universais – aqui, mais especificamente, o conflito entre a visão
crítica de certos intelectuais alemães (ele próprio e Hesse inclusos) e a tacanhice ideológica e
estultice patriota dos diversos setores sociais que serviram de substrato ao
crescimento do nazismo ou que por ele se deixaram contaminar. Um dos primeiros
pontos de contato que Mann apresenta para ilustrar sua proximidade com Hesse é
o fato de ambos terem sido chamados de “miseráveis” por um certo compositor de
Munique porque ambos não compactuariam com a crença de que os alemães seriam “o
maior e mais nobre dos povos, ‘um canário entre rolinhas’”. A visão
compartilhada de Mann e Hesse acerca da presunção e do provincianismo germânico
é sintetizada em uma sentença no melhor estilo “pá de cal”: “Na Alemanha,
aliás, os insatisfeitos com a cultura alemã foram sempre os mais alemães de
todos.”
[Nono] Em “Bernard Shaw”, mais um necrológio
contido na compilação, Mann escreve sobre aquele que, sem dúvidas, foi seu
dramaturgo favorito, ressaltando o apreço que o autor dublinense tinha pela
Alemanha, esse país que reconheceu sua importância para o teatro antes mesmo
dos países de língua inglesa, muito embora a influência da cultura germânica
sobre a obra de Shaw fosse mínima e
mesmo que seu conhecimento nesse âmbito fosse “fragmentário e casual”. Outro
aspecto abordado por Mann é o influxo da música na obra de Shaw, socialista
radical capaz de se dedicar com idêntica paixão ao estudo de O Capital
ou da partitura de “Tristão e Isolda”. Shaw era um homem austero, dado a banhos
frios, vegetariano, que gostava de escrever em uma cabana de simplicidade franciscana,
e essas características, que se poderiam chamar de tendência ascética de Shaw,
não passam incólumes à leve (mas constante) acidez de Mann, como mostra o
trecho a seguir, um excerto particularmente divertido quando lido por olhos
vegetarianos:
“Na imagem de Shaw (…) há algo de magro,
de vegetariano e de frígido que, para mim, não combina com a imagem de
grandeza. (…) A batalha pesada (que lembra o titã Atlas) e a carga muscular e
moral de um Tolstói; Strindberg, que passou pelo inferno; a morte de Nietzsche
como mártir na cruz do pensamento nos insuflam esse respeito trágico. Nada
disso no caso de Shaw.”
E lança, então, uma pergunta provocadora, cuja
resposta deixa propositalmente em aberto: “Estaria ele acima disso ou não
estaria ele à altura disso?”.
O décimo artigo, “Gerhart Hauptmann”, versa sobre o
vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1912, um romancista e dramaturgo alemão cuja obra,
inicialmente de tendências naturalistas (vide as peças “Antes da aurora” ou “Os
tecelões”), converteu-se em algo muito mais próximo de um simbolismo metafísico
de forte inspiração religiosa (a novela Herege de Soana é um exemplo).
Mann gasta um bom pedaço do artigo para explicar que o fato de ter se inspirado
em Hauptmann para criar o cativante mas desajeitado e naïf Mynheer
Peeperkorn de A Montanha Mágica foi uma homenagem, e não uma traição.
Porém, ao tratar da concepção dessa caricatura, Mann não está se justificando
ou pedindo escusas de qualquer tipo à opinião pública; ele está, em realidade,
tratando de um tema fundamental na arte da escrita: a modelagem de personagens
literárias.
O penúltimo texto, “Fragmento sobre Zola”, é
uma das raras referências ao escritor francês dentro da obra ensaística de
Thomas Mann. Embora ele defenda a proposta estética de Zola, considerando que seu naturalismo “se
alça ao plano do simbólico e se vincula intimamente ao mítico”, é o engajamento
social do autor de Germinal que o fascina sobretudo, especialmente sua
intervenção no famoso caso Dreyfus, em que
um oficial judeu do exército francês, em flagrante manifestação de antissemitismo,
foi injustamente acusado de traição à pátria.
Encerrando a compilação O escritor e sua missão,
está o belíssimo “Ensaio sobre Tchekhov”. Certa vez, no começo de sua carreira
literária, quando a fama do escritor já eclipsava a do médico, Tchekhov, eternamente modesto, insatisfeito
e desconfiado do próprio talento para as letras, escreveu: “Será que estou
ludibriando o leitor, já que não sou capaz de responder às questões mais
importantes?”. E foi essa frase que tocou fundo no espírito de Mann a ponto de
fazê-lo se debruçar sobre a biografia de Tchekhov.
E, de fato, o ensaio de Mann elenca e esmiúça várias passagens da vida do
russo, buscando, pelo veio biográfico, explicar a gênese e a importância de sua
obra, essa obra que, ao contrário das criações de Tolstói e Dostoiévski, “abriu
mão da monumentalidade épica” e, mesmo assim, conseguiu encerrar em si “toda a
vasta Rússia de antes da revolução, com sua natureza eterna e suas eternas
condições sociais ‘desnaturadas’”.
* x * x *
Comentários: Esse caleidoscópio de ensaios, um bem temperado
aperitivo da obra não-ficcional de Mann, certamente atrairá escritores (e
candidatos a escritores) em busca de “conselhos” desse gigante da literatura
universal sobre o ofício (até mesmo por causa do título escolhido para a
coletânea, que parece insinuar algo nessa direção). Tais leitores poderão se
desapontar, porque, de fato, o livro está longe de ser um “manual de criação
literária” ou coisa parecida. Contudo, para quem tem sede de colher alguma dica
sobre o assunto, é possível sim garimpar algumas delas entre as observações do
próprio Mann e citações que ele busca em outros autores para ilustrar suas
argumentações. Eis algumas delas, transcritas em uma salada proposital, sem
delimitar claramente o que é original de Mann e o que é invocado por ele a
partir de outros:
"A genialidade na arte seria então o
elemento da surpresa e do encanto que causa pasmo, o elemento da ousadia que só
pode ser conhecido em suas realizações.
(…) como ensina a estética de Schopenhauer
(…) as obras mais elevadas se contentam com um mínimo de ação.
Há a dolorosa constatação de que a palavra
apenas consegue elogiar a beleza física, nunca reproduzi-la, há o desafio aos
poetas de abrir mão da descrição, da narrativa da beleza, para, em seu lugar,
pintar para nós o bem-estar, o afeto, o amor, o encanto que a beleza causa, pois
com isso, diz Lessing, “tereis pintado a beleza ela mesma”.
Uma obra-prima não pode parecer
obra-prima.
Apesar de tudo, parece que um artista, um
criador (…), não tem como não afirmar a vida e lhe ser fiel.
Literatura nacional já não quer dizer
muita coisa; é chegada a hora da literatura mundial (…).
Sinto que, sobre o demoníaco, deve-se
“poetar” e não apenas escrever.
Foi o pintor e escultor francês Degas quem
afirmou que um artista deve se aproximar de sua obra como um criminoso executa
seu ato.
Pois a única forma de lidar com o que é
poético, irracional, é por meio da literatura, e não por intermédio da palavra
que analisa e dissocia.
A insatisfação consigo mesmo constitui um
elemento básico de todo talento genuíno."
(Resenha e comentários da
obra são de Rafael Bán Jacobsen, extraídos de http://www.amalgama.blog.br/02/2012/o-escritor-e-sua-missao-thomas-mann/)
Um comentário:
A resenha do livro de Mann é muito bem elaborada. Infelizmente, nos comentários, Rafael faz uma colocação que coloca na corda bamba a sua compreensão sobre literatura "Literatura nacional já não quer dizer muita coisa; é chegada a hora da literatura mundial (…)."
Devo supor que o autor destas palavras é um garoto que não viveu os tempos que a literatura mundial vinha antes da nacional. Agora que os escritores brasileiros vêm se sobressaindo a nível nacional e internacional, é uma colocação infeliz. Talvez seria interessante se Rafael lesse um pouco mais os brasileiros. Thomas Mann é um clássico, imortal.
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