sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DON JUAN

Título original: Don Juan ou Ler festin de pierre.
Autor: Jean-Baptiste Poquelin (Molière) - (1622-1673)
Tradutor: Millôr Fernandes
Assunto: Drama
Editora: L&PM
Edição: 1ª
Ano: 1997
Páginas: 130 p.


Sinopse: Don Juan é um lendário libertino fictício, um mulherengo inveterado, que seduzia as mulheres prometendo-lhes o matrimônio. Deixa, atrás de si, um rastro de corações partidos, até que finalmente acaba matando um certo Don Gonzalo. Quando depois é convidado pelo fantasma deste para um jantar numa catedral, acaba por aceitar, por não querer parecer um covarde e acaba se dando muito mal. A história termina dramaticamente, com a descida de Don Juan ao Inferno.

Curiosidade: A versão de Molière, que estreou em 1665, após quatorze apresentações foi proibida e só voltaria a ser reencenada como ele a escreveu cento e setenta e quatro anos depois da morte do autor.

As personagens:

― Don Juan – filho de Don Luís
― Leporelo – Criado de Don Juan
― Dona Elvira – Mulher de Don Juan
― Gusmão – Escudeiro de Dona Elvira
― Don Carlos – Irmão de Elvira
― Don Alonso – Outro irmão de Elivira
― Carlota e Marturina – Componesas
― Pierrô – Camponês
― A Estátua do Comendador
― Violeta e Ragota - Criados de Don Juan
― Sr. Domingos – Comerciante
― La Rammé – Espadachin
― Um pobre
― Comitiva de Don Juan
― Comitiva dos irmãos Don Carlos e Don Alonso

Resumo da narrativa: Don Juan, depois de seduzir e prometer casamento à bela Elvira, a abandona e foge. Atrás dele vão os dois irmãos da donzela, prontos para lavar a honra da família. Na fuga, Don Juan e seu criado Leporello acabam vítimas de uma tempestade, indo parar numa ilha desconhecida. É ali que o incorrigível conquistador se envolve com mais duas beldades: as donzelas Mathurine [Marturina] e Charlotte [Carlota]. Leporelo, na ausência de Don Juan, intercede explicando às moças que o seu patrão “é um salafrário”, capaz de “casar com todas, com a humanidade inteira”.

Chega um cavaleiro e comunica a Don Juan que ele está sendo procurado por doze homens a cavalo. Ele despede-se rapidamente das mulheres como se estivesse falando a apenas uma, prometendo voltar para cumprir a palavra, após “resolver um assunto urgente”.

Acovardado, se disfarça de camponês e Leporelo de médico, e ambos vagueiam por uma floresta para se esconderem dos cavaleiros em seu encalço. A dupla pergunta o caminho a um medigo que os adverte da presença de assaltantes na região e pede uma esmola. Don Juan faz pouco do mendigo e no meio da zombaria a conversa é interrompida por uma cena em que um cavalheiro é atacado por três assaltantes. Don Juan decide intervir e com a sua chegada os três assaltantes fogem. O cavaleiro agredido agradece generosamente explicando que teria vindo com seu irmão e demais cavaleiros para vingar a honra de uma irmã “seduzida e raptada de um convento”.

Cinicamente Don Juan diz ao cavalheiro que conhece Don Juan e propõe auxiliá-lo na procura de tal malefeitor para que ele preste as devidas satisfações. Nesse interim aparece Don Alonso, irmão do cavalheiro atacado, e reconhece Don Juan. Quando todos estavam prestes a empreender o embate, Don Carlos, o cavalheiro salvo por Don Juan, pede magnanimidade e diz que defenderá seu salvador. Com isso consegue para Don Juan o adiamento de um dia no confronto.

Leporelo que havia se escondido ressurge do seu esconderijo e ambos entabulam nova conversa. Enquanto conversa, a dupla dá-se conta da existência próxima de de um mausoléu. Leporelo reconhece o túmulo do Comendador que havia sido morto por Don Juan, que fica muito interessado em conhecer o prédio. Leporelo tenta dessuadir o patrão de tal intento pois não parecia civilizado visitar uma pessoa que este havia matado.

Na visita se deparam com a estátua do Comendador e Don Juan, debochadamente, manda Leporelo convidá-la para jantar com ele. A estátua aceita para espanto de ambos que abandonam o local dissimuladamente para não parecerem covardes.

Já na sua residência recebe a visita de um fornecedor credor e habilmente o impede de entrar no assunto, despachando-o sem pagar a dívida.

Chega Don Luís, o pai de Don Juan que passa-lhe completa descompostura dizendo que a ternuna paterna havia esgotado os seus limítes: “Muito antes do que você imagina, saberei pôr um fim aos teus desregramentos, atraindo sobre tí a cólera do céu”.

O fidalgo recebe a inesperada visita de Dona Elvira, uma de suas incontáveis abandonadas, e suplica-lhe que se arrependa. Este tenta persuadí-la a pernoitar com a intenção de dar vasão as pequenas chamas de seus instintos que começaram a crepitar, mas esta recusa e vai embora.

Durante o jantar, batem à porta. Leporelo atende e retorna apavorado anunciando a presença da estátua do Comendador que convida Don Juan a cear com ela no dia seguinte. O fidalgo aceita e a Estátua parte recusando a tocha oferecida, alegando que “não precisa de luz quem é iluminado pelo céu”.

Já no quinto ato, Don Juan confessa hipocritamente ao pai que havia se convertido e pede ao pai que lhe indique uma pessoa que lhe sirva de guia para marchar seguro pela estrada que escolheu caminhar. O velho, comovido, dá graças aos Céus por ter sido atendido em sua preces, sem se dar conta que tudo não passava de hipocrisia do filho, cujas palavras saídas da boca não correspondiam às que estavam em seu cérebro. Tudo não passava de um “projeto político” para iludir os tolos.

Don Carlos encontra Don Juan e lhe pergunta se ele vai ou não casar com sua irmã Elvira. O libertino diz a Don Carlos que havia recebido diretamente do Céu o aviso para não fazê-lo. Leporelo, que ouviu a conversa, diz ao patrão que este novo estilo é “bem pior do que todos os outros”.

Na cena cinco do quinto ato aparece um espectro sob a forma de uma mulher velada e avisa a Don Juan que aquele é o “último instante para aproveitar a misericórdia divina”. Don Juan quer saber que está ali sob as vestes e, quando se aproxima, “o espectro transforma-se no tempo, com a foice na mão”. Don Juan puxa a espada e atravessa o espectro, que desaparece imediamente. Leporelo insiste em que ele se arrependa, mas o libertino está irredutível.

Don Juan sobrepõe o orgulho sobre qualquer arrependimento e prepara-se para partir, mas a Estátua o impede e lembra-lhe com comprimisso dele em jantar com ela. Don Juan aceita e a Estátua toma-lhe a mão e sob enorme espanto Don Juan vê-se consumido por um fogo invisível que o queima e sufoca. A terra se abre e traga-o para o abismo e enormes labaredas se levantam no lugar em que ele desapareceu.

Leporelo faz um retrospecto dos efeitos produzidos pelo patrão libertino que desaparecera e lastima pelo seu salário não recebido. Quem irá pagá-lo?

Comentários: José Monir Nasser relata que a história de Don Juan foi primeiramente contada por um padre espanhol, Tirso de Molina na peça “El burlador de Sevilha y convidado de piedra” ["O conquistador de Sevilha e o convidado de pedra"], escrita na Espanha entre 1629 e 1635. O teólogo, seguindo as disposições do Conselho de Trento, queria impressionar os fieis contando o destino implacável de um homem dissoluto e imoral incapaz de arrependimento sincero.

Surpreendentemente, o tema demonstrou grande fertilidade e, em torno dele, foram escritas dezenas de versões, sendo a de Molière, de 1665, provavelmente a mais importante e a mais conhecida. Mais de cem anos depois, o libretista italiano Lorenzo da Ponte escreveria uma versão operística da obra de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou o seu “Il dissoluto punito ossia Il Don Giovanni” [Libreto da ópera de Mozart] em 1787. Em 1821, Lord Byron também escreveria o poema épico “Don Juan”. Além deles, Corneille, E.T.A. Hoffamn, Pushkin, Glück e Richard Strauss, entre outros exploram o tema.

Portanto, a história sobre Don Juan foi contada muitas vezes por autores diferentes. O nome às vezes é modernamente e figurativamente usado como um sinônimo para sedutor (ou "playboy").

As visões acerca da lenda variam de acordo com as opiniões sobre o caráter de Don Juan, apresentado dentro de duas perspectivas básicas. De acordo com uns, era um mulherengo barato, concupiscente, cruel sedutor que buscava apenas a conquista e o sexo. Outros, porém, pretendem que ele efetivamente amava as mulheres que conquistava, e que era verdadeiramente capaz de encontrar a beleza interior da mulher. As versões primitivas da lenda sempre o retratam como no primeiro caso. Todavia, essa é uma visão muito estreita da obra. Ela quer nos contar muito mais que isso.

Interpretação da obra: Don Juan é a história de um libertino. Parafraseando o professor Monir, a primeira coisa a fazer para compreender o sentido da obra é não interpretar Don Juan do ponto de vista moderno, ou seja, do ponto de vista meramente sexual. Como o mundo moderno é um mundo associado a sexo, tendo neste ato sua atividade predominante, as pessoas acham que essa é a missão que o mundo lhes dá.

A segunda coisa a fazer é estabelecer o perfil de Don Juan e suas transgressões:

― Mata o Comendador, pai de Anna. (a figura do pai sempre simboliza o espírito)
― Seduz Dona Anna.
― Profana a sacralidade do Convento, seduzindo a freira Elvira.
― Profana a inocência, seduzindo as camponesas Carlota e Marturina.
― Profana a humildade e chantageia um pobre.
― Salva a vida de Don Carlos. O único ato nobre.
― Profana a honestidade, embromando o credor.
― Zomba do Céu quando Elvira aparece transformada.
― Zomba do Espírito quando destrata o pai após ser repreendido por ele.
― Expulsa o cobrador.
― Não se acovarda diante da Estátua do Comendador.

Assim, Don Juan, do começo ao fim da história só pratica atos maus, exceto quando salva a vida de Don Carlos, sendo o seu único ato nobre. É preciso considerar o valor desse ato na história toda: “salvar a vida”.

Don Juan recusa todos os valores transcendentes, mas ele não é ateu porque em nenhum momento diz que Deus não existe. Na verdade, ele é um rebelde metafísico que quer viver sua vida loucamente porque acha que, fazendo o que faz, será mais homem do que em outras circunstâncias. É a atitude do super-homem de Nietzsche.

Esse modo de proceder faz de Don Juan uma personagem nietzscheiana, desprovida de valores transcendentes, que faz tudo ao contrário do que mandam os valores morais e espirituais; que faz as coisas do jeito dele, independentemente das questões externas. É o homem de natureza prometeica nietzscheiana que julga ter a capacidade e autoridade sobre o próprio destino.

Don Juan tem consciência moral, representada por Leporelo que está ao lado dele o tempo todo dizendo a ele as coisas que estão erradas, mas ele quer desafiar a moralidade e tenta criar o homem prometeico – Leporelo é o duplo de Don Juan, uma espécie de consciência moral deste.
Consciência moral é aquela voz que diz para você que você está fazendo errado. Se você não ouve essa voz é um problema grave: ou você é santo ou então precisa urgentemente receber um tratamento de humanização. Se você não ouve essa voz, significa a perda da consciência moral. Não há nada mais desumanizante do que a perda da consciência moral.

Embora Don Juan tenha desafiado a moralidade o tempo todo, ele praticou um ato bom ao salvar a vida de Don Carlos. Este ato de bravura salvou a sua própria vida, pois todas as vezes que se praticam atos bons, o mundo responde positivamente. Foi o que aconteceu com Don Juan, vez que, em seguida Don Alonso o reconhece e se prepara para matá-lo, mas Don Carlos impede, concedendo-lhe mais um dia para enfrentarem-se em duelo.

A queda de Don Juan se dá pela densidade. Ele se torna tão pesado que a terra o traga. Essa densidade é representada pela Estátua de pedra que simboliza a matéria e destrói Don Juan. Portanto, é a densidade da matéria que destrói Don Juan. O contrário acontece com Dona Elvira. Enquanto Don Juan vai caindo, Dona Elvira vai se elevando, aumentando assim o distanciamento entre ambos.

Don Juan sabe que está fazendo errado, ele tem consciência moral, mas resolve desafiar essa autoridade para produzir uma existência humana independente de qualquer convivência superior. Ele faz isso com toda a consciência do mundo. Esta é a idéia central da obra de Molière.

Conclusão: A condição humana exige subordinação ao Céu. Quem não aceita esta condição cai na rebelião metafísica cujo destino é ser tragado para as profundezas do abismo onde reinam as trevas.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MADAME BOVARY

Título original: Madame Bovary
Autor: Gustave Flaubert (1821-1880)
Tradução: Araújo Nabuco
Editora: Circulo do Livro
Assunto: Romance
Edição: 2ª
Ano: 1975
Páginas: 261

Sinopse: O romance conta a história de Emma Rouault, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles Bovary, um médico interiorano tão apaixonado pela esposa quanto entediante. Nem mesmo o nasci
mento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa.

Resumo da narrativa: Charles Bovary – a história começa com sua entrada na escola e com a hilaridade que provocou nos outros alunos seu chapéu ridículo – é rapaz estúpido, insensível de grande inabilidade; também incompetente e realizará operações desastrosas como no pé do aleijado do pobre Hippolyte. Emma, por sua vez, é uma mocinha sonhadora, romântica, acreditando no que suas leituras medíocres lhe contam sobre a felicidade pelo amor. Toda enganada. Emma casa com Charles Bovary, para fugir da estreiteza da casa paterna. A decepção é inevitável. Um baile no castelo do vizinho aristocrático reaviva os sonhos românticos, a que tão pouco corresponde o marido. Frontalmente, cai Emma na aventura adulterosa com Rodolphe, espécie da Don Juan rural, que a abandonará em breve. Agora, as paixões de Emma estão despertas. O jovem Léon, empregado de um advogado, é sua próxima vitima. Ela perde totalmente o equilíbrio. Toma emprestado dinheiro, mais do que poderá jamais devolver. Desespero. Suicídio. Depois da morte, Charles Bovary descobre a verdade. Fica perturbado sem saber o que pensar. E é só. Eis tudo. Uma história triste e, em parte, sórdida. Mas, atenção! Essa história não é simples como parece.

O romance se chama Madame Bovary. O título indica que Emma Bovary é sua “heroína”. Mas será realmente assim? A narração começa e termina com o estúpido Charles Bovary; e nele desempenham grande papel o estúpido don-juanismo de Rodolphe e a estúpida paixão de Léon, a estupidez do farisaico padre Boumisien e todo esse pequeno ambiente de província, sem saída para Emma e sem saída para ninguém e pode-se afirmar: a verdadeira personagem do romance é a Estupidez humana.

Análise de excertos da obra: A primeira página do livro descreve minuciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como “enfadonha” e “inútil”. Ela pode ser enfadonha – como o próprio Charles Bovary – mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o simbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á simbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné “grego” que usa o farmacêutico Homais e o chapeu de castor do padre Boumisien e o chapéu “elegante” (mas já démodê) do don juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyssard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mais visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance os “Comícios agrícolas”, a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e o sussurro do vento nas árvores – todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance inteiro.

Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na Catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais – é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.

Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovary é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual da arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é fácil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se, como um monge no deserto, para elaborar uma obra dessas.

Comentários: Dois pré-requisitos são necessários para iniciar a leitura da obra de Gustave Flaubert: paciência e envolvimento. A linguagem extremamente trabalhada e descritiva pode sufocar os mais afoitos, já que os fatos acontecem lentamente, sendo interrompidos por bucólicas descrições da paisagem, do tempo, do vestido de Emma, suas rendas, seus caprichos e seu marido apaixonado e tedioso. Afinal, é um romance comprometido com a realidade e há momentos em que é até possível sentir o cheiro do ambiente descrito. Os detalhes possibilitariam a mesma elaboração de uma cena a muitos leitores.

Emma é uma mulher que nunca sabe o que quer. Que quer tudo e que não valoriza quase nada do que tem. Uma problemática bem elaborada pelo autor, Gustave Flaubert, que demorou cinco anos para concluir a obra e que foi acusado de ofensa à moral e à religião por abordar o adultério, o desejo e os caprichos femininos dentro da rotina do casamento entre uma bela donzela e um médico emergente.

Em diversos momentos o autor afirma e reafirma em sua narrativa o quão entediante é Charles, marido de Emma. Mas em uma leitura mais crítica, é intensa a força que Flaubert coloca no texto para perpetuar visão que Emma tem de Charles. Na realidade é ela que, com sua volatilidade, está sempre enfastiada de tudo e todos a sua volta. A rotina a corrói. O dia-a-dia não lhe pertence. Seus desejos enxergam a realidade como algo ínfimo e inferior demais para ser vivido. Ela sonha com príncipes, riquezas e bailes.

Os amantes trazem-lhe a vida e o brilho de volta, brilho que ela parece nunca ter tido, já que, quando solteira, passava a própria existência de forma modesta no campo com seu pai viúvo. A troca de amores de Emma poderia também ser comparada ao que acontece hoje com algumas jovens mulheres que mudam de paixões ao sabor da vontade.

O tédio de Emma vai além da falta de graça e vida de seu marido, porque quase nada a satisfaz por muito tempo. Vaidosa, cheia de vontades, uma verdadeira mulher de fases, que ora alterna o ímpeto da paixão pela vida e pelos amantes, ora entra em um estado de letargia desconsolado com a existência. Nem o nascimento de sua filha faz com que o amor pleno tome conta de Madame Bovary, que procura incessantemente as paixões nas páginas dos romances os quais chegou a ser proibida de ler por causa dos conselhos da sogra, que pouco a estimava.

As traições de Emma parecem ser percebidas por todos da pequena comunidade. Diferente das mulheres prendadas e dedicadas ao marido, ela é uma verdadeira consumista que afunda Charles em dívidas homéricas e irreversíveis. Dinheiro, luxo, sexo, chantagem. Emma buscava amantes que pudessem levá-la aonde ela quisesse, já que sozinha ela não poderia ir. Ela queria ser quem não era fenômeno hoje designado pela psiquiatria como Bovarismo.

A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre como o mais perfeito, o mais inexorável “romance de adultério”, com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal de Sena, em 1857, achou censuráveis. Como estão distantes do verdadeiro sentido da obra! Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse “inútil” o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar (sic). E que temos nós, hoje, com acontecimentos quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840?

Os ambientes sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, a obra de Flaubert tem o valor de grande, exaustivo e exato romance histórico. Mas as conseqüências continuam e com elas os tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres ainda são assim; e assim continuarão por muito tempo.

Sobre o autor: Gustave Flaubert (Ruão, França, 12 de dezembro de 1821 – Croisset, França, 8 de maio de 1880) foi um escritor francês. Prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, seu senso de realidade, sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances, tais como “Madame Bovary” (1857), “L'Éducation sentimentale” (1869), “Salammbô” (1862) e contos, tal como “Trois contes” (1877).

Madame Bovary é considerado o ápice da narrativa longa do século XIX - o chamado século de ouro do romance. Flaubert, o esteta, aquele que buscava o mot juste (a palavra exata) e burilava os seus textos por anos a fio, imbuiu-se da consciência e da sensibilidade da sua personagem. Alcançou com a irretocável prosa de Madame Bovary, um dos mais altos graus de penetração e análise psicológica da literatura universal.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

Título original: Wilhelm MeisterLejrjahre
Autor: Johann Wolfgand von Goethe (1749-1832)
Tradução: Nicolino Simone Neto
Editora: 34
Assunto: Romance
Edição: 1ª
Ano: 2006
Páginas: 608

Sinopse: Goethe narra as aventuras do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas de sua família, desejosa de que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro. Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e diversas ligações amorosas, Meister se vê às voltas com os mais diferentes extratos sociais, cumprindo uma trajetória que desenha o painel da sociedade de seu tempo.

Resumo da narrativa: Com uma habilidade fora do comum para desenhar de forma precisa os movimentos mais sutis e complexos da alma, Goethe narra a trajetória do jovem Wilhelm Meister, filho de um casal da burguesia alemã, que, contrariando as expectativas da família, desejosa que ele faça carreira no comércio, decide juntar-se a uma trupe de comediantes, ingressando assim no mundo do teatro.

Em meio a uma seqüência infindável de encontros, peripécias e experiência amorosas, Wilhelm Meister se vê às voltas com as mais diferentes esferas sociais, que se sobrepõem e encontram eco em seu espírito – o círculo burguês de seus primeiros anos, a ciranda dos atores e atrizes, as cenas da vida no castelo e na corte, as reuniões secretas de sábios – , esferas que não deixam de constituir, cada uma delas, uma forma específica de representação teatral.

O teatro desempenha, dentro da obra, um papel decisivo na formação do herói, pelo menos até o Livro V. Já no livro VI, peça praticamente autônoma dentro do romance e na qual se convenciou ver o fim de sua primeira parte, têm lugar as “Confissões de uma bela alma”. Esta passagem retrata a educação de uma figura feminina – processo que se desenvolve em isolamento, uma vez que a personagem não deseja sofrer nenhuma interferência externa em sua formação – e funciona, na economia da obra, como um contraponto exato da figura de Wilhelm Meister, sempre pronto e mesmo ansioso por absorver tudo que o mundo lhe oferece.

Já nos livros VII e VIII, sobretudo com a entrada em cena da Sociedade da Torre, a narrativa sofre uma reviravolta e a perspectiva se desloca da formação individual para a formação coletiva, o que incita o leitor a ver com outros olhos o caminho trilhado até o momento – processo que encontra correspondência nas transformações por que passa então o próprio Wilhelm Meister, agora desinteressado da vida artística e disposto a tornar-se um homem preparado para a realidade, ou seja, para o mundo.

Comentários: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em duas partes (em 1795 e 1796), deu origem a um novo gênero literário: o romance de formação (Bildungsroman), a mais importante contribuição alemã à literatura mundial.

Romance enciclopédico, que sintetisa e supera o livro de viagens e de aventuras, o romance de amor, o romance social e o de tese estético-filosófica, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister não só configuram a totalidade social de uma época cmo nela situam com perfeição o ápice de uma concepção humanista da sociedade.

Goethe constrói seu livro em torno da questão da formação do indivíduo em condições históricas concretas, vez que a realização do homem não depende apenas da harmonia de sua vida interior, mas do modo como este se insere no contexto social. Pois é exatamente esta rara aliança entre valores individuais e coletivos que constitui o cerne deste livro que reúne com perfeição, a prosa das relações sociais e a poesia do coração.

Sobre o autor: Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt am Main, 28 de Agosto de 1749 — Weimar, 22 de Março de 1832) foi um escritor alemão, além de cientista e filósofo. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Juntamente com Schiller foi um dos líderes do movimento literário romântico alemão Sturm und Drang.

Excertos do livro:

“Da moral não se podia tirar nenhum consolo. Não podiam bastar-me a severidade pela qual ela pretende dominar nossa inclinação [a inclinação do ser humano é para o mal], nem a complacência com que ela aspira a transformar em virtudes nossas tendências. As noções fundamentais que me infundiram a convivência com meu amigo invisível [está falando de Deus] já tinham para mim um valor muito mais decisivo.”

“As perguntas: ‘Que significa isso?”, “Como se dá tal fato?”, trabalhavam em mim sem cessar noite e dia. Até que, por fim, acreditei avistar num relampejar que, aquilo que eu procurava, devia ser buscado na encarnação do Verbo eterno [Deus], que tudo, inclusive a nós, criou. [Goethe defende aqui a idéia da Criação e não da Evolução]. Que outrora o primordial se tenha colocado como habitante nas profundezas em que mergulhamos, as quais ele vê e abarca, sendo penetrado por nossa condição de grau em grau, desde a concepção e o nascimento até o túmulo [Goethe defende que a vida se dá a partir da concepção; e não o que os abortistas psicopatas advogam para deleite de seus instintos assassinos], e que, por estranho desvio, ele remonta às alturas luminosas, onde também nós haveremos de habitar para ser felizes: eis o que me foi revelado, como a uma distância crepuscular.” [Goethe está dizendo que a felicidade deve ser buscada em Deus e não neste mundo].

“Oh, por que, para falar de tais coisas, temos de empregar imagens que só anunciam situações exteriores? Onde estão ante Ele algo de alto ou de profundo, algo de escuro ou de claro? Só nós temos um alto e um baixo, um dia e uma noite. E é precisamente por isso que Ele se torna semelhante a nós, pois, caso contrário, não poderíamos ter parte alguma nele.”

“Mas como podemos tomar parte nesse inestimável benefício? ‘Pela fé’, responde-nos a Escritura. Mas o que é a fé? Ter por verdadeira a narrativa de um acontecimento, de que pode valer-me? É necessário que eu possa apropriar-me de seus efeitos, de suas conseqüências. Essa fé de apropriação tem de ser um estado próprio de ânimo, desacostumado para o homem natural.” [Goethe está falando de uma das três virtudes teologais: , Esperança e Caridade, únicas que conduzem a Deus]

“Pois bem, ó Onipotente, concedei-me então a fé”, supliquei um dia com o coração totalmente oprimido. Apoiei-me a uma pequena mesa, diante da qual estava sentada, e ocultei entre as mãos meu rosto coberto de lágrimas. Eu estava ali na situação em que se deve estar para que Deus escute as nossas preces, situação essa na qual raramente estamos.” [Que maravilha de passagem!]

“Sim, quem poderia descrever o que eu sentia então? Um impulso transportava minha alma para a cruz onde Jesus um dia morreu; [ ... ] Assim se aproximava minha alma Daquele que se fez homem e que morreu na cruz, e nesse instante eu soube o que era fé.” [pp. 380-381]