sexta-feira, 22 de outubro de 2010

MOLL FLANDERS

Título original: The Fortunes and Misfortunes of Moll Flanders
Autor: Daniel Defoe (1660-1731)
Tradução: Antônio Alves Cury
Editora: Abril Cultural
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 1971
Páginas: 362

Sinopse: Moll Flanders é a autobiografia de uma mulher “corrompida desde a juventude, ou antes, sendo ela mesma o rebento do vicio e da devassidão, aparece para relatar suas práticas viciosas e até descer às particularidades e circunstâncias que primeiro a tornaram perversa e à escala do crime por ela percorrida em três vintenas de anos”.

Neste romance, escrito em 1722, Daniel Defoe conta com mestria e riqueza de detalhes, a história dessa mulher que foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão), foi deportada oito anos na Virginia e que, enfim, fez fortuna, viveu muito honestamente e morreu arrependida.

Resumo da narrativa: A mãe de Moll é condenada à morte por roubo e está presa na penetenciária de Newgate, mas é beneficiada pelo costume conhecido por "pleading her belly", dirigido às prisioneiras grávidas. Moll Flanders (que não é seu nome de nascimento, como ela enfatiza, mas nunca revela qual é) nasce na prisão sendo entregue em seguida a parentes que acabam doando-a para uns ciganos com os quais convive durante três anos. A mãe de Moll é deportada para a América.

Após três anos, Moll é abandonada pelos ciganos numa cidade onde é recolhida pelo poder público que a entrega a uma mãe social, uma senhora empobrecida que cuida dela, paga pelo Estado. Aos oito anos às autoridades acham que Moll deve trabalhar e parar de ser sustentada pelo Estado.

Moll se rebela contra aquela idéia porque alimenta o sonho de ser uma “dama de qualidade”, inpirada no exemplo de uma vizinha que é prostituta. Este é o modelo que Moll escolhe para representar a “dama de qualidade” dos seus sonhos, pois ela não tem a minima idéia do que seja uma prostituta.

Quando Moll completa quatorze anos, a mãe social morre e ela é adotada por uma família rica e assim passa a infância e adolescência numa casa aristocrata, como serva. Muito bonita, ela é causa de disputa de dois irmãos da família. O mais velho a seduz com a promessa de casamento e passam a agir como se fossem casados ("act like they were married"), na cama, mas depois ele a convence a se casar com o irmão mais jovem que também a pede em casamento. Ela aceita, embora relutante, mas o sonho de ser uma “dama de qualidade”, fala mais alto. O matrimônio dura cinco anos, ao fim dos quais o seu marido, Robin, morre de causa que nós não sabemos. A família lhe oferece mil e duzentas libras, um dinheiro considerável que possibilita uma pessoa a viver pelo resto da vida, sem trabalhar. Ela aceita e deixa seus filhos aos cuidados dos sogros e começa a se passar por uma viúva rica para atrair homens com quem pudesse se casar e alcançar a segurança financeira.

A primeira vez que ela consegue seu intento, seu marido vai à falência e foge da Inglaterra. Da segunda vez, ela é levada a Virginia (nos EUA) por um bom homem que a apresenta a sua mãe. Após dois filhos, Moll descobre que sua sogra é na verdade sua mãe biológica, o que torna seu marido seu meio-irmão. Ela se separa e volta para a Inglaterra, deixando suas duas crianças para trás. Ela vai morar então em Bath, Somerset, e procura por um novo marido.

Ela se envolve com um homem casado, cuja esposa está confinada por insanidade. Mantendo amizade e desenvolvendo um tipo de amor platônico, os dois acabam tendo três filhos, dos quais apenas um sobreviveu. Mas o seu amante não fica com ela e acaba voltando para a esposa, antes porém, oferecendo-lhe um bom dinheiro.

Moll, agora com 42 anos de idade, conhece então um banqueiro casado e adúltero. Usando do dinheiro dele enquanto espera que se divorcie, Moll na verdade quer atrair outro cavalheiro para casar. Ela então conhece e se casa com um suposto homem rico. Ao contar para ele que na verdade não tinha dinheiro, o seu marido se revela também como aventureiro, que havia contraido o matrimônio pois queria se apossar do seu rico dote, e a abandona, deixando-a grávida novamente. Moll deixa o banqueiro acreditar que ela continua disponível, esperando que seu marido retorne.

O filho de Moll nasce quando a esposa do banqueiro comete sucídio, logo depois que ele lhe pedira o divórcio. Moll se casa com o banqueiro. O banqueiro morre em ruina financeira após cinco anos e dois filhos.

Sem esperanças, Moll se torna uma ladra e acaba sendo presa indo para a prisão de Newgate, como sua mãe. Na prisão ela reencontra um dos seus maridos. E os dois são condenados ao desterro, enviados para as colônias da América. O casal é levado a uma fazenda na Virgínia, onde vivem por muitos anos. Aos 60 anos, ela retorna à Inglaterra e seu marido. Com 68 anos, continua na América por algum tempo para organizar os negócios “Ele virá também para a Inglaterra, onde decidimos passar o resto de nossos dias, numa sincera penitência pela má vida que vivemos”.


Interpretação da obra: A obra não é um tratado sobre o dilema moral, mas sim o tratado das possibilidades de um projeto de vida humana. Portanto, o relato da vida de Moll Flanders é um modelo de vida real e concreto possível de acontecer com qualquer ser humano.

Analisemos, primeiramente, as principais características de Moll Flanders:

a) ela não é perseguida pelo destino.
b) de alguma maneira ela tem sorte.
c) ela não é uma pessoa inocente, mas também não é uma pessoa maligna.
d) ela é inconseqüente.
e) ela é oportunista.
f) ela é simplória.
g) ela tem uma irresponsabilidade diante da vida.
h) ela não possui nenhuma consciência moral.
i) ela tem pouco poder em relação a vida (seus meios de ação são muito pequenos).
j) ela tem como ambição, apenas, ser uma grande dama (é o que ela tenta fazer a vida inteira: ser uma grande dama).


Para compreender melhor a obra Moll Flanders, é preciso antes compreender o modelo do poder da personagem, descrito a seguir:


Modelo do Poder da Personagem que está no livro A POÉTICA de Aristóteles e sistematizado por Northrop Frye no livro chamado ANATOMIA DA CRÍTICA.

Aristóteles, ao fazer a análise do teatro grego, dizia que as personagens teatrais (do teatro trágico grego, pois ele não fala da comédia) têm uma hierarquia de poderes. Trata-se de níveis de poder do herói.

As cinco hierarquias de poder do herói são:

O primeiro nível é o divino, onde a personagem é mais poderosa. O que é o nível de poder divino? É o nível onde está Deus propriamente dito. Neste nível a personagem pode fazer o que bem entender, tem total autoridade sobre a sua vida, tem total capacidade de decisão e os poderes do herói são plenos.

O segundo nível de poder da personagem é aquela personagem que embora não seja Deus, tem uma ligação com Deus. Está de alguma maneira inspirado por Deus ao ponto de poder fazer coisas que parecem coisas divinas, como por exemplo, fazem os profetas. Northrop Frye chama de herói mítico este tipo de herói. Embora seja humano, ele consegue, de vez em quando, fazer coisas que só os deuses são capazes de fazer. Por exemplo: Moisés consegue separar as águas do Mar Vermelho. Esses poderes são temporários, ocasionais e circunstanciais.

O terceiro nível de poder é o imitativo alto. O que é imitativo alto? É aquela personagem que é humana, mas que é capaz de fazer coisas notáveis, mas todas as coisas notáveis que ela faz, são sempre coisas notáveis humanas. O herói deste tipo é o ser humano excepcional. Exemplo: um herói de guerra, um grande poeta, um grande artista. Alguém que é muito grande em relação a média dos outros seres humanos, mas a sua demonstração de grandeza nunca é acima daquilo que o ser humano é capaz de fazer. É o ser humano superior.

O quarto nível de poder é o imitativo baixo. É o sujeito comum, que não tem nenhuma habilidade extraordinária e sua capacidade de ação é limitada. Se o mundo fosse uma peça de teatro, a maior parte das pessoas seriam deste tipo.

O quinto nível é o tipo irônico inferior. De todas as personagens é o mais fraco. Está abaixo da capacidade dos outros. É irônica porque ou é deficiente, ou porque é muito pobre, ou porque é prisioneiro de alguém, ou porque é criança. Para as crianças todas as coisas da vida normal são absolutamente terríveis, assustadoras ao extremo, porque aquilo que parece a nós, adultos normais, uma besteira, para as crianças aparenta o maior dos terrores. Aquilo que nós chamamos de educação, é tirar a criança desse terror, é mostrar e ela como é que uma pessoa normal e outros tipos de personagens se comportariam naquela situação.

Dentro do quadro apresentado, Moll Flanders é uma personagem irônica. Ela não tem a viabilidade de lidar com o mundo de um modo que a favoreça. Está nas mãos das decisões que o mundo fará por ela. Ela está nas mãos das circunstâncias porque é incapaz de controlá-las e muito menos entendê-las.

Não é preciso ser como Moll Flanders para ser uma personagem irônica. Sócrates, por exemplo, no julgamento era uma personagem irônica. Jesus Cristo, na condição que estava na sua condenação, era uma personagem irônica relativamente àquela situação, ou seja, numa condição absoluta de poder fazer alguma coisa.

Apesar disso tudo, ela não é uma personagem perseguida pelo destino no sentido negativo da palavra. No momento em que ela mais irônica, no momento em que ela é ainda pequena, mesmo assim ela não recebe um tratamento cruel. De certa maneira as coisas dão certo para ela. De alguma maneira ela tem sorte, porque todas as coisas boas que acontecem com ela independem de sua ação direta. Portanto, ela é uma criatura completamente nas mãos do destino.

O destino funciona de um modo misterioso e o modo como o destino funciona, nós não entendemos. Talvez a gente entenda no dia do juízo final, nós não sabemos. Talvez um belo dia a gente entenda, mas de modo geral ele é completamente obscuro. Por que aconteceu com aquela pessoa, naquele dia, daquele jeito? Ninguém sabe. Daí a sensação que se tem, quase sempre, das tremendas injustiças da vida, e essas sensações de injustiças na vida naturalmente carregam as pessoas para uma rebelião contra Deus.

Como é que pode Deus fazer uma coisas dessas? Como é que pode um ônibus cheio de criancinhas cair numa ribanceira e morrerem todas? O que é que elas fizeram de mal para terem esse destino?

Como nós não entendemos o que foi que aconteceu, porque nós não sabemos como é esse mecanismo que é secreto, nossa primeira tentativa é julgar que ou Deus é mau ou Deus não existe na verdade.

O sentido simbólico que o Daniel Defoe quer dar a Moll Flanders é que ela é vitima dos jogos da providência que a vida traz a ela, todos eles preparatórios para a sua conversão que acontece na prisão após ter sido condenada à morte. É neste momento que ela faz a descoberta de Deus. É isso que o autor quer nos dizer sobre a Moll Flanders como primeira interpretação.

No entanto, o que essa história tem de mais importante é entendermos profundamente as ações humanas qualquer que seja o plano ou qualquer que seja o tipo de ação que alguém faz na vida, que tudo depende, antes de qualquer coisa e como primeira condição, de uma coisa chamada “Horizonte de Consciência”.

“Horizonte de Consciência” é o quanto você consegue ver de sua própria vida. Neste horizonte de consciência há dois extremos: Um dos extremos caracteriza aquelas pessoas que tem um horizonte de consciência muito maior que a sua própria vida que está vivendo naquele momento. É aquele sujeito que está vendo o mundo numa perspectiva mais ampla do que a de seus contemporâneos. Essa pessoa tende a entrar em conflito com o mundo em que ela vive. Essa pessoa é uma espécie de “Herói Conflitivo”, porque ele está vendo coisas que os outros não vêem e irá exigir coisas que parecem aos outros, coisas sem sentido e sem cabimento. É o caso daquelas pessoas que tem um projeto político, civilizatório (seja bom ou mau, tanto faz). Como ela está olhando de uma perspectiva mais ampla, a tendência dessa pessoa é entrar em conflito com o mundo que ele vive.

HERÓI CONFLITIVO <== Horizonte de Consciência ==> HERÓI INERME

No extremo oposto, está uma pessoa exatamente como a Moll Flanders que tem um horizonte de consciência absolutamente pequeno, tanto é que ela não tem a menor idéia, no início, de como funciona o mundo em volta dela.

A esse extremo oposto ao “Herói Conflitivo”, dá-se o nome de “Herói Inerme” que é aquela personagem que não tem nenhum meio de defesa e que, portanto, não entende nada do mundo que está em volta.

Se, por um lado, o herói conflitivo é aquele sujeito que entende tudo o que os outros não entendem, o herói inerme, por outro lado, é aquele sujeito que não entende nada o que os outros entendem.

O militante político de longo prazo é assim. No processo político há aqueles sujeitos que acham que entendem tudo o que estão fazendo e que montam um plano para tomar o poder em cinqüenta anos, e que tomam decisões de curto prazo que ninguém entende nada. E quem é que executa essas ações de curto prazo? São aqueles que não entendem absolutamente nada do que está acontecendo em longo prazo e que, portanto, são naturalmente bons executores de ações concretas e práticas.

Há, portanto uma diferença de horizonte de consciência enorme entre as personagens literárias.
Estes são, portanto, os dois extremos de possibilidades do Horizonte de Consciência.

E a Moll Flanders o que é? A Moll Flanders se enquadra como Herói Inerme, pois o seu Horizonte de Consciência é curto. Ela não tem uma perspectiva de longo prazo, ela está apenas reagindo às coisas que o dia-a-dia vem trazendo.

É preciso deixar muito claro que não se está dizendo que só quem tem o horizonte de consciência longo, terá sucesso. Pode dar certo, mas também pode dar muito errado. O mesmo pode acontecer com quem tem o horizonte de consciência curto. Pode dar certo ou pode dar errado.

Quem, por exemplo, dá errado? O Julien Sorel, do Vermelho e o Negro; o Raskolnikov, do Crime e Castigo. Estes dois têm o horizonte longo, mas mesmo assim quebram a cara. E quem dá certo? A Moll Flanders que tem o horizonte de consciência curto é no final dá certo.

O que se quer dizer que existem possibilidades de dar certo ou dar errado, portanto, não há garantias dos resultados.

O sujeito que tem um horizonte de consciência longo, está sempre desafiando o destino. Quem tem o horizonte de consciência curto, não desafia o destino nunca. Deixa-se ser levado pela sorte.
Nunca subestimar o destino, pois o destino será sempre o fator central que irá produzir determinados efeitos na vida da gente. E esses efeitos são imprevisíveis.

Uma vez que você definiu qual é o seu horizonte de consciência, vem a segunda parte do plano da ação humana, ou seja, aquilo que você quer ser, a sua ambição, não no sentido negativo, mas no sentido daquilo que você deseja ser. Portanto, aquilo que você deseja ser, a sua ambição, depende fundamentalmente do seu plano de consciência.

É muito difícil falar sobre isso aqui no Brasil, porque noventa e nove por cento das pessoas que você possa conhecer, tem como plano de vida, fundamentalmente, arrumar dinheiro. Aquilo que você quer ser é alguma coisa econômica.

Quando você acha que ser alguma coisa econômica é o objetivo da sua vida, você está invertendo as prioridades da existência e está casando com os meios, porque a sobrevivência econômica não é preceito de vida, é apenas um meio para você ser alguma coisa.

O que as pessoas aqui no Brasil pensam, é o objetivo da vida real é arrumar um emprego em algum lugar, ter uma profissão. Quando você pergunta a alguém o que ele quer ser, um médico, um engenheiro, ele está pensando basicamente na sua situação econômica, ele quer ser alguma coisa econômica.

Por esse motivo, a maior fonte de frustração humana aqui no Brasil é o fracasso econômico. Essa é a fonte de frustração humana maior de todas, porque sendo fracassado economicamente e como o sucesso econômico era o objetivo central de sua vida, então você não pra nada, quando na verdade ninguém tem a preocupação com o fracasso ontológico.

Todos os objetivos de vida que são de natureza não-monetária, portanto reais (ser o maior escritor, ser o maior poeta, ser o maior pintor), eles são todos depreciados e acabam não fazendo nenhuma diferença porque eles são automaticamente substituídos por objetivos exclusivamente econômicos.

Esse é um problema terrível no Brasil, porque o país não consegue entender que o que faz com que a sociedade se desenvolva é a quantidade de coisas que nós queremos SER e não o que nós gostaríamos de TER. Não há nenhum problema em Ter, não é essa idéia; o que se quer dizer é que no Brasil não se consegue conceber objetivos humanos que não sejam exclusivamente econômicos, pois somos uma sociedade exclusivamente voltada para questões econômicas.
Quando se estabelece como objetivo de vida arrumar um emprego, preferencialmente na função pública, isso passa a ser um problema terrível porque por esse critério acaba virando todo mundo funcionário público.

No fundo o que Moll Flanders quer é arrumar um marido. Isso não é errado em si próprio, mas o que acontece é que não dá para você agir assim como se o país todo fosse Moll Flanders, pois não acontece nada, o pais não existe que só tem gente assim.

O problema no Brasil é que aqueles que não têm objetivos econômicos têm objetivos revolucionários. E aí é pior ainda. É melhor ser um país de Moll Flanders, do que um país de José Dirceu, que quer implantar aqui o socialismo, a sociedade perfeita sem classes e outras psicoses.
Um militante político tem na cabeça dele um plano para o Brasil nos próximos trezentos anos, ou seja, esse horizonte de consciência que ele tem do país é enormemente maior do que daqueles que pagam impostos corretamente.

Aquele sujeito que só está querendo o dinheirinho dele, voltar pra casa bonzinho, que paga o imposto direitinho, está financiando o projeto do outro que quer produzir essas revoluções na terra, que quer produzir mundos novos. Portanto, o horizonte de consciência longo, não implica, necessariamente, numa coisa boa, numa coisa saudável. Pode implicar exatamente no contrário.

Seguindo a equação:

Do horizonte de consciência, nasce aquilo que você quer ser.

A equação funciona assim:

A partir do meu horizonte de consciência, eu estabeleço um determinado grau de ambição. Esse grau de ambição será maior ou menor, conforme o grau de consciência que eu tenho. Mas esse grau de ambição, por outro lado, ele precisa de meios para ser implementado. E esses meios para sua implementação depende da adequação e dos meios que eu tenho e o tamanho da minha ambição.

Se a Moll Flanders quisesse ser rainha da Inglaterra, ela não teria sucesso algum, pois os meios dela não davam para isso. No entanto, porque ela acaba dando certo no final? Porque ela tem os meios para conseguir aquilo que ela desejava que era a ambição de ser uma grande dama (dama de qualidade). Ser uma grande dama era possível para alguém como a Moll Flanders. Ela era bonita, educada, não era uma pessoa desagradável, tinha certa simpatia, era uma pessoa desejável. Havia uma adequação entre os seus meios e a sua ambição.

A ambição da Moll Flanders não era ser uma pessoa afetiva (tanto que ela abandona todos os seus filhos). Sua ambição, de verdade, era ser uma grande dama. É uma ambição infantil, simplória, primária porque no fundo ela está querendo resolver o problema da sua infância, mas é a única ambição real que ela tem. É essa ambição que ela tenta resolver pelo resto de sua vida. Como é que ela faz isso? Ela faz isso com um grau de consciência tão pequenininho que ela vai se deixando levar como alguém que é vitima inerme das circunstâncias. Ela nunca se opõe a nada. Ela vai sempre deixando acontecer porque ela imagina que a situação da vida vai ser resolvida desse jeito. Ela não tem visão de consciência para entender o que está acontecendo em volta dela. O que não quer dizer que ela não possa dar certo. No final deu certo, ela acabou ficando rica, uma grande dama. Ela volta para a Inglaterra com o seu projeto de vida resolvido, porque não dava para ser uma grande dama na roça (o que era a Virgínia na época).

O autor quer nos dar a idéia de que ela é salva pela sua recuperação moral, que acontece quando ela é presa e condenada à morte. O que fica estabelecido na obra é que Moll Flanders foi coerente com a sua ambição e que deu certo no final. A mãe dela que era uma picareta, também deu certo. Todavia, há que se considerar que poderia dar errado também, para ambas ou para uma delas.
O livro não é um tratado sobre o dilema moral, embora tenha havido horizontes de consciência moral. Uma das possibilidades é a moral, mas não é só essa, porque por princípio o horizonte de consciência se refere a tudo que se possa imaginar, todas as circunstâncias em volta de sua própria vida.

Após a prisão, o horizonte de consciência de Moll Flanders se alargou enormemente. Fato que pode ser atribuído a intervenção divina quando ela se converteu. Nessa hora ela entende o que aconteceu com ela até então.

Às vezes o modo de se alargar o grau de consciência é pelo modo mais trágico, tal como aconteceu com Moll Flanders.

O Brasil precisa fazer isso. Aumentar o horizonte de consciência. Essa é a coisa mais urgente a fazer para que possamos recuperar aí alguma possibilidade de sucesso do país. Se isso não for feito, o país ficará eternamente voltado para assuntos econômicos, uma espécie de desgraça que assola o país. A idéia de que o objetivo da vida é arrumar um emprego, ter um salário, ter alguma coisa na qual possa se sustentar, não é objetivo de vida nenhum. Isso é apenas um meio de vida, mas os meios de vida são úteis, mas são perigosos: o automóvel é um meio de transporte, mas pode também ser um risco.

Agora, se seu objetivo é, por exemplo, “melhorar a educação do povo brasileiro”, esse é um objetivo completamente isento de qualquer risco, porque este você controla cem por cento, embora você não tenha garantia de realizá-lo, porque o destino pode impedi-lo (você não sabe o que vai acontecer com você. Pode ter um AVC etc.). Por outro lado, você não controla o meio, porque o meio é coletivo; o seu veículo está onde há outros veículos circulando.

Os meios pelos quais é possível criar um horizonte maior de consciência são os seguintes:

1. Ler a maior quantidade possível de romances: (o romance descreve as possibilidades humanas; ele vai abrindo um leque de possibilidades onde justamente aumentamos a nossa capacidade de criar maior potencial de vida).

2. Nunca estabeleça um projeto de vida que seja do tamanho da sua vida: se você é uma pessoa que está ligada à educação, estabeleça como objetivo “Educar o Brasil”, “Educar o Paraná”, “Preservar o cristianismo”, “Recuperar a cultura brasileira” etc. e não dar aquela aula na quinta-feira à tarde e acabou.

3. Nunca perca a idéia de perguntar sempre qual é o sentido da vida: seu objetivo de vida não poder ser receber o salário no dia 30, senão você acaba sendo a Moll Flanders.

Conclusões:
Por mais que a vida humana possa ser de alguma maneira direcionada, controlada, conduzida por ações de maior ou menor consciência, não há dentro dessas ações nenhuma garantia de sucesso, porque paralelamente as ações que nos compete e nos pertence, existem as ações do destino.

Portanto, as nossas ações na vida não garantem o sucesso porque é impossível controlar o destino. O destino está o tempo todo funcionando de modo misterioso e incontrolável. Assim, não somos capazes de produzir o destino que queremos, mesmo que façamos tudo certo na vida, porque não há correspondência entre as ações e os resultados das ações. Nós controlamos e somos responsáveis pelas nossas ações pessoais, mas nós não controlamos o destino porque a providencia agirá por conta própria independente dos nossos desejos.

A vida humana é absolutamente incontrolável, nós nunca saberemos o que acontecerá conosco no próximo minuto. Portanto, é preciso desistir dessa idéia de que nós somos capazes de produzir o destino que nós queremos.

Essa idéia de que é possível produzir o próprio destino é muito comum nos livros de auto-ajuda. Essa conversa de auto-ajuda que você pode tudo que você quer e por ai afora. Nada mais ingênuo e picareta no mundo.

Às vezes nos rebelamos contra o destino porque ele parece ignorar as regras fundamentais do mérito e do demérito. Nós somos criados nessa idéia. Ela não está errada, mas é preciso considerar que há um outro mundo que age sobre nós. A idéia de que aqui se faz e aqui se paga, é uma idéia que tenta resumir a nossa vida humana concreta aqui neste mundo em que vivemos. Pode existir uma outra vida onde as coisas se realizam com justiça. Como nós não queremos admitir isso, nos comportamos de modo unilateral.

A realidade não é assim. A realidade é constituída de pequenos mistérios e grandes mistérios. Como os grandes mistérios estão, de alguma maneira invisíveis, nós nos recusamos de dar a eles uma noção de realidade e ficamos profundamente aborrecidos quando vemos um sujeito que procedeu muito mal e se deu muito bem. É preciso compreender, também, que não há uma ligação direta entre o sucesso desta vida e o seu comportamento moral. É possível que você seja um sujeito mau e se dê mal, como também ser um sujeito mau e se dar bem, como você pode ser alguém que é bom e se dê bem e, finalmente, seja bom e se dê mal. Essas são, na verdade, as quatro possibilidades da vida humana.


Sobre o autor: Daniel Defoe (1660–1731) - Romancista inglês nascido em Londres, considerado um precursor do romance realista inglês e do jornalismo moderno. Filho de um pequeno comerciante e membro de uma família dissidente da Igreja Anglicana e, tentou preparar-se para seguir a carreira eclesiástica, mas devido a uma educação desordenada, desistindo da carreira religiosa. Decidiu estabeleceu-se como comerciante (1683) e viajou muito pela Europa com diversos empreendimentos comerciais, mas em nenhum deles teve pleno êxito. Atraído pela política, estabeleceu-se em Londres (1700) e tentou viver como jornalista e libelista. Metido em intrigas políticas, começou a escrever numerosos panfletos, e foi encarcerado em numerosas ocasiões por dívidas e por motivos políticos. Acusado de espionagem foi encarcerado mais uma vez e condenado ao pelourinho. Enquanto aguardava o cumprimento da pena, redigiu o célebre Hymn to the Pillory (1703), que transformou sua sentença em um retumbante triunfo para ele, embora ainda tenha permanecido preso por quase um ano, em Newgate. Em liberdade e falido, fundou (1704) o periódico The Review, de tendência conservadora, onde expressou finalmente as suas excepcionais qualidades como jornalista. Ganhou celebridade internacional como romancista com a publicação de sua obra mais conhecida Robinson Crusoe (1719) e, então, resolveu retirar-se da vida pública para se dedicar exclusivamente à literatura. Com Moll Flanders (1722) deu um passo decisivo na história do romance social. Apesar da sua vida turbulenta foi um escritor muito prolífico e morreu em Londres, mantendo em seus últimos anos de vida uma intensa atividade literária, publicando obras como A Journal of the Plague Year (1722) e Roxana (1724).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

CERVANTES

Título original: Cervantès
Autor: Jean Canavaggio
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Editora 34
Assunto: Biografias
Edição: 1ª
Ano: 2005
Páginas: 384

Sinopse: Soldado na famosa batalha de Lepanto, onde perdeu a mão esquerda; cativo dos berberes em Argel, e de seus compatriotas na famigerada prisão de Sevilha, a vida de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor do Quixote, é solo fértil para um sem-número de lendas e mitos. Neste livro, o professor Jean Canavaggio levanta minuciosamente toda a documentação acerca do escritor, sobretudo a contribuição monumental, mas por vezes fantasiosa, do grande cervantista Astrana Marín, distinguindo criteriosamente o fato da ficção.

Combinando rigor acadêmico e talento narrativo, Canavaggio acompanha toda a trajetória de Cervantes, dando novo sentido não só a passagens já conhecidas, mas também a aspectos controversos — como os dois assassinatos em que seu nome esteve envolvido; os amores ilícitos das mulheres de sua família, sempre às voltas com fidalgotes da corte; sua paixão pelo jogo de cartas — e outros apenas hipotéticos, como um possível encontro com Shakespeare, em 1605, ou sua presença numa célebre pintura de El Greco.

O resultado é um estudo impecável, que equilibra história, literatura e biografia para traçar, além de uma rica análise de sua obra, o retrato de um Cervantes de carne e osso e um quadro extremamente vivo do fascinante Século de Ouro espanhol.

Comentários: Em 1605, há exatamente quatrocentos e cinco anos, Miguel de Cervantes Saavedra presenteava o mundo com a primeira parte do seu D. Quixote. De lá para cá, muita tinta correu sobre este que é considerado o primeiro – e talvez o maior – romance moderno, na tentativa de entender o encanto e o poder desse livro. A dupla formada pelo Cavaleiro da Triste Figura e seu Fiel Escudeiro deixou de andar apenas pelos campos de Espanha para percorrer cada região do planeta. Sobre as andanças de seu autor, entretanto, pouco se sabe, de modo que ao longo dos séculos a vida de Cervantes se tornou tão lendária quanto a de suas personagens.
Assim, desde os trabalhos inaugurais de Gregorio Mayans y Ciscar e Juan Antonio Pellicer no século XVIII, várias gerações de pesquisadores em todo o mundo vêm somando esforços, formulando hipóteses e buscando preencher lacunas para oferecer a sua própria interpretação da vida do escritor. O cervantista Jean Canavaggio, um dos maiores estudiosos da cultura do século de Ouro espanhol, não é apenas mais um desses detetives-desbravadores a adentrar o labirinto. Seu Cervantes é reconhecidamente a mais importante biografia escrita na atualidade sobre o autor de D. Quixote, tendo recebido o prestigioso prêmio Goncourt quando de sua primeira publicação, em 1986. Desde então, o livro foi traduzido para o inglês, o alemão, o italiano e o japonês, em em toda parte a acolhida do público só reafirmou o parecer dos especialistas.

Consciente de que “explicar Cervantes e uma aventura arriscada”, e procurando evitar armadilhas de seus predecessores, Canavaggio segue um plano de trabalho bastante claro. Em primeiro lugar, estabelecer com o máximo rigor possível tudo o que dele se sabe, discernindo cuidadosamente entre a lenda, o verídico e o verossímil. Em segundo lugar, situa, em seu meio e em sua época, esse escritor que levou uma vida cheia de reviravoltas – verdadeira “testemunha de um tempo de dúvidas e crise” – e que, sob vários pontos de vista, encarna e resume o próprio espírito do Século de Ouro. Por último, Canavaggio conduz o leitor ao encontro de Cervantes até o limite do possível, sem distorcer os dados, sem querer “desvendar seu mistério a todo custo”. Ao contrário: com grande sobriedade, acompanha, passo a passo, o movimento dessa existência que, “de projeto que era enquanto ele vivia, converteu-se num destino” que este belo livro procura tornar inteligível.

O presente volume toma por base o texto francês original e, como o próprio autor observa em nota escrita especialmente para esta edição, incorpora as muitas atualizações feitas desde seu lançamento. Além de levar em conta os ensaios de maior relevo publicados nos últimos vinte anos, Canavaggio lança nova luz sobre determinadas passagens, como os contatos que Cervantes entretém com a corte de Felipe II ao regressar do cativeiro em Argel; suas relações com homens de negócios que, durante a estada do escritor em Valladolid, fizeram dele um intermediário ativo em certas transações financeiras; e, no terreno literário, sobre a redação, já no limiar da morte, de Los trabajos de Persiles y Sigismunda, a derradeira obra de Cervantes, que recentemente vem suscitando uma renovada atenção por parte da crítica.

Apesar do grande número de estudos publicados sobre o “príncipe dos engenhos”, como já foi chamado o autor do Quixote, poucos se equiparam a esta biografia de Jean Canavaggio – que consegue, ao mesmo tempo, informar com rigor e narrar com emoção.

Sobre o autor: Jean Canavaggio nasceu em 1936. Foi diretor da Casa de Velázquez, em Madri, e é atualmente professor na Universidade Paris X-Nanterre. É membro de honra da Hispanic Society e correspondente da Real Academia Espanhola e da Real Academia de História. Coordenou uma Histoire de la littérature espagnole (Fayard, 1993-1994) e a edição em francês das obras completas em prosa de Cervantes (Gallimard, Bibliothèque de la Plèiade, 2001), colaborando também na edição de D. Quixote coordenada por Francisco Rico (Instituto Cervantes, 1998). Entre suas obras se destacam, além desta biografia — que recebeu o prêmio Goncourt em 1986 —, Cervantes dramaturgue: un thêatre à naître (Presses Universitaires de France, 1977) e Don Quichotte, du livre ao mythe (Fayard, 2005).

Sobre o tradutor: Rubia Prates Goldoni é doutora em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo e realizou parte de seus estudos acadêmicos na Universitat Autònoma de Barcelona. Ensinou Língua Espanhola, Literatura e Prática de Tradução na UNESP. Como tradutora, conta com cerca de trinta títulos vertidos do francês e do espanhol, nas áreas de literatura e ciências humanas.
Recebeu o prêmio FNLIJ Monteiro Lobato 2009 - Melhor Tradução Jovem, por Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra (Martins).