terça-feira, 12 de julho de 2011

A LINHA DE SOMBRA

Título original: The Shadow-Line
Autor: Joseph Conrad
Tradução: Maria Antonia van Acker
Editora: Hemus (O Globo)
Assunto: Romance
Edição: 1ª
Ano: 2003
Páginas: 159

Sinopse: Escrita em 1917, esta obra conta a história de um jovem oficial da marinha mercante que, sem nenhum motivo aparente resolve abandonar a sua carreira e voltar para casa. Entretanto, surge uma última missão e o jovem assume o comando de um velho navio atracado em Bancoc (Tailândia), cujo capitão morrera recentemente, em circunstâncias misteriosas.
Em seu primeiro comando de um navio, o nosso herói enfrenta duas crises: sua tripulação está moribunda por causa de uma violenta epidemia de febre e uma interminável falta ventos para navegar. Nesta dramática situação envolvendo uma sensação ameaçadora de aniquilamento, o jovem capitão tenta conduzir o navio ao seu destino, ao mesmo tempo em que se deixa levar pelas histórias estranhas contadas pelo seu imediato, já consumido pela febre, sobre o capitão que morrera recentemente no comando que agora pertencia ao jovem capitão.
Para escapar desse beco sem saída, o jovem capitão terá de cruzar a tal linha de sombra que separa toda experiência-limite.
Resumo da narrativa: Um jovem imediato da marinha mercante inglesa decide abandonar a sua carreira no mar e voltar para casa. Assim que o seu navio atraca em Bancoc (Tailândia), ele se hospeda em uma estalagem destinada apenas aos homens do mar. Lá conhece o capitão Giles que convence o jovem imediato a ir tirar satisfações com dois homens que parecem discutir sobre a existência de uma vaga como capitão de um navio, já que o antigo capitão morrera de uma forma bem estranha. O jovem imediato assume a vaga de capitão sendo bem recebido pela tripulação, exceto pelo seu imediato, o Sr Burns. Antes de zarparem, a tripulação foi acometida por uma febre que obrigou o navio a permanecer atracado por mais alguns dias. O Sr Burns precisou ficar acamado e fez o novo capitão prometer que não seria deixado em terra firme, assim que o navio partisse. O capitão acreditava que no mar, com o ar purificado, a febre iria embora e decide partir levando o Sr. Burns conforme prometera. Burns conta ao capitão como seu antecessor (um homem muito mau e meio amalucado) morrera. Contou que ele tocava violino o tempo todo em sua cabine e que um dia teve um ataque (barulhento, por sinal) e foi encontrado morto sentado numa cadeira em sua cabine. Sr Burns o sepultou no mar e parecia acreditar que o espírito do velho capitão ainda sondava o navio. Após a partida o navio se defronta com uma calmaria assustadora. E, para piorar, a febre volta a assolar a tripulação. Todos os homens estão fracos e imprestáveis, menos o capitão e o cozinheiro Ransome de quem o capitão se torna amigo. Passaram-se duas semanas no mar na mais completa e angustiante calmaria! Nada acontecia. O capitão tenta medicar seus homens, mas descobre que os vidros de remédio haviam sido esvaziados misteriosamente e preenchidos com um pó imprestável. Esta situação por um lado, e Burns a dizer que tudo era obra da alma do velho capitão em busca de sua tripulação por outro, começa a perturbá-lo e o deixa assustado! Seu único companheiro com saúde, o cozinheiro Ransome, apesar de ter problemas cardíacos, o ajudava em tudo que podia e tornou-se imprescindível ao capitão. Depois de dezessete dias de calmaria, o tempo melhora e o capitão, com a ajuda de alguns homens, prepara todo o navio para seguir seu destino, assim que o vento retornasse. O Sr Burns que havia deixado sua cabine para ver o que se passava, começa a gritar e a amaldiçoar o velho capitão do navio ao mesmo tempo em que soltava uma gargalhada medonha e provocativa, dando a entender ao falecido capitão que ele já não tinha mais poder nenhum sobre o navio. Sua intenção ao enfrentar o suposto fantasma era tirar o navio de sua influência maléfica.
No dia seguinte, o vento retorna e eles prosseguem a viagem. Depois de alguns dias, o navio chega ao seu destino. Ransome pede permissão ao capitão para permanecer em terra, estava com receoso com que poderia acontecer com seu coração. O capitão se encontra com capitão Giles e eles conversam sobre a experiência recém-vivida pelo jovem capitão. Ao final, chegam à conclusão de que o jovem capitão havia deixado de ser um jovem para se tornar um adulto. Acabara de atravessar sua linha de sombra. Depois de tudo isso, nosso capitão não volta para sua casa, mas para seu navio e segue seu destino no mar.
Trecho da obra:
“Apenas os jovens têm tais momentos. Não me refiro aos muito jovens. Não. Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum. É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções. Fecha-se atrás de si o pequeno portão da mera meninice - e adentra-se um jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou pessoal – um algo que seja só nosso. Vai-se reconhecendo os marcos dos predecessores, excitado, divertindo-se, aceitando a boa como a má sorte – as rosas e os espinhos, como se costuma dizer -, o pitoresco lote padrão, que guarda tantas possibilidades para os merecedores, ou talvez para os afortunados. Sim. Vai-se adiante. E o tempo, também, caminha - até que se percebe logo adiante uma linha de sombra avisando-nos que também a região da mocidade deverá ser deixada para trás. Este é o período da vida no qual os tais momentos de que falei costumam aparecer. Que momentos? Ora, os momentos de tédio, de desânimo, de insatisfação. Momentos temerários. Quero dizer, momentos em que os ainda jovens estão propensos a cometer gestos temerários, como casar-se de repente ou então abandonar um emprego sem motivo algum. Esta não é uma história de casamento. Não foi assim tão ruim comigo. Meu gesto, temerário que foi, teve mais a natureza de um divórcio - quase uma deserção. Sem motivo algum que uma pessoa razoável pudesse apontar, larguei meu emprego - descartei o meu posto -, deixei o navio do qual o pior que se poderia dizer era que, sendo um navio a vapor, talvez não fizesse jus àquela lealdade cega que... Entretanto, de nada adianta dourar uma pílula que, já naquela época, eu mesmo quase suspeitava ser um capricho. Era um porto oriental. Ele era um navio oriental porquanto pertencesse, então, a um porto oriental. Ele comerciava pelas ilhas escuras sobre um mar azul rasgado por recifes, com a bandeira vermelha da marinha mercante inglesa sobre a grinalda de popa e, no calcês, a bandeira da companhia de navegação, também vermelha, mas com beiradas verdes e uma lua crescente. É que o proprietário era árabe e, aliás, da nobreza muçulmana. Ele era o cabeça de uma grande estirpe de árabes das colônias britânicas, mas um súdito tão fiel do complexo império britânico quanto era possível encontrar a leste do canal de Suez. Política internacional não o preocupava nem um pouco, mas ele tinha um grande poder oculto entre os de seu povo. Para nós pouco importava quem era o proprietário do navio. Ele tinha que empregar homens brancos na parte de navegação do seu negócio, e muitos daqueles que empregava nunca puseram olhos nele do primeiro ao último dia. Eu mesmo o vi apenas uma vez, por mero acaso, num cais - um velho e escuro homenzinho, cego de um olho, vestindo uma túnica alva e sapatas amarelas. Sua mão estava sendo impiedosamente beijada por camponeses malaios a quem ele havia feito algum favor em forma de comida e dinheiro. Sua caridade, ouvi dizer, era praticada extensivamente, abrangendo quase todo o arquipélago. Pois não se diz que: "O homem caridoso é amigo de Alá"? Excelente (e pitoresco) proprietário árabe, sobre o qual não se precisava dar tratos à bola; um realmente excelente navio escocês - pois é isto o que era da quilha até em cima -, excelente embarcação marítima, fácil de conservar limpa, muito prática em todos os sentidos, e, não fosse pela sua propulsão interna, digna do amor de qualquer homem. Eu cultivo até os presentes dias um enorme respeito pela sua memória. Quanto ao ramo de comércio em que ela atuava e o caráter dos meus companheiros de bordo, eu não poderia ter sido mais feliz se tivesse a vida e os homens feitos sob encomenda para mim por um benevolente Feiticeiro. E subitamente abandonei tudo isto. Eu abandonei tudo daquele modo, para nós, inconseqüente, pelo qual um pássaro voa para longe de um galho confortável. Era como se, todo incompreensão, eu tivesse ouvido um sussurro ou visto algo. Bem - quem sabe! Num dia eu estava perfeitamente bem, no outro tudo me havia fugido - encanto, sabor, interesse, alegria, tudo. Era um daqueles momentos, você sabe. O verde mal do fim da juventude desceu sobre mim e levou-me embora. Levou-me embora daquele navio, é o que quero dizer. Éramos apenas quatro homens brancos a bordo, com uma tripulação grande de marinheiros malaios, e dois contramestres malaios. O Capitão encarou-me como se tentasse adivinhar o que me afligia. Mas ele também era marinheiro, e ele também fora jovem certa época. Logo um sorriso insinuou-se por baixo de seu bigode farto, cinza-aço, e ele observou que, é claro, se eu achava que tinha de ir, ele não iria reter-me pela força. E ficou arranjado que eu receberia baixa na manhã seguinte. Enquanto eu saía do camarim de navegação ele acrescentou subitamente num tom peculiar, ansioso, que esperava que eu encontrasse aquilo por que estava tão ansioso para sair e procurar. Uma frase suave, enigmática, que pareceu alcançar mais fundo do que qualquer ferramenta com ponta de diamante poderia chegar. Eu sinceramente creio que ele entendeu o meu caso. Mas o segundo engenheiro atacou diversamente. Ele era um jovem e robusto escocês, com rosto sereno e olhos claros. Seu semblante honesto e vermelho emergiu da gaiúta da escotilha da sala das máquinas, e logo depois o robusto indivíduo inteiro, de mangas arregaçadas, lentamente limpando os maciços antebraços com um chumaço de estopa. E seus olhos claros exprimiam amargo desgosto, como se nossa amizade tivesse sido reduzida a cinzas. Ele falou dando peso às palavras: - Ah! Sim! Eu já estava mesmo pensando que era tempo de você correr para casa e se casar com alguma menina tonta. Tinha-se por entendimento tácito no porto que este John Nieven era um misógino feroz; e o caráter absurdo do chiste convenceu-me de que sua intenção fora ser maldoso - muito maldoso -, ele quis realmente dizer a coisa mais arrasadora em que conseguisse pensar. Meu riso soou suplicante. Ninguém a não ser um amigo ficaria assim tão zangado. Eu fiquei um pouco aborrecido. Nosso maquinista chefe também viu meu gesto de um modo característico, mas num espírito mais gentil. Ele era jovem também, mas muito magro, e com uma névoa fofa de barba marrom em volta do rosto descarnado. O dia todo, no mar ou no porto, ele poderia ser pego andando apressadamente para cima e para baixo no tombadilho, adotando uma expressão intensa de enlevo espiritual, que era causada por uma perpétua consciência de desagradáveis sensações físicas em sua economia interna. Pois ele era um dispéptico inveterado. O modo como via meu caso era muito simples. Declarou que não era nada mais do que disfunção hepática. É óbvio! Ele sugeriu que eu ficasse para mais uma viagem e no meio tempo me medicasse com um certo remédio garantido, no qual ele mesmo tinha absoluta confiança. - Digo a você o que farei. Compro-lhe dois vidros do meu próprio bolso. Aí está. Não existe proposta mais justa do que essa, ou existe? Creio que ele teria perpetrado a atrocidade (ou generosidade) ao menor sinal de amolecimento da minha parte. Entretanto, eu estava naquela época mais descontente, mais desgostoso e intratável do que nunca. Os dezoito meses que haviam se passado tão cheios de novas e variadas experiências pareciam-me um enfadonho e prosaico desperdício de dias. Eu sentia - como poderei expressá-lo? - que não havia uma verdade a ser extraída deles. Que verdade? Eu me veria numa situação bastante difícil se fosse obrigado a explicar. Provavelmente, se pressionado, teria simplesmente começado a chorar. Eu era jovem o suficiente para tanto.”
Comentários: Esta última obra-prima de Joseph Conrad marca o limite – tão indefinível e incompreensível, quanto inquietante e doloroso – que num determinado momento da vida configura, de modo irrevogável, o fim da juventude. Para o protagonista deste romance intenso, a ultrapassagem dessa fronteira coincide com uma experiência excepcional e dramática: oficial da marinha mercante, em seu primeiro comando se defronta com uma interminável calmaria no clima insalubre dos mares do Sudoeste Asiático, enquanto vê sua tripulação ser dizimada por uma violente epidemia de febre.
À imobilidade cada vez mais ameaçadora e sinistra do navio contrapõe-se a intensificação, nos homens que o deveriam conduzir, de uma angústia e de um medo que deixam o comandante na desolada solidão de sua responsabilidade e de sua impotência. Nos dezessete dias de calmaria – metáfora de um tempo e de um espaço espantosamente concentrados –, ele parecerá atravessar todas as fases de uma existência, descobrindo a maravilha do terror, a ânsia irremediável nos sobressaltos de alegria ou ainda a sutil sensação de derrota que permeia um episódio de libertação.
Quando vencer essa situação, o comandante exibirá o traço indelével de uma ferida da alma, no fundo da qual encontrará confusa e corajosamente a consciência definitiva da condição humana.
Com domínio total da psicologia das personagens e da situação-limite que vivem, Joseph Conrad (1867-1924) reflete nesta novela, a partir de elementos de sua própria biografia, sobre o rito de passagem entre a juventude e a idade madura - passagem que ele mesmo experimentou ao abandonar a relativamente autônoma vida marítima pela incerta experiência literária.
Lançado ao mar para realizar uma travessia, a da juventude à vida madura. Não há cenário melhor do que o mar para se deixar de ser jovem, daquela maneira descuidada e ardente, nas palavras do autor, e tornar-se adulto, mais autoconsciente e pungente. O mar força a ação, querendo ou não, deve-se agir. Lidar com o vento, com a tripulação e com a própria consciência - inquiridora recorrente quando se está no meio de um oceano - são "momentos de precipitação" oportunos nesse caminho do qual se pode afastar-se, mas não escapar. Dele não fugiu um rapaz polonês, que aos 21 anos já perdera os pais, tentara o suicídio e se aventurara em navios mercantes. Essa não é descrição de mais uma personagem, mas sim do próprio autor. Conrad esteve nos lugares que descreve tão bem; conheceu figuras enigmáticas, como o capitão Gilles, paranóicas, como Mr. Burns e prestimosas, como Gambril. E, como muitos de seus heróis, rearrumou a memória e narrou o que viu, ouviu e viveu.
Concluindo: A linha de sombra é um daqueles romances cuja compreensão depende de uma percepção da vida dificilmente acessível aos mais jovens, posto que (palavras de Conrad): "É um privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou interrupções." Privilégio que não se pode prorrogar, sob pena de fazer da vida uma simulação, uma tentativa de congelar o que já não existe, já passou.
Sobre o autor: Joseph Conrad, cujo verdadeiro nome era Teodor Józef Konrad Korzeniowski, nasceu em 1857, na Ucrânia, numa família polonesa, e morreu em Bishopsbourne, Inglaterra, em 1924. Aos 17 anos, abraçou o ofício de marinheiro, tendo embarcado para Marselha e dali passou a viver nos mares em navios franceses e, mais tarde, ingleses.
Em 1884, obteve licença de comandante de longo curso e naturalizou-se inglês, com o nome de Joseph Conrad. Cumpriu toda a carreira de oficial da marinha mercante, atravessando os oceanos do mundo todo, sobretudo na Ásia, na África e na Oceania.
Em 1894, abandonou o mar e fixou-se na Inglaterra, dedicando-se à literatura após o sucesso de seus primeiro romance, A Loucura de Almayer (1895). Em sua vasta produção literária (ao todo, 23 volumes de romances, novelas e contos), destacam-se O Negro do Narciso (1898), Lord Jim (1900), O Coração das Trevas (1902), Tufão (1903), Nostromo (1904), O Agente Secreto (1907), A Linha de Sombra (1917) e A Flecha de Ouro (1919).

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