domingo, 6 de março de 2011

ALMAS MORTAS

Título original: Мёртвые души
Autor: Nikolai Vasilievitch Gogol (1809-1852)
Tradução: Tatiana Belinky
Editora: Abril Cultural
Assunto: Romance
Edição: 1a
Ano: 2003
Páginas: 494
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Sinopse: Escrito em 1841, Almas Mortas conta a história de um aventureiro que compra, a baixo preço, os camponeses russos mortos desde o último censo, mas ainda vivos nas listas do fisco. Uma trapaça que permite traçar um panorama da vida da província e um esboço do homem russo por inteiro, pelo seu lado negativo. Gógol escreveu um segundo volume da obra, mas em um momento de angústia acabou queimando-o. A segunda parte, inacabada e póstuma, foi publicada em 1852.

Resumo da narrativa: Pável Ivánovitch Tchitchikov chega a uma aldeia para comprar almas mortas, ou seja, servos que já morreram, mas ainda não foram registrados nos censos de óbitos que eram realizados a cada cinco anos. À primeira vista este negócio parece inverossímil e todos se riem com estranheza medrosa do seu negócio. Todavia há uma intenção ilícita oculta por trás dela.

Comentários: O primeiro livro de Almas Mortas resume-se aos encontros de Tchitchikov com os proprietários rurais para lhes comprar os servos mortos. O grande enigma: Para que Tchitchikov quer servos mortos? Tchitchikov quer comprar as almas mortas para poder levantar um empréstimo bancário dando as almas como garantia as quais, na realidade, não garantem nada, pois elas não existem de fato, estão mortas. Com esse estratagema ele quer reconstituir a sua vida econômica e social e tornar-se um cidadão respeitável no meio social.

Na Rússia daquela época, a cada cinco anos, todo proprietário rural era obrigado a comunicar às autoridades do fisco quantas almas possuía, pois assim eram chamados os camponeses, que trabalhavam em regime de servidão. Com base neste número era fixado o patrimônio do proprietário e os impostos por ele devidos nos próximos cinco anos, independente do número de baixas ou de aquisições que ocorresse no período. Não se considerava mortes por guerra, peste ou o que quer que fosse e isto poderia ser um prejuízo para alguns proprietários.

Tchitchikov teve a idéia de viajar por toda a Rússia em busca de "almas mortas", que ainda constavam dos registros. Pagava preços insignificantes por elas e deixava seus proprietários curiosos de saber para que serviriam tais almas. Não desconfiavam que o objetivo dele fosse, com isto, se tornar, também, um proprietário de grande número de almas, que seriam "transferidas" para algum lugar remoto da Rússia. Sendo proprietário de tantas almas, não lhe seria difícil obter junto aos bancos, volumosos empréstimos, que teriam como garantia sua propriedade fictícia.

A idéia central do romance, sugerida por Púshkin após a leitura de uma nota jornalística, permitiu a Gógol pintar uma variedade de personagens, cuja força reside em seu poder de caracterização do universal pelo específico, o que levou Púshkin a dizer, apesar de toda comicidade ali destilada – “eu não ri, chorei; Deus, como é triste a nossa Rússia”. Assim, a denominação 'almas mortas' constitui não apenas a metáfora de um golpe ou de uma prática ardilosa, mas ainda uma expressão de até onde pode ir o decaimento do espírito humano, a contradição em que ele pode entrar com todo o padrão ético e fundamento religioso da existência.

Gogol descreve uma cidade provinciana, alegorizando a figura dos proprietários de terra desta província, os "proprietários da vida", que respondem pela sorte do povo. Descreve, também, as características gerais do funcionalismo público da época, corrupto, inapto e inconseqüente.

As personagens são incríveis, a começar por Tchitchikov. Nele, Gogol descreveu um sujeito cara de pau e trambiqueiro de primeira. Esta personagem é perfeita e, em torno dela, Gogol teceu a temática que lhe foi sugerida por Puchkin com uma maestria digna de um gênio! Via Tchitchikov, Gogol faz uma profunda reflexão sobre a moral e a ética daquele tipo de sociedade na Rússia do século XIX.

Cada uma destas personagens tem uma característica marcante e é a partir de tais características que Gogol formou os seus nomes, a começar pelo nome da personagem central: de acordo com o dicionário "Grande Tolkoviy", Tchitchikov significa: pessoa que persegue a abundância e prosperidade a qualquer preço; pessoa que devota a vida à aquisição de riqueza, vantagens, lucro.

Para dar nomes a outras personagens segue a mesma técnica. Assim, tem-se: Manilov: nome que evoca gentileza, boas maneiras.

A personagem Manilov participa de negociações sempre rápidas e cordiais com Tchitchikov, concordando em lhe ceder, sem cobrar nada, todos os servos mortos. Gógol formou este nome a partir do verbo "manit'", que significa atrair ou seduzir. De acordo com o Dicionário Russo de Sinônimos, a palavra Manilov significa sonhador, maquinador, que fantasia, utópico. Relativo a autor de projetos atraentes, cativantes, fascinantes, encantadores, mas impraticáveis.

Sentido da obra: Almas Mortas foi planejada para ter três partes e das quais só temos a primeira e os fragmentos da segunda e que podem conter fragmentos da terceira. Não temos como saber disso. Portanto, este aspecto está irremediavelmente perdido.

O que parece, embora não se possa garantir isso de modo nenhum, é que Gogol queria fazer uma espécie de Divina Comédia russa, começando então com o Inferno, passando pelo Purgatório e terminando com o Paraíso. Essa teria sido a idéia central ou o modelo original. Todavia isso é apenas uma especulação porque nós não temos elementos concretos disso. Temos indícios, mas não elementos concretos.

Por isso há uma dificuldade enorme para interpretar Almas Mortas porque se trata de uma obra incompleta. A primeira parte, ou o primeiro livro foi escrito entre 1837-38 e publicado parcialmente em 1842. A segunda e terceira partes nunca foram terminadas.

Na primeira parte do livro podemos fazer a analogia de Tchitchikov com o próprio Diabo porque ele compra almas como o Diabo compra.

A segunda parte é confusa e truncada. Podemos fazer uma analogia com o Purgatório onde Tchitchikov teria que passar por uma série de situações, reveses e vivenciar essas amarguras.
Na terceira parte Tchitchikov teria se regenerado completamente, transformado num novo homem, num sujeito decente.

Se partirmos dessa perspectiva em que Tchitchikov num primeiro momento é o Diabo encarnado; na segunda parte passaria por uma série de provações (a prisão que ele sofre seria um exemplo dessa analogia), e na terceira, depois de purificado, Tchitchikov iria produzir uma vida com conotações divinas, um sujeito rico de origem honesta que recuperou a sua consciência moral poderemos validar a tese da Divina Comédia russa.

Este é o esquema fundamental nos romances de Dostoiévski. Acredito que Dostoiévski se inspirou em Gogol para adotar esse esquema do vilão, depois penitente e finalmente purificado pela conversão e pelo arrependimento real e sincero. Todavia, Dostoiévski foi um escritor de primeira grandeza e conseguia reproduzir esse esquema com uma eficácia incrível. Basta ler “Crime e Castigo”, “Os Demônios”, “Os Irmãos Karamázov” e “O Idiota” para ver traços evidentes desse modelo que foi inaugurado por Gogol. Todavia, Gogol não tinha a força de Dostoiévski para completar os seus enredos. Talvez esse seja o motivo de Gogol ter queimado a segunda parte de Almas mortas, depois reescrito e fragmentado e destruído a terceira parte. Provavelmente não gostou do desfecho ou não conseguiu produzir o desfecho esperado.

Em Dostoiévski a única possibilidade de redenção que há o mundo é pelo sofrimento. Não há redenção alguma fora do sofrimento. O ser humano está preso a esta vicissitude.

Tchitchikov é um ressentido. Na verdade, um humilhado-ofendido. Abandonado pelos pais aprendeu que só se consegue sucesso na vida ensinado pelas circunstâncias da vida, sendo pragmático e dinheirista.

É o humilhado-ofendido que produz as revoluções. O humilhado-ofendido apóia aquele que parece que não humilha e não ofende. Incluem-se nesta característica o pequeno burocrata, o pequeno jornalista, o pequeno funcionário que, por serem justamente pequenos têm o sonho de grandeza do poder. Quem produz as revoluções são estas pessoas. Este é o conteúdo central desta história de Gogol. Ele está dizendo que são estas as pessoas que produzirão de alguma maneira as grandes modificações sociais.

As revoluções não são feitas por líderes consolidados, não são feitas por líderes que têm alguma coisa a perder, mas por um grupo que de alguma maneira está desprestigiado e que tem muito a ganhar com a revolução. As posições de poder que virão em seguida são o principal elemento motivador do humilhado-ofendido revolucionário.

Quem milita no partido é o humilhado-ofendido. Quem domina a militância de esquerda é justamente o humilhado-ofendido que sonha com o poder totalitário, porque ele vê na tomada do poder uma oportunidade para solução para a sua auto-estima baixa.

É isto que está em Gogol, embora ele não nos diga com clareza.

Sobre o autor: GOGOL (Nikolai Vasilievitch), romancista e dramaturgo russo (Sorotchintsi, 1809 - Moscou, 1852). Considerado o “pai” da literatura russa do século XIX. Suas histórias notabilizam-se por suas caricaturas grotescas, românticas e humorísticas, e por seu estilo brilhante, exagerado e vigoroso. Considera-se com freqüência a sua comédia, O Inspetor-Geral (1836), uma sátira moral contra os maus funcionários do governo, como a maior peça do teatro russo. Seus personagens cômicos e suas situações divertidas deram-lhe popularidade. Seu maior romance, Almas Mortas, e seu famoso conto, O Capote, foram ambos escritos em 1842. Escreveu também novelas como Taras Bulba (1935).

Gogol nasceu e educou-se na Ucrânia e, aos 19 anos, foi para São Petersburgo. Fracassando em seus esforços para tornar-se um ator famoso, passou a trabalhar como funcionário público e como professor de história. Sua primeira coletânea de contos, Noites numa Fazenda Perto de Dikanka (1831), atraiu a atenção dos leitores e do poeta Alexandre Puchkin, que o incentivou em suas pretensões literárias.

De 1836 a 1844, viveu no exterior, especialmente em Roma. Voltava à Rússia somente por períodos curtos. Escreveu nessa época Almas Mortas. Em seus últimos anos, Gogol teve seu poder criativo abalado. Vitimado por uma doença mental, acreditava possuir uma missão divina para reformar os seus compatriotas pecadores. Procurando consolo em peregrinações religiosas, dedicou-se igualmente a práticas ascéticas. Numa crise de depressão, queimou o manuscrito da segunda parte de Almas Mortas e atribuiu sua atitude, em seguida, a uma brincadeira do demônio. Depois desse episódio, deixou-se invadir pela melancolia, ficou doente e morreu.