sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A ILHA

Título Original: Island
Autor: Aldous Huxley
Tradução: Gisela Brigitte Laub
Editora: Globo
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 2001
Páginas: 443

Sinopse: A Ilha traz a história de um jornalista, Will Faranaby, e seu encontro com uma sociedade baseada na “liberdade”. Tal paraíso fica em Pala, uma ilha situada na Indonésia.

Aldous Huxley fala de uma sociedade idealizada tendo uma ilha fictícia como palco de uma civilização que persegue serenamente a felicidade. Lá a utopia da existência plena é possível.

A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos anos 50-60. Huxley captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.

Comentários: Escrito em 1962 é o penúltimo livro publicado por Aldous Huxley. Imagina-se, equivocadamente, que “A Ilha” encaixou como uma luva na atmosfera cultural americana da época, a fase hippie da contracultura, quando jovens de classe média, orientados por gurus como Timothy Leary, Allen Ginsberg, Robert Laing, Carlos Castañeda, Roberto Crumb, Herbert Marcuse (este marxista da Escola de Frankfurt), Jack Kerouac e Alan Watson, todos psicopatas congênitos como são os esquerdistas, questionavam os valores dominantes, como família, religião, moral e a guerra no Vietnã.

A sociedade da ilha de Pala, descrita na obra, foi recebida como uma síntese da sociedade utópica que estes jovens queriam opor à sociedade industrial de consumo que, paradoxalmente, havia tornado o cidadão americano médio rico como nunca. Acontece que, A Ilha, na verdade, é o mais temível inquérito sobre o auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de várias décadas ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um sábio.

O filósofo Olavo de Carvalho faz uma análise precisa desta obra que reproduzo a seguir:

Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria, um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala. A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua autocontradição congênita.

Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe, a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi -- figura inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional -- , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da sociedade Ocidental.

Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo “um, dois, três, muitos Vietnãs”.

Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado, por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do “magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma.

Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa.

Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia improvisada... por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota, neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de “sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen, Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil (e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época, porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação” psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas, nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas, sobretudo ao longo da Costa Oeste americana -- o lugar onde nasceria, segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor.

Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”. Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”.
Por uma coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.

Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.
Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.

No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo que a falsa visão espiritual.

Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da reforma psicológica”.
Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança, submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa, enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos “grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal, firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã. Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da cartola um novo projeto de “mundo melhor”.

Conclusão:

1. As principais características da sociedade utópica de Pala e que a levaram a destruição são as que se seguem:
-­ Considerar que a natureza é sacrossanta. (Não é)

-­ O princípio de que todas as pessoas são boas. (Não são)

­- O princípio de que a mente do ser humano é capaz de produzir a realidade. (Não é capaz)

­- A revolta contra o cristianismo. (A única possibilidade do ser humano é via cristianismo. Não há outra).

­- A experiência humana desassociada da possibilidade de transcendência para o divino. (Ateísmo, Gnosticismo)

­- O antropocentrismo (do grego anthropos, "humano"; e kentron, "centro"), uma concepção que considera que a humanidade deve permanecer no centro do entendimento dos humanos, isto é, tudo no universo deve ser avaliado de acordo com a sua relação com o homem.

­- A tentativa de libertação do próprio destino.

­- A rebelião metafísica.

­- A tirania intrínseca com face humana.

­- A falta de liberdade individual.

-­ A destruição da liberdade.

­- A modificação da sociedade por meios subliminares.

-­ O controle da sociedade.

-­ O totalitarismo.

2. O moksha (erva alucinógena) faz a ligação com a própria condição humana (bom/mau). Uma “experiência psíquica”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e elevar-se ao reino da eternidade. É a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo em que a falsa visão espiritual.

3. Pala foi destruída pela própria utopia, pois a utopia não resiste a uma única noite frente à realidade.

-­ Não é possível produzir um ser humano ideal a partir de critérios humanos.

-­ Não se pode resolver os problemas humanos produzindo uma reengenharia humana, ou seja, mudando a própria natureza das pessoas.

-­ Não se pode assumir o lugar de Deus e construir um novo homem.

Finalizando:

“A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras”

Se o mundo não é perfeito, cabe ao homem promover atos perfeitos para viver melhor e não querer construir um mundo perfeito.

“Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa que se oculta por trás da inocência dos idealistas”.


 
Estudo sobre Aldous Huxley

Prefácio a A Ilha, escrito para a reedição dessa obra pela Editora Globo, São Paulo, 2001.

Olavo de Carvalho


A Ilha

 
 Os críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias.

 
Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:

 
1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a Swift e Voltaire.

 
2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de copiado e de mecânico.

 
3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que, no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos, macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou menos copiados.

 
É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica, entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus pensamentos.”

 
Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do privilégio maior da mediocridade -- falar a linguagem média -- e que por isto dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas. Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras, deduzir o que “o público” pensava.

 
O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os une.

 
Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o “espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30. A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos anos 50-60.

 
Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas. Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.

 
Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power: amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais, incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de reverência pela natureza.

 
Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo, encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo, militarismo, religião tradicional, lei e ordem.

 
Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia, em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus Cristo.

 
Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um sábio.

 
22/4/01

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

ILIADA

Autor: Homero
Tradução: Carlos Alberto Nunes
Editora: Ediouro
Assunto: Poesia épica (Literatura estrangeira)
Edição: 2ª
Ano: 2002
Páginas: 572.

Sinopse: Ilíada é um história de guerra que descreve tão somente os 51 dias do 9º ano de luta entre os gregos e os troianos. É o relato dos episódios da guerra de Tróia, travada entre gregos e troianos nestes cinqüenta e um dias. A epopéia narra um drama humano, o do herói Aquiles, filho da deusa Tétis e do mortal Peleu, rei da Ftia, na Tessalia.

Nove anos já se passaram desde o início da Guerra de Tróia, provocada pelo rapto da bela Helena por Páris. De cada lado da batalha, dois grandes guerreiros - por Tróia, Heitor, irmão de Páris; pela Grécia, Aquiles, um herói semidivino, quase imortal. Ilíada começa dramaticamente em um momento da guerra em que Crises, sacerdote de Apolo, tenta recuperar sua filha, então escrava do rei Agamémnon. Agamémnon devolve Criseide, mas toma a escrava de Aquiles, o que provoca a retirada deste da guerra. O desenrolar da Guerra de Tróia e o conflito entre Aquiles e Agamémnon trazem a esta grande epopéia dimensões humanas e emoções universais. Ira, orgulho, arrogância, beleza, harmonia e reconciliação são alguns dos elementos presentes na narrativa que espelham os dilemas do ser humano.

Ilíada, obra mais importante do que a Odisséia, é um poema constituído por 15.693 versos, em 24 cantos e de extensão variável. A métrica empregada é o hexâmetro, verso tradicional da épica grega. Além de símbolo da unidade e do espírito helênico, é fonte de ensinamento moral.

Comentários sobre a obra: Embora a Ilíada narre uma série de acontecimentos da guerra de Tróia e se refira a uma série de outros, seu tema principal é o ciclo da ira de Aquiles, da sua causa ao seu arrefecimento. Isto fica claro logo na primeira linha do poema. A palavra grega mēnin, ira, é a primeira do poema, cuja famosa primeira linha é "Menin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos". Em português seria “A ira canta, Deusa, de Peléio Aquiles” ou, adaptando, “Canta, Deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles”. Através da consumação dessa ira, é tratada a humanização do herói e semideus Aquiles, sempre conflitado por sua dupla natureza, filho de deusa e homem, portanto mortal.

A questão da escolha entre valores materiais, como a segurança e a vida longa, e valores morais, mais elevados, como a glória e o reconhecimento eterno, é tratada na escolha com que Aquiles se defronta: lutar, morrer jovem e ser lembrado para sempre, ou permanecer seguro e ser esquecido.

A soberba de Aquiles contrasta grandemente com a sobriedade de Heitor, também grande herói, que não busca a glória como Aquiles, mas luta pela segurança de sua família e de sua cidade, e a preservação de suas raízes troianas.

A condição humana é magistralmente trabalhada por Homero, mostrando os dilemas mortais, as interferências de instâncias superiores e suas conseqüências, personificadas nos deuses que tomam partido.

Amizade, honra e muitos outros temas abstratos também fazem parte da obra, compondo um belo painel da alma humana.

Orientações aos futuros leitores:

1. Recomenda-se ler o livro com se fossem fatos reais acontecidos e não como fatos mitológicos. Assim procedendo, é possível estabelecer a simetria do enredo com as possibilidades da vida humana.

2. O livro deve ser lido como uma novela, um poema e jamais como um ensaio ou um livro de conteúdo filosófico. Assim a leitura fica mais agradável e compreensível.

3. Deve-se interpretar a Ilíada sob a ótica do mundo antigo e não sob a ótica do mundo contemporâneo. Isso implica dizer que é preciso colocar a cabeça no mundo ao invés de colocar o mundo na cabeça.

4. O livro deve ser lido e simetrizado no seguinte aspecto: Que sentido a história que Homero nos conta tem com a nossa vida ou com uma situação concreta de nossas possibilidades enquanto seres humanos.

5. Os gregos utilizavam Ilíada no ensino das crianças, pois entendiam eles que as crianças que lêem muitas histórias, são mais inteligentes que as que não lêem. Este aspecto deveria ser mais explorado no mundo contemporâneo.

6. Mitologia não é assunto para pesquisa. É um instrumento para compreensão do mundo. É um instrumento de explicação dos dilemas humanos.

7. Mito de Cassandra: Cassandra tinha o poder de saber o futuro, mas em contrapartida foi-lhe tirada a credibilidade. Portanto, quando você tem o domínio da verdade, não tem credibilidade, ou seja, as pessoas não acreditam em você. Por essa razão há uma célebre fase que diz: O saber é solitário.

8. A história de Ilíada é uma mistura de atos humanos e atos divinos.

9. Na mitologia grega a Zeus pertencia o Céu; a Posidro (Poseidon), os mares; e a Hades, o inferno. Todavia, o inferno não tinha a conotação do mundo contemporâneo. Inferno era o reino dos mortos. Todos que morriam iam para o inferno, independente de terem sido bons ou maus, porque o inferno não era considerado um lugar de castigo, mas um lugar dos mortos.

10. Os gregos utilizavam o poema épico da obra de Homero nas escolas como exemplos de heroísmo a serem ensinados as crianças. Uma espécie de Paidéia "processo de educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana". O termo também significa a própria cultura construída a partir da educação. Era o ideal que os gregos cultivavam do mundo, para si e para sua juventude. Uma vez que o governo próprio era muito valorizado pelos gregos, a Paidéia combinava ethos (hábitos) que o fizessem ser digno e bom tanto como governado quanto como governante. O objetivo não era ensinar ofícios, mas sim treinar a liberdade e nobreza. Paidéia também pode ser encarada como o legado deixado de uma geração para outra na sociedade.

11. O gregos procuravam mostrar aos jovens o que há de melhor do comportamento humano. Portanto, a Iliada era a nossa “Bíblia” para os gregos.

Interpretação da Obra: A existência humana sempre tem um componente trágico independente do nosso comportamento bom ou mau. Logo, a obra retrata a tragédia humana apesar de todo o esforço e heroísmo humano!

O fim do ser humano será sempre trágico não importando o que ele faça, pois os seres humanos estão jogando o jogo da vida, cujas regras não foram por eles estabelecidas. Portanto, são regras que os humanos não dominam e não têm nenhuma ação sobre elas.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O HOMEM SEM QUALIDADES


Título Original: Der Mann ohne Eigenschaften
Autor: Robert Musil
Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth
Editora: Nova Fronteira
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 2006
Páginas: 1280

Sinopse: O livro trata da decadência do Império Austro-Húngaro (1867-1918), na sua tentativa de acomodação das múltiplas nacionalidades que compreendia a Áustria, a Hungria, a Tcheco-Eslováquia e parte da Polônia, da Romênia, da Iugoslávia e da Itália por um lado, e a tentativa de construção de um Império Racial que culminou no surgimento do Nazismo, por outro. Trata-se, portanto da crônica de um momento histórico e a perda da espiritualidade do povo europeu criando uma espécie de vazio de sentido que precisava ser preenchido de alguma forma.

Robert Musil descreve, neste romance satírico-filosófico de idéias, o vácuo absoluto que o mundo Europeu produziu com a destruição dos valores antigos de espiritualidade (Reino da Qualidade) e que possibilitou a instalação da ruptura existencial (Reino da Quantidade), fruto dos três filhos bastardos produzidos pela Revolução Francesa: Liberté, Égalité e Fraternité.

Ulrich, personagem do livro, vive diversas experiências, viaja ao exterior e, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, retorna a Viena. Convive com os mais diversos tipos humanos. Este romance-ensaio mostra a decadência dos valores vigentes até o início do século XX, marcando a perda de posição da Europa na decisão dos rumos políticos e econômicos mundiais.

A constatação de que as ciências se transformaram no grande agente transformador da sociedade, ocupando de certa forma o lugar das artes, tomando para si o papel da vanguarda e impulsionando o homem a estabelecer uma nova relação com o mundo, trouxe às linguagens artísticas um novo desafio. A violência dos conceitos da física quântica, da relatividade, das descobertas da ciência genética colocou o homem diante de questões absolutamente novas, tendo que reformular sua ética, com novos princípios, uma mudança significativa das crenças, dos costumes, antes mesmo da tomada de consciência de uma mudança racional.

A observação que a modernidade vienense formulou perguntas e respostas até hoje válidas para a compreensão da nossa realidade contemporânea também procede para a obra-prima do escritor austríaco Robert Musil. Esse homem sem qualidades é considerado como protótipo para o mundo moderno, marcado pela erosão do singular, a "perda da individualidade" ou questionamento radical do sujeito. A alienação do indivíduo, o que já não existe mais em termos substanciais, também vale para a sociedade de massas como um todo. Esta visão da fragmentação das sociedades modernas, racionalizadas e funcionalizadas, implica a existência de definições contrárias e não compartilhadas da realidade; segue disso uma aporia da comunicação, decorrente da congruência insuficiente dos padrões básicos de interpretação e sistemas de relevância.

Fica, entretanto, a grande pergunta histórica: Como se explica o fenômeno do Nazismo dentro de uma nação que foi a Catedral da Civilização, que produziu quase a metade da filosofia contemporânea e da música clássica?


Sobre o autor:
Robert Edler von MUSIL (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre – quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos – em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial.

Aos dez anos Musil entrou para a Escola Militar em Eisenstadt, destinado à carreira de oficial. Estudou durante mais de cinco anos em instituições do exército até chegar à Academia Militar de Viena, em 1897. Um ano depois, Musil decidiu largar a carreira de oficial e passou a estudar Engenharia em Brünn, obtendo o diploma da graduação em 1901. Depois de uma temporada em Stuttgart, cursou Filosofia e Psicologia experimental na Universidade de Berlim, doutorando-se em 1908 com tese sobre Ernst Mach (1838-1916),[1] físico e filósofo austríaco. Os estudos de Mach sobre o fenômeno da descontinuidade e da dissociação, assim como suas teses a respeito do “eu condenado” (unrettbares Ich), seriam decisivos na formação de vários escritores vienenses, entre eles Arthur Schnitzler e o próprio Musil.

De 1914 a 1918, Musil participou ativamente da I Guerra Mundial na condição de oficial de Infantaria do exército austríaco. Ao final dos combates chegou a capitão, condecorado com a principal ordem de guerra do moribudo império (Ritterkreuz des Franz-Josephs-Ordens). Só a partir de 1923, e já morando em Berlim, é que Musil passaria a viver exclusivamente de sua condição de escritor.

A ascensão do nazismo, em 1933, obrigou o autor a se mudar para Viena e, mais tarde – depois de se sentir numa ratoeira, conforme ele mesmo chegou a escrever em seu diário –, para Genebra, aonde veio a falecer em 15 de abril de 1942.

[1] Ernst Mach inventou também aquele que conhecemos por “número de Mach” ou “número Mach”: o quociente da velocidade dum corpo que se move num fluido pela velocidade do som no mesmo fluido.

sábado, 7 de novembro de 2009

A MORTE DE VIRGÍLIO

Título original: Der Tod des Vergil
Autor: Hermann Broch
Tradução: Herbert Caro
Editora: ARX
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 2ª
Ano: 2002
Páginas: 439

Sinopse: A história narra as últimas dezoito horas de vida do poeta Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.), que havia sido trazido da Grécia por Augusto[1] para morrer na sua terra, Andes, perto de Mântua. É muito tarde para ir até o norte da Itália, contudo, a reflexão e morte do grande poeta mantuano aconteceria ali mesmo em Brindisum (hoje Brindisi). A obra está dividida em quatro partes: Água (a chegada), Fogo (a descida), Terra (a expectativa) e Éter (o retorno), o que faz da narração uma espécie de caminho iniciático.

Comentários: Foi durante a prisão pela Gestapo, em 1938, quando os alemães ocuparam a Áustria, que Hermann Broch começou a conceber aquele que seria um marco na narrativa de ficção do século XX: "A Morte de Virgílio".

As cinco semanas de cárcere em Altausse levaram o autor a um intenso debate interior sobre a função e a utilidade da arte em uma época de crise, às portas da Segunda Guerra Mundial. Esse acerto de contas com a própria (in) consciência deu-se pela recriação das últimas 18 horas de Virgílio.

O conflito psicológico do poeta latino, que culmina com o desejo de destruir Eneida, é paralelo ao vivido por Broch: a autenticidade ou inautenticidade moral da vida; a justificativa ou não do trabalho poético a que sua existência foi consagrada.

A comunhão de um homem que encarna a cultura de um mundo com a sua própria biografia e com o cosmo é apresentada na forma de monólogo interior, narrado na terceira pessoa, num extraordinário romance-poema.

A agonia de Virgílio afirma a participação de uma alma em todas as formas da presença espiritual do homem. A iminência da morte, no entanto, confunde atos e lembranças, embaralha as linhas do tempo, que resultam no plano único do não-tempo.

A simultaneidade absoluta é traduzida por uma composição de natureza musical, em que motivos e temas se entrecruzam.

Para alcançar esse resultado, Broch lançou mão de seus conhecimentos de filosofia, matemática e psicologia.

A primeira versão de "A morte de Virgílio" foi publicada nos Estados Unidos, em 1945, e somente dois anos depois foi editada em alemão. O texto que a Editora ARX apresenta traz o trabalho primoroso do tradutor Herbert Caro, responsável também pelas versões em português de outros romances notáveis como "A montanha mágica" e "Doutor Fausto", de Thomas Mann.

Sobre o autor:
Hermann Broch nasceu em 1º de novembro de 1886, em Viena, Áustria. De família abastada, formou-se no curso de engenharia têxtil, desejo da família, mas matricula-se também em cursos de filosofia, matemática e física e mais tarde abraçou a carreira literária. O reconhecimento veio com a trilogia "Os sonâmbulos", escrita entre 1931 e 1932.

De 1934 a 1936, escreveu "O tentador", parábola antialemã que lhe rendeu a prisão pela Gestapo, em 1938. Após ser libertado, Broch emigrou para Londres, onde começou a escrever "A morte de Virgílio", depois seguiu para os Estados Unidos e lá finalmente publicou, em 1945, a primeira versão da obra em inglês com tradução de Jean Sparr Untermeyer, que trabalhou cinco anos na tradução.
Morreu em 30 de maio de 1951, em New Haven, Connecticut.
Hermann Broch é considerado um dos maiores ficcionistas da língua alemã, ao lado de Thomas Mann, Robert Walser, Robert Musil e Franz Kafka.

[1] Caio Júlio César Octaviano Augusto (63 a.C. – 14 d.C.)