sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

QUANDO DESPERTAMOS DE ENTRE OS MORTOS

Título original: (do norueguês Vagner Når vi døde)
Autor: Henrik Ibsen (1828-1906)
Tradução: Vidal de Oliveira
Editora: Globo
Assunto: Drama
Edição: 1ª (2ª reimpressão)
Ano: 1960
Páginas: 51 (579-630)

Sinopse: É a última peça escrita pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Foi publicada em 1899, e encenada pela primeira vez em Stuttgart, em 1900.

Arnold Rubek, um célebre escultor e sua esposa, Maja, estão nas margens de um fiord, numa estação balneária da Noruega, onde tinham ido passar o verão. Rubek encontra-se tenso e pouco à vontade. Maja encontra a atenção em Ulfheim, um proprietário de terras e um rude caçador de ursos que contrasta fortemente com o marido. Maja, movida pela curiosidade decide acompanhar Ulfheim até uma montanha e insiste com o marido que os acompanhe. Rubek, por sua vez, encontra Irene, uma bela mulher de seu passado que lhe desperta memórias, desejos e uma aguda crise existencial. Rubek e Irene acabam combinando se encontrar na montanha onde se desenrola todo o epílogo do drama: Ulfheim e Maja se vão para a planície obscurecida pela tormenta, e para vida, enquanto Rubek e Irene sobem para o cimo luminoso, e para a morte. A peça é impregnada por um intenso desejo de vida, mas se ele pode ser alcançado é o drama da peça.

Enredo: O escultor Arnold Rubek, numa cintilação de gênio, produziu uma grande obra, o “Dia da Ressurreição”. A idéia da Ressurreição surgiu-lhe sob o aspecto de “uma virgem imaculada que nada conhece da vida terrestre e que, ao despertar para a luz, não tem que despir-se de qualquer mácula que seja”. Ao mesmo tempo em que a Vida terrestre era desse modo afastada de sua arte, ele a bania de sua própria existência. Uma bela moça, Irene, apaixonara-se por ele e consentira em segui-lo ao estrangeiro. Ele fez dela a casta encarnação do seu pensamento diretor, submetendo-a, contudo, aos deveres de um modelo plástico. Respeitou-a, não obstante sua beleza, que se desvendava inteiramente ante ele, e não obstante a embriaguez que ela lhe causava. Queria que sua obra levasse em si o cunho do triunfo da alma sobre a carne. Rubek e Irene viveram assim uma vida seráfica nas margens do Teunitzer-Lee, um lago que não se encontra nos mapas e que foi testemunha de seus brinquedos inocentes, de mil infantilidades, nas quais buscavam o esquecimento da natureza impiedosa. Tinha dela, no íntimo, uma noção de nitidez bem diversa da que tinham os ingênuos heróis de Bernardin de Saint-Pierre. Foi mesmo isso o que os perdeu.

O falso, na vida, somente engendra loucura e foi, de fato, um germe de loucura o que Irene levou daquele “atelier” de onde, um dia, fugiu, por não poder mais, triste vítima de um egoísmo de artista que não levava em conta a natureza dela. Violentada, essa natureza vingou-se por uma reação violenta, até mesmo grosseira. A beleza sagrada que Rubek quisera preservar de qualquer mácula foi miseravelmente poluída pelos olhares de um público de café-concerto, ante o qual, Irene, foi exibi-la em quadros vivos. A infeliz tornou-se o que tinha de se tornar depois de uma tal estréia. Quando, anos mais tarde, Rubek, inopinadamente torna a encontrá-la, ela lhe conta, em frases desconexas, que seu espírito delirante lhe dita, que homens foram por ela levados a ruína e ao suicídio. Que haveria de verdade nessas narrativas? Só vagamente ele o imaginava. Ela se casara duas vezes; primeiro com um brasileiro, mais tarde com um russo. Os dois maridos estão mortos. “Matei-os” é o que responde a uma pergunta do artista. “Tens filhos?” pergunta-lhe ele. E vem a mesma resposta: “Matei-os”.

Sua fantasia sofre de uma mania homicida que, num momento dado, seguramente, ameaçou traduzir-se em atos, o que determinou o seu internamento. Pelo menos é isso que se deduz de suas palavras: “Estou morta... Puseram-me no túmulo... fecharam o sepulcro com barras de ferro, depois de terem acolchoado as paredes...” Saiu do cubículo, quase que restabelecida, mansa e boa no fundo da alma, a ponto de fascinar as crianças que instintivamente a procuravam, e, não obstante, por momentos, sujeita aos seus impulsos assassinos. Isso acontece, principalmente, todas as vezes que ela é ferida no mais íntimo dos seus sentimentos. Esse ponto sensível é, cousa estranha, o culto ou antes o amor apaixonado do ideal, amor que, nela, triunfou das máculas, das degradações, dos dramas cruéis da vida, até mesmo da perda da razão. No seu espírito, ele se une à recordação da obra-prima que ela inspirou, e pela qual conservou o amor de uma mãe pelo filho. Tornar a ver esse filho, “o nosso filho” como o chamavam outrora, revê-lo em sua beleza e em sua glória atual, tornou-se-lhe a única preocupação, a própria finalidade da existência. É assim que a imagem pura, o ideal sagrado, o protótipo divino, deformado pela realidade, se conserva nas almas amantes.

Inspirado pela vida, cujo quadro se desenvolveu ante ele depois da partida de Irene, Rubek aumentou, complicou, transformou a sua obra. Da idéia primitiva, nada mais resta, a não ser uma figura apagada no último plano de um grupo, onde se vêem homens, aprisionados na crosta terrestre que se abre insuficientemente, fazendo vãos esforços para se desprenderem, a fim de renascerem para a vida e para a luz.

No meio desses seres, o artista representou-se a si próprio. A alteração que a sua obra sofreu, nada mais é, de fato, que o reflexo da que se operou nele. Também ele está aprisionado na crosta terrestre, na existência vulgar da multidão, à qual se acha mesclado desde o dia em que trabalhou para ela, em que dela recebeu glória e riqueza. Ele a desprezava, é certo, e se sente nauseado ente os seus louvores, seus êxtases e principalmente seus comentários. “O mundo inteiro nada sabe, nada compreende” responde com raiva e desdém, quando lhe falam de seu gênio reconhecido por todos. Não importa: pertence a essa multidão. Ela o reduziu, mutilou-o, tanto que se sente incapaz de esculpir outra cousa que não sejam “bustos de perfil, de três quartos”.

Tudo o que pode fazer é vingar-se sorrateiramente, segundo sua própria expressão, dando a cada um de seus retratos uma semelhança secreta com algum animal doméstico. “Porquanto o homem, depois de ter desfigurado os animais que domesticou, recebeu por sua vez, o seu cunho”.
O sarcasmo, porém, é um sinal de derrota mais que de triunfo. É a vingança dos impotentes. E, de fato, é um impotente, esse artista que depois de ter trocado seus sonhos por uma realidade cômoda e lucrativa, quer repentinamente voltar e viver a vida terrestre que até então desdenhou, quer vivê-la plenamente, como Brand aconselhava àqueles que não se podem desprender da terra: “Sê plenamente o que és”.

Demasiado tarde! Ao ver a mão de Irene brilhar um estilete que ela dissimulava na blusa, ao ouvir-lhe dizer que por várias vezes tivera a intenção de apunhalá-lo, Rubek pergunta-lhe por que não o fez. “Porque” – declara ela, – “compreendi repentinamente que tu também estavas morto, morto como eu... A vida, toda ela, apareceu-me como um cadáver estendido num leito de luxo.” Debalde procuram eles galvanizar por um momento esse cadáver, antes de baixar ao túmulo, ao verdadeiro túmulo, que será desde então seu lugar. Da charneca selvagem, do denso nevoeiro que os cerca, o mestre e Irene, facilmente persuadida e arrastada pela vertigem que dele se apoderou e por ela própria desencadeada, atiram-se para os cimos luminosos. Mas apenas dão alguns passos e a morte, mais impetuosa ainda do que seus desejos, os detém: o terreno nevado faze-lhes sob os pés, o alude arrasta-os, o abismo os traga. Paz às suas almas atormentadas!


Interpretação da peça:
Ouve-se subitamente como que um rugido de trovão a descer das alturas nevadas, que se esboroam, e entrevê-se vagamente Rubeck e Irene, arrastados pelo alude. Traga-os o abismo”.
“A diaconisa (dando um grito e estendendo os braços para eles). Irene! (Conserva-se calada, um momento, depois faz o sinal da cruz sobre o abismo e diz:) Que a paz seja convosco! (Ouve-se ainda, vindo de baixo e cada vez de mais longe, o canto de Maja).

A alva sombra de Irene atravessa, sombra do desejo irrealizado, seguida da sombra escura e silenciosa da diaconisa, sua guardiã, da sombra do destino apegado aos nossos passos e que nos alcança ao despertar dos nossos sonhos vãos. E por uma cruel ironia da sorte, é no momento da morte que essa fonte jorra por fim dentro dos corações que, durante a vida, a ela se haviam fechado para alimentarem sentimentos sobre-humanos. Mas será mesmo uma ironia? Será uma potência sarcástica que por essa forma se ri de nós? Não será, antes, uma força infinitamente misericordiosa, Deus charitatis que, por um verdadeiro golpe de graça, detém a carreira vital de certos seres privilegiados, no momento exato em que eles concebem a felicidade? Porquanto, essa concepção é a única verdadeira felicidade que lhes seja permitida neste mundo. Mais um passo, e começaria a decepção.

O mundo é todo ele decepção. Esta é a realidade. A réplica de Irene “Quando despertamos de entre os mortos, verificaremos que jamais temos vivido” é uma das palavras mais sombrias que em qualquer tempo tenha sido dita sobre esse tema.

O conflito interior “entre o mundo tal qual ele é o mundo como deveria ser” é o único conflito da peça. Dá-se na alma de Rubek e parecia, no momento em que começa a ação, terminado pela vitória do mundo tal qual ele é. O escultor casara-se com uma verdadeira filha desse mundo, uma verdadeira filha da Eva terrestre. Ibsen dá-lhe o nome de Senhora Maja, da mesma forma que tem o cuidado de juntar sempre ao nome de Rubek seu título de professor. Nesse pequeno detalhe esconde-se uma intenção. Aqui temos um casal, cuja situação social está perfeitamente estabelecida, e que, aparentemente, nada mais tem a fazer do que gozar uma existência cujos começos, de um lado, como de outro, foram mais modestos. A estes substituíram-se condições de bem-estar material, até mesmo de luxo, que aqueles triunfadores nos expõem desde a primeira cena do drama: “Nossa casa, diz Rubek, é magnífica... Estamos instalados com um esplendor, um luxo que nada deixam a desejar. E tudo isso é vasto, é confortável.” “Não há dúvida, responde Maja, em matéria de bem-estar e de conforto nada nos falta.” Aparências vãs, tudo isso! Já vimos o que é a alma do Senhor professor. A verdade explode bruscamente, subitamente, assim que ele torna a encontrar Irene, o passado, o sonho ao qual faltou a realidade. Debalde tenta sanar essa falta num supremo e imponente esforço para unir a arte à vida da qual a separara.

E Senhora Maja? Senhora Maja pouco se importa com a arte! “Ora! Não passas de um simples artista”, diz ela desdenhosamente ao marido, que a quer iniciar nas suas torturantes elucubrações. “Estás doente, Rubek”, diz em outra oportunidade, com clarividência e solicitude femininas, porque de fato ele o está. Mas, para essa doença ela só conhece um remédio: “Bebe” acrescenta, oferecendo-lhe um copo de champanha, “bebe e sê feliz”. O remédio é eficiente para ela? Será ela feliz, embora não lhe falte o champanha? Não. Maja é também uma desiludida. “Lembras-te do que me prometeste?” pergunta ela àquele a quem seguiu em país estrangeiro. Trata-se da promessa do tentador evangélico: “Eu te conduzirei a uma alta montanha e te mostrarei todos os esplendores da terra.” O tentador não pode cumprir a promessa, porquanto as duas partes são incompatíveis. Para uma, a alta montanha, para a outra os esplendores da terra. Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo. E, entretanto, somente sua reunião corresponderia aos secretos desejos da nossa natureza primitiva. A mulher, ser instintivo, mais perto da natureza do que o homem compreende isso e sente-o sempre, qualquer que ela seja. A mais terra-a-terra tem necessidade de ideal, a mais imaginativa precisa de realidade. “Nunca me levaste a uma alta montanha” é uma das queixas que Maja faz ao marido. Por sua vez ouvimos o queixume de Irene: “Deveria ter dado à luz a crianças... a verdadeiras crianças, não dessas que se guardam em sepulcros... Nunca te deveria ter servido, - poeta!” “Por que me chamas poeta?” pergunta-lhe Rubek. “Porque és fraco e inerte, cheio de indulgências para com os teus atos e pensamentos.” Isso está nitidamente dito: é preciso, para ter direito à vida, para contentar, até mesmo a um ser exaltado como Irene, que um poeta seja ao mesmo tempo homem, com tudo o que esse termo implica, inclusive o sentimento de responsabilidade por seu atos e pensamentos. E esse sentimento deve traduzir-se de outra forma que não em obras de literatura ou arte: “Mataste a minha alma”, acrescenta Irene, “e esculpes a seguir tua imagem numa atitude de arrependimento, de confusão e de penitência. Com isso crês estar tudo dito e que não há mais contas a ajustar.