quinta-feira, 30 de abril de 2009

AURORA

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Título Original: Sunrise - A Song of Two Humans
Gênero: Arte (Romance)
Atores: George O'Brien (O marido), Janet Gaynor (A esposa), Margaret Livingston (A mulher da cidade), Bodil Rosing, J. Farrell MacDonald, Ralph Sipperly, Jane Winton, Arthur Housman, Eddie Boland.
Diretor: F. W. Murnau
País: EUA
Ano: 1927
Duração: 90 min.

Sinopse: Seduzido por uma moça da cidade, um fazendeiro tenta afogar sua mulher, mas desiste no último momento. Esta foge para a cidade, mas ele a segue para provar o seu amor.

Comentários: Baseado no romance Die Reise Nach Tilsit (Viagem a Tilsit), de Hermann Sudermann, Aurora é uma obra poética de grande beleza plástica, repleta de cenas inesquecíveis. Versão restaurada, um dos dez maiores filmes da história do cinema e a obra máxima do genial cineasta alemão F. W. Murnau, diretor dos memoráveis Nosferatu, Fausto e Tartufo. Edição especial, com trailer de cinema e cenas alternativas. O filme é MUDO com legendas em Português.
A análise feita por Olavo de Carvalho é imperdível e pode ser encontrada no livro de sua autoria referenciado ao final deste texto.

Análise do filme feita pelo filósofo Olavo de Carvalho:
* Aula do "Seminário de Filosofia" (30 jan. 1997). Gravação transcrita por Marcelo Tomasco Albuquerque e editada por Alessandra Bonrruquer.

Aurora, de F. W. Murnau (Sunrise, 1927), baseado no romance de Herrman Suderman, Viagem a Tilsit, é para mim o melhor filme do mundo. Quando se vê que o grande Eisenstein nada mais fazia senão juntar imagens com tanto esforço para produzir, por associação, alguma patriotada a serviço da propaganda comunista, aí é que a arte de Murnau nos surpreende por sua capacidade de conduzir, através do jogo de imagens, a algo que está acima de toda imagem e mesmo acima de nossa capacidade de expressão em palavras.

A trama se desenvolve em três níveis: a personagem (o ser humano), a natureza e o sobrenatural, tudo perfeitamente encaixado e sem nenhum apelo a uma linguagem indireta ou "hermética", no sentido de obscura, embora haja ali grandes doses de hermetismo no sentido de alquimia espiritual.

O tema de Aurora é o jogo entre as decisões humanas, as forças da natureza e a misteriosa providência que tudo ordena sem alterar a ordem aparente das coisas, sem produzir acontecimentos de ordem ostensivamente sobrenatural, e jogando apenas com os elementos naturais.

O filme começa com dois amantes — um fazendeiro de Tilsit e uma turista — tomando a decisão mais arbitrária que se possa imaginar, uma decisão que não é fundada em coisa nenhuma: fugir, sendo preciso, para isso, matar a mulher do fazendeiro. Essa decisão brota de uma paixão momentânea, uma extravagância fundada num mero desejo, que não corresponde ao sentido de vida nem da mulher (a moça que quer fugir com o fazendeiro), nem do fazendeiro e não está encaixada logicamente no quadro normal de possibilidades de suas vidas. A possibilidade normal seria tudo não passar de um episódio fortuito, algo como um namoro de férias - o que realmente a coisa era no fundo. Na hora em que eles decidem transformar este namoro de férias numa união duradoura sacramentada pelo homicídio, então Murnau começa a colocar um outro enredo em cima do enredo inicial.

Se a vida do personagem antes do caso amoroso tinha uma certa solidez, ele mesmo não estava consciente disso, ou então teria rejeitado taxativamente a proposta da amante. Mas ele a aceita. E se deixa sair da lógica de sua vida para entrar nas névoas do imaginário. Não por coincidência, a cena em que eles se encontram para tramar o homicídio se dá num lamaçal e entre névoas. Ele atravessa uma bruma, como quem vai sair do plano real para ingressar no plano imaginário, onde vai encontrar sua espectadora.

O resumo do filme é o progressivo retorno desse mundo mítico à realidade que o personagem havia abandonado. Após aquele breve instante em que ele prefere o imaginário ao real, por todo o resto do tempo o que vemos são as operações do destino para devolvê-lo à vida real. Mas esse retorno não é fácil. No primeiro instante, a reação do fazendeiro é simplesmente de ordem sentimental, o sentimento de pena pela esposa que ele não amava, e arrependimento. Mas esse arrependimento não é ainda uma conquista sua, pois ele se dá de maneira passiva e na esfera do imediato. O retorno à realidade terá de passar pela reconstrução de todos os elementos que foram compondo a sua vida.

Quando, após a tentativa de homicídio falhada, ele acompanha a esposa até a cidade, ela ainda está muito triste e ele tenta recomeçar o diálogo com ela – afinal, ele tinha se tornado um estranho. Ele tenta retomar a condição de marido, como quem diz: "Eu não sou um assassino, eu não sou um estranho", mas ele, de fato, não é mais o mesmo. Ele terá de reencontrar sua velha identidade, e evidentemente isso não é tão fácil.

Temos então duas cenas decisivas: aquela em que na casa de chá ele oferece um bolinho a ela, e ela acaba não aceitando; e a cena do casamento a que eles assistem na igreja. Nesse casamento, novamente não por coincidência, os convidados estão à porta, esperando a saída dos noivos, e quem sai são eles, que vieram andando na frente dos noivos e nem percebem o que se passa em volta. Na igreja, ele toma novamente consciência do sentido do casamento, ou seja, do que ele tinha ido fazer ali, de por que é que ele estava ao lado daquela mulher que até poucas horas atrás já nada significava para ele. De certo modo, ele tem aí uma recapitulação de toda a sua existência.
No instante em que ele desiste de matar a esposa, ele já havia se arrependido por dentro, mas isso não era exatamente um arrependimento, no sentido cristão. Era remorso. Que é remorso? Um sentimento de culpa desesperador. O arrependimento é um sentimento de culpa acompanhado de alívio, de esperança de poder resgatar de algum modo o que foi perdido. O homem só passa por isso na igreja: neste momento, ele troca o remorso pelo arrependimento.

Mas aí a trama ainda não complicou. É preciso que ele confirme esta intenção. Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada.

Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital.

O restante do filme vai encaixá-lo de volta, primeiro, em sua vida; segundo, em seu casamento; terceiro, no lugar onde ele construiu a sua vida, para de certo modo devolvê-lo ao sentido da vida que ele tinha abandonado momentaneamente por um sonho maluco. E como se dará isso? Ele será obrigado, pelo desenrolar dos acontecimentos, a apostar de novo, repetidamente, no valor de tudo aquilo que tinha desprezado, e terá de apostar cada vez mais alto. Ele reconquista por um esforço de vontade consciente tudo o que havia abandonado por vaidade.

Ele começa por pedir perdão; depois oferece o bolinho; em seguida, na igreja, tem um segundo arrependimento e faz como que um voto; tira então uma fotografia, que é como uma fotografia de casamento; e por fim vai para um parque de diversões, que seria o equivalente da viagem durante uma lua-de-mel. Com tudo isso, ele recuperou sua identidade de casado, mas não recuperou ainda o sentido da sua vida. Para isto ele precisará ainda apostar mais um pouco.

E a aposta será uma segunda tentação, que já não vem por meio humano, mas por meio dos elementos da natureza, quase que propositadamente mobilizados para esse fim, que executam a intenção dele, isto é, afogam realmente a mulher que ele antes tinha tentado afogar. Veja; aquilo que ele sonhou, já não é mais ele que está executando, é um poder imensamente maior que o dele, ou seja, ele pediu e o céu executou. Nesta hora, ele tem de fazer a aposta decisiva para salvar aquela mulher que ele quisera matar.

Enquanto vai retornando para casa, dá-se a tempestade, e nesse retorno é que se dá também o retorno dele à plena posse do sentido da sua vida. Ele vai dizendo uma série de "sins" a tudo aquilo a que antes tinha dito "não". Mas quem se opõe a esse sim, quem é o tentador que lhe oferece novamente o não? Agora já não é o demônio: é o próprio Deus, para saber se ele quer mesmo. O filme é teologicamente exato ao mostrar que o diabo age dominando a imaginação, a fantasia e os desejos, enquanto Deus age através dos acontecimentos reais, do reino da natureza transformado em mensageiro do sobrenatural.

A personagem será então obrigada a reafirmar com muito mais força sua adesão a todos os valores que havia desprezado. E terá agora de arriscar a sua própria vida para defendê-los e, mais ainda, arriscar de certo modo a própria salvação de sua alma; pois não pode evitar o sentimento de revolta contra os céus quando pensa que a mulher morreu, e ele se sente preso numa armadilha terrível montada pelo diabo, que executou o pedido do qual ele já tinha desistido. Ele tem de reafirmar e apostar tudo de novo, desta vez lutando contra todas as probabilidades aparentes.

Aurora, na verdade, transcorre para trás. A mudança do fazendeiro para a cidade, planejada no começo, não se realiza, e tudo o que é importante acontece no retorno da cidade para o campo, onde ele vai novamente botar os pés no chão.

O filme tem algo de "romance de formação" (Bildungsroman), gênero tipicamente alemão, que tem como conclusão a formação da personalidade humana, onde o indivíduo, através de seus erros, se transforma num homem de verdade. Um exemplo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister; Herman Hesse também fez isso em O Lobo da Estepe e em Demian. São romances cuja única conclusão é o crescimento humano em direção à maturidade. Mas esse crescimento é sempre uma diminuição, é sempre o indivíduo voltando à terra, depois de haver sonhado alguma maluquice e viajado por um céu de mentira. É uma apologia caracteristicamente germânica do "pão-pão, queijo-queijo" como valor supremo da existência.

A idéia, portanto, é de que o sentido da existência está colocado na própria existência: ela tem sentido em si mesma, e não num outro mundo colocado acima deste, como o mundo imaginário que a amante oferece ao personagem, e que é mais ou menos como o mundo da falsa vocação teatral de Wilhelm Meister. Meister tem o sonho de ser ator, mas ele não serve para ser ator, ele não é um ator, ele é um burguês no fim das contas, e sua descoberta de que é um burguês de classe média alta, um sólido burguês, é a verdadeira educação dele. A vida cotidiana do burguês, na medida em que é real, e pelo simples fato de ser real, tem em si uma força mágica superior a toda imaginação, porque não é constituída de imagens, tem uma tridimensionalidade que a fantasia não tem.

O imaginário como alternativa oferecida pelo tentador diabólico é um mundo bidimensional, um mundo só de imagens, imagens no meio da névoa. A cena em que o fazendeiro e a amante conversam no pântano remete à carta 18 do Tarô, que é A Lua: o homem de um lado, a mulher de outro, como o cão e o lobo; a água em baixo e a lua no meio, formando um losango. Esse "mundo da lua" é o mundo dos reflexos na água, onde as coisas não acontecem verdadeiramente, apenas parece que vão acontecer. A imagem pode ser encantadora, mas ela não tem a tridimensionalidade, a profundidade da vida real. É no retorno à terra que o homem encontra o verdadeiro céu, o sentido da vida.

Ora, a coisa mais espantosa desta vida real é justamente que nela as coisas não chegam a ter uma explicação final, ao passo que o mundo imaginário é facilmente compreensível e explicável, pelo simples fato de que foi você mesmo que o imaginou. Na hora em que o personagem imagina uma outra vida na cidade, tudo para ele faz sentido, porque é ele mesmo quem quer que as coisas sejam assim ou assado. Aí a relação causa e efeito é perfeitamente nítida, ao passo que, no retorno à vida real, o jogo de causa e efeito é infinitamente mais complicado, mais sutil, e nunca se pode dizer que isto aconteceu por causa disto ou daquilo exclusivamente; há sempre um tecido, um emaranhado de causas, e nunca se consegue assinalar uma linha causal única.

Então, por que a tempestade acontece justamente no momento em que ele estava voltando? Ela poderia acontecer em qualquer outro momento. Não há no filme a menor insinuação mágica a respeito disso. Não foi um anjo quem fez cair a tempestade, mas, se ela não acontecesse, certamente a resolução do sentido da vida desse indivíduo tomaria uma outra direção. As causas naturais interferem e não se sabe nunca se existe nelas um propósito ou não. Não se pode dizer propriamente: "Deus fez cair a tempestade para tal ou qual finalidade ", porque Deus não aparece no filme, só a tempestade. Cada um está livre para interpretar isso como uma intencionalidade divina ou como uma casualidade, mas nos dois casos este fato entra como elemento componente de um sentido geral.

Quando cai a tempestade e a mulher se afoga, nada no filme nos permite interpretar que foi Deus que a fez cair propositadamente para ensinar algo ao personagem. Deus não aparece, não há a menor insinuação de um sentido religioso evidente envolvido no caso. Nós simplesmente vemos a tempestade, vemos o que aconteceu. Não podemos dizer que foi uma causa divina, ou uma causa natural fortuita, mas em qualquer dos casos esse acontecimento se encaixa não na ordem das causas, mas na ordem do sentido, e e força causal divina não aparece como causa eficiente e sim só como causa final, que age através da combinação natural das causas eficientes.

Qualquer que seja a causa, para o personagem, aquele acontecimento tem um sentido muito nítido, não subjetivamente, mas objetivamente, dentro da vida real dele. E que sentido é esse? O da intenção maligna da qual ele já havia desistido, e que é realizada justamente no instante em que ele a tinha renegado e em que ele a temia. Os seus pensamentos viram ações no exato instante em que ele não os aceita mais. Este sentido não é subjetivo, não é o personagem quem interpreta as coisas assim: elas simplesmente são assim, em si mesmas e objetivamente.

Sem precisar recorrer à idéia de uma providência que propositadamente está "fazendo acontecer" isto ou aquilo - e esta é uma das coisas mais bonitas do filme - o evento tem um sentido objetivo, e este sentido, por meios puramente naturais, vai na direção indicada pela intencionalidade divina, que é a reconquista do sentido da vida. É uma espécie de ironia da natureza, e por momentos o personagem se sente vítima desta ironia. Ela pode ser premeditada ou fortuita, isso não a torna menos irônica. Para ele, naquela hora, pouco interessa se foi o diabo que fez chover, para prejudicá-lo, ou se a natureza inocentemente e quase que mecanicamente produziu a chuva. A tempestade é irônica nos dois casos, e em ambos os casos faz sentido.

Existe aí uma distinção muito nítida entre o a ordem das causas e a ordem do sentido. Só que esse sentido não é subjetivo, não é apenas humano, é um sentido real; dentro do contexto dos acontecimentos, a tempestade tem uma significação nítida, é uma ironia cruel da natureza, pouco importando se foi intencional ou não. Na verdade, se não foi intencional é até mais cruel, porque então o destino do personagem parece mais absurdo ainda. De repente, ele cai totalmente dentro do absurdo que ele mesmo havia premeditado. Se houve intencionalidade por trás dos fatos, foi uma intencionalidade pedagógica, e se não houve, foi uma coincidência irônica.

Essa ironia já aparece no episódio do cachorro. Por que o cachorro, na hora que eles vão sair de barco, sai latindo atrás da dona? É porque ele anteviu que ia acontecer uma desgraça? Ou é simplesmente porque ele quer ir atrás da dona? O filme nada diz a esse respeito. Você está livre para interpretar como quiser. Mas como quer que se interprete a causa que fez o cachorro se mover, o que importa não é a causa, mas o sentido que esse episódio acaba tendo no conjunto. Por quê? Porque, ao retornar para deixar o cachorro em casa, o homem poderia ter desistido da viagem e do plano assassino.

O cachorro aparece ou como uma casualidade ou como uma intencionalidade, que poderia ter salvado a mulher antecipadamente e bloqueado o curso posterior dos acontecimentos. Poderia, mas falhou. O cachorro não teve força suficiente, é um elemento natural demasiado isolado e fraco para por si determinar o rumo dos acontecimentos. O cachorro, pura sanidade natural, é impotente para deter o mal; para isso será preciso a mobilização de todos os elementos da natureza — a tempestade.

Mas em todos os instantes o que se vê é que, não importando a causa, o sentido é nítido. E esse sentido não é subjetivo. De fato, a ação do cachorro naquele momento poderia ter impedido a desgraça. Quase impediu. E esta é outra característica desse filme: o tempo todo você tenta prever o que vai acontecer em seguida, e essa previsão toma o aspecto de um voto de fé: você deseja que as coisas tomem um certo rumo, você torce pára que isso aconteça — e, nunca acontecendo o que você deseja, no fim o resultado é, pelos meios mais impremeditados e surpreendentes, exatamente aquele que você desejava. Na hora em que você sabe que o sujeito vai tomar o barco para matar aquela inocente mulherzinha, você deseja que ele não faça isto. E na hora em que o cachorro começa a latir e vai atrás, o cachorro está realizando de certa maneira o seu desejo, mas ele falha.

Nesta cena, todo mundo vacila: você, o cachorro, o personagem, a mulher – ela também não sabe direito o que vai acontecer. Ela também está numa interrogação. Todos esses elementos, todos esses fatos têm sempre um sentido muito nítido, sempre referido ao antecedente e ao conseqüente. Em nenhum momento você depende da interpretação subjetiva que os personagens fazem.

Com base em de elementos psicológicos simples, cria-se esta história profundamente enigmática na qual todos os elementos concorrem, afinal de contas, para uma tomada de consciência e para que o personagem retome posse da sua vida. Está subentendido no filme inteiro que tudo está concorrendo para um sentido final. Mas se isto ocorre conforme uma premeditação ou não, esta é uma questão deixada em suspenso. Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu destino. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção fez chover, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido.

O sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro de minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse este filme.

A interpretação metafísica fica condicionada a uma interpretação ética, que a precede de certo modo. Pouco importando se existe uma providência por trás de tudo ou não, o sentido dos fatos se impõe na medida em que impõe a obrigação de agir de uma determinada maneira, porque é a única que faz sentido. O problema da providência está colocado não na esfera causal, mas na esfera do sentido, pouco importando se essa providência age através de causas naturais ou sobrenaturais.

A chuva pode ser uma mera coincidência. Veja-se isto do ponto de vista de Deus. Se já estivesse predeterminado por leis naturais que iria chover naquele determinado instante, Deus certamente sabia disso, e não precisaria mandar uma chuva especialmente para que as coisas se resolvessem desta ou daquela maneira. A simples somatória de causas naturais e humanas é suficiente para criar um sentido. A providência está aí para quê, então? Para criar e manter o sentido.

A providência, sendo sobrenatural, não precisa no entanto recorrer a meios sobrenaturais. Do simples jogo das causas naturais e humanas em número indefinido, haverá um resultado x. Não era necessário uma premeditação para aquele caso específico: estava já tudo ordenado, de tal modo que o homem, que é um ser pensante e que tende sempre a criar uma unidade de sentido em sua vida, aproveitaria, para realizar esse sentido, os acontecimentos quaisquer que fossem. Desta maneira, o próprio caráter fortuito dos acontecimentos é de certo modo superado. São fortuitos quanto à sua causalidade eficiente, isto é, àquilo que os desencadeou, mas não quanto à sua causa final. Ou seja: um monte de causas eficientes dispersas de modo fortuito podem concorrer a uma causa final de natureza fundamentalmente boa. Este é um elemento da filosofia de Leibniz (Princípio do Bem Maior). Não sei se Murnau pensou em Leibniz nessa hora, mas para ser leibniziano não é preciso ter lido Leibniz: é uma questão de personalidade e de afinidade espiritual espontânea. Em todo caso, não é inútil lembrar que, antes de se dedicar ao cinema, Murnau estudou filosofia e teologia.

Num outro filme dele, Tabu, há uma mensagem de sentido aparentemente contrário: a causalidade humana e natural concorrendo para um desenlace trágico. Isso também pode acontecer. De qualquer modo, se tudo termina em comédia (quando tudo termina bem é comédia, por mais que a gente sofra) ou em tragédia é coisa que não é decidida na ordem das causas eficientes, mas na ordem da causa final, e com isso escapamos da famosa polêmica entre determinismo e livre-arbítrio.
As duas coisas de certo modo se exigem mutuamente; não há como conceber uma sem a outra. Existe determinismo na medida em que certas causas desencadeadas vão fatalmente produzir certos resultados. Podemos tomar as causas naturais que aparecem neste filme, como o comportamento do cachorro e a tempestade, como simples resultados de leis naturais. Há processos naturais que explicam esses fatos. Pode estar tudo predeterminado na ordem das causas eficientes, mas nada pode estar predeterminado com relação ao fim, à finalidade. Não haveria nenhum sentido em criar um ser capaz de escolher, capaz de agir, capaz de ter culpa inclusive, se a finalidade de vida dele já estivesse dada infalivelmente de antemão. Isso seria um nonsense: não é necessário um ator consciente para desempenhar um papel mecânico; não seria preciso um ser tão inteligente quanto o homem para desempenhar esse papel. Portanto, existe uma certa margem de manobra dentro mesmo do determinismo da natureza. O sentido da vida existe, mas sua realização pelo homem é eminentemente falível.

Podemos dizer que o cachorro "não teria" outra alternativa senão ir atrás da dona, porque esse é seu instinto, e a chuva também não teria outra alternativa senão cair naquele preciso momento. O homem é que tem a alternativa de entender ou não entender o que está se passando e de dirigir a vida dele num sentido que esteja harmonizado com quadro natural, com o seu dever e o sentido da sua vida. Para realizar o sentido de sua vida, ele precisa compreender o que se passa em torno, e compreender em quê essas coisas o influenciam.

Os fatos (como por exemplo a amante, que não existia na vida do personagem e que chega de férias a um determinado local num determinado momento, ou seja, faz uma intervenção) vão se sucedendo e vêm do ambiente em torno. O indivíduo mesmo é que entende ou não entende. E para não entender, basta ele se desligar por um momento deste tecido denso da causalidade e entrar num outro mundo onde ele próprio é a única causa; que é o mundo imaginário, um mundo inteiramente lógico e nítido, onde ele inventa as causas e os efeitos se seguem da maneira mais lógica possível. É a lógica do plano criminoso proposto pela visitante: nós matamos a sua mulher e vamos para a cidade, e você vai morar lá comigo e vamos dançar naquela boate onde sempre vou, etc., etc., etc. Tudo isso é muito lógico, de maneira linear.

No retorno à vida real, as causalidades não são mais lineares, mas concomitantes e em número inabarcável. A conexão entre elas pode ser percebida ou não, porque o indivíduo mesmo é um elo de muitas cadeias causais cruzadas. Uma coisa é acontecer uma chuva e outra coisa é acontecer a chuva na hora em que você está ali. Mesmo do ponto de vista puramente natural, do ponto de vista físico, não é a mesma coisa chover sobre um terreno onde não há nenhum ser vivo, sobre um terreno onde há plantas, sobre um terreno onde há bichos e sobre um terreno onde há gente. As conseqüências da chuva fatalmente serão diferentes nesses vários casos. No caso aqui presente, chove na hora em que está ali exatamente aquele cidadão, portanto essa chuva já não é igual para todos, ela tem significados diferentes.

Ele poderia não ter compreendido a situação. Poderia ficar tão idiotizado pela morte da mulher que não sentisse sequer a ironia da situação, não tirasse a lição moral nela implícita. Ele consente em tirar esta lição porque continua dialogando moralmente com a natureza, perguntando: "O que você quer de mim?", ou seja: confiando no sentido da vida mesmo quando este sentido se tornou invisível por efeito dos erros que ele próprio cometeu. Ora, a natureza nunca responde totalmente, mas é o ser humano que completa as suas respostas. E na medida em que responde, responde assumindo o sentido e as implicações todas, as implicações reais que aquilo tem. Ou então fantasiando em cima, inventando, fugindo do dever e do sentido da vida.

Quando vemos que tudo isso foi dito só com imagens mudas, notamos que este filme é realmente uma obra-prima assombrosa. No sentido de jogar com um monte de causas para provocar um efeito final, existe uma analogia entre Aurora e A Tempestade de Shakespeare, mas a diferença é que nesta há um agente regendo as causas, que é o mago Próspero, enquanto que aqui, não. Aqui não aparece mago nenhum, você sequer sabe quem está dirigindo a cena ou mesmo se ela está sendo dirigida. O que você sabe é que ela faz um sentido tremendo.

Perguntar se isso foi premeditado ou não, neste caso, é inteiramente ocioso, porque a pergunta não é essa. A pergunta não é quem está dirigindo e com que propósito, a pergunta é: O que precisamente está acontecendo? É uma chuva como qualquer outra? Não. É a chuva que acontece neste momento e mata a mulher que o sujeito queria matar meia hora atrás. O momento em que isso acontece não é indiferente. A vida real é justamente essa densidade na qual todos os fatores são absolutamente inseparáveis, e a única coisa que está realmente em jogo é se você vai aceitar essa densidade ou se vai fugir para um outro mundo, plano e sem gravidade, o mundo da fantasia subjetiva. É justamente esse drama que dá ao filme todo seu valor e seu impacto.

A história que o personagem havia inventado ele próprio entendia perfeitamente, mas, e esta outra história que de fato lhe acontece? São tantos os fatores em jogo, que ele não poderia ter uma explicação completa. Para entender tudo o que aconteceu, ele precisaria ser Deus.

Imagine o número de causas que teriam de ser investigadas para se saber por que houve toda essa convergência de acontecimentos. Isso nunca ninguém terá. Em nenhum momento haverá uma explicação completa de tudo que aconteceu. No entanto, longe de compreender isso no sentido vulgar das "limitações do conhecimento humano", temos aí uma indicação preciosa sobre a natureza mesma da realidade: a realidade só é real quando, nela, o conjunto finito dos elementos conhecidos, e que em si mesmos podem não fazer sentido, é abarcado por um infinito que, incognoscível em si mesmo, dá a unidade e o sentido do quadro finito. Sempre que o finito se fecha em si mesmo, pretendendo ser auto-explicativo, estamos no reino da fantasia lógica otimista e prometéica. E sempre que o finito se dissolve num infinito sem sentido, estamos no reino da fantasia macabra. É na articulação sensata do finito no infinito que se encontra o conhecimento da realidade.

O sentido da vida do personagem não apenas não é subjetivo: ele é, por assim dizer, um sentido histórico. O personagem é este homem e não outro, ele teve esta vida e não outra, enfim ele não está livre para sentir o que quiser na hora em que quiser. Ele vai sentir de acordo com o que aconteceu antes e de acordo com o que ele pretende que aconteça depois.

Justamente na hora em que o indivíduo voltava para casa, esperando retornar à sua paz doméstica depois de tudo aquilo que viveu, depois da tentação e do remorso, nesse instante incide a chuva e ela tem esse sentido porque se encaixa na seqüência desse antes e desse depois, e não porque o indivíduo "sentiu" isto ou aquilo. Na verdade, ele poderia não sentir, ele poderia ficar idiotizado. Muitas pessoas, diante de um sofrimento desse tipo, na hora em que a vida realiza sua fantasia macabra, enlouquecem e não querem pensar mais. Aí elas perdem a percepção do sentido do que está acontecendo, mas esse sentido continua presente e pode ser reconhecido por quem, de fora, observe o que se passa.

O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas entender sempre apenas do ponto de vista humano e sem ter a explicação global. Ora, isso é muito importante para o estudante de filosofia, pelo seguinte: em qualquer investigação do tipo metafísico que se faça, a tendência humana é sempre voar direto para o problema da providência, do determinismo, da intencionalidade divina, tratando desses temas de uma maneira genérica e abstrata, sem ter este arraigamento prévio do sentido da vida pessoal, o qual é, evidentemente, o único intermediário pelo qual se poderia chegar à compreensão da intencionalidade divina. Se você não compreende sequer o que os acontecimentos representam dentro do enredo da sua vida, como é que você vai entender as intenções do Escritor que produziu a obra? Se você não entende nem a história, como é que você vai entender a psicologia do Autor?

É ridículo que pessoas de alma tosca, incapazes de apreender e assumir responsavelmente o sentido de suas próprias vidas, se metam a opinar sobre questões filosóficas simplesmente porque leram Kant ou Heidegger. Primum vivere deinde philosophari tem precisamente este sentido: o verdadeiro filósofo é filósofo na vida real e não apenas um estudioso que fala sobre filosofia. Por isso mesmo é que a investigação metafísica nunca pode ser uma mera investigação abstrata no sentido científico e impessoal, ela sempre vai implicar uma responsabilidade pessoal. E a pergunta que se coloca é a seguinte: você aceita compreender o que está se passando na sua vida? E em que medida você vai agüentar? Oitenta por cento dos filósofos a quem você fizesse essa pergunta correriam de medo, porque há certas coisas que são terríveis de entender, sobretudo as conseqüências do que cada um fez na vida.

Construa a hipótese de que exista um Deus, de que Ele conhece seus pensamentos e de que Ele pode, como neste caso, tornar realidade os seus piores pensamentos. Você deseja conhecer esse Deus? A maioria das pessoas, aí, já não vai querer mais. É melhor não saber. Surge aqui a famosa emoção da "máquina do mundo" do Carlos Drummond de Andrade, quando o indivíduo, após ter investigado e perguntado a vida inteira, na hora em que o Universo vai finalmente se abrir e mostrar tudo, ele diz: — "Não quero mais saber".

"como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demostrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera
seguia vagaroso, de mãos pensas."

(Trechos de "A máquina do mundo" - Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma)

O acesso ao conhecimento de ordem metafísica tem de passar primeiro por um conhecimento de ordem moral e ética que não consiste em "seguir" uma moral ou uma ética já dada e pronta, mas, ao contrário, em de fato desejar compreender a própria vida e realizar o seu sentido, assumindo o dever com todas as forças, porque é na vida real que se vai encontrar o elo entre o natural e o sobrenatural. E onde mais poderia agir o tal sobrenatural, se não fosse no real, neste mundo histórico e humano onde vivemos?

A natureza já está dada, é um fato que está diante nós. Ela já está resolvida, se não de maneira eterna, pelo menos de maneira habitual; embora haja um coeficiente de indeterminismo na natureza, pelo menos no plano macroscópico, no plano da natureza visível, as coisas funcionam segundo uma certa regularidade na qual você não interfere. A interferência do homem nos processos naturais é mínima.

Pois bem, onde mais você vai interferir? No sobrenatural? Não, o sobrenatural é Deus, é onipotente, você não pode mexer lá. Então, você não pode mexer, na verdade, nem na natureza e nem no sobrenatural. Você está colocado, por assim dizer, na natureza, mas um pouquinho acima dela, na medida em que pode enxergar a natureza como um todo e perguntar sobre alguma coisa que está para além dela, mas aonde você não pode chegar. Então, onde você está? Exatamente entre um e outro. Entre um conjunto que você enxerga mas não entende e outro que, se conhecer, vai entender, mas não conhece.

A natureza é visível e cognoscível, está diante de nós, mas nós não a entendemos, porque não parece ter intencionalidade. Às vezes parece que, outras vezes parece que não, então você não sabe. Como é que vamos saber? Bom, precisamos interrogar o que está além da natureza, aquilo que está acima dela e que a determina.

Em suma, precisamos conversar com o Autor da história. Se você conhecesse o Autor da história, tudo estaria explicado; mas você não O conhece. Aquilo que você conhece, você não entende e aquilo que você entende, não conhece. Deus é perfeitamente compreensível; na hora em que você começa a pensar em Deus, você vê que tudo faz um sentido tremendo, mas nós não O vemos, não O escutamos e não O conhecemos. E tudo aquilo que vemos, escutamos e conhecemos nem sempre faz sentido. Você tem o fato em baixo e o sentido em cima. Você desejaria subir para este sentido. Mas onde está o elo? Em você, porque você também existe materialmente, ou seja, você é objeto de conhecimento seu, você conhece o seu próprio corpo, a sua própria vida, exatamente como você conhece a natureza.

E qual é o sentido da sua vida? Você tem a realidade da sua vida, mas qual é o sentido dela? Com relação a você mesmo, você também está dividido. Você conhece a realidade da sua existência, mas não o sentido dela. O sentido, é claro, faz sentido, mas você não o conhece. E a vida você conhece, mas não sabe se faz sentido. Então, você é esse elo, porque a cada instante você pode ligar a esfera dos fatos com a esfera do sentido. Como é que você faz isso? Compreendendo o sentido que os fatos impõem, não abstratamente e em si mesmos, mas com relação à sua vida histórica.

Só na medida em que vai aceitando compreender esse sentido que está na sua própria vida, você tem ao mesmo tempo a abertura para aquele laço maior que há entre o natural e o sobrenatural. A relação que existe entre a sua vida e o sentido da sua vida é a mesma que existe entre a natureza e Deus. Sendo você o único elo, há algo que tem de se resolver na sua esfera e na sua escala antes de você poder fazer a sério qualquer indagação de ordem metafísica.

Ora, quando entendemos isso, cada um de nós pode também colocar a seguinte pergunta: Quais os fatos que foram determinantes do meu destino? E, se você começa a contar sua história direitinho, verá que houve fatos que determinaram o seu destino real, sem que você opinasse a respeito, sem que fosse consultado e às vezes sem que sequer os percebesse. Na vida dos outros a gente percebe isso muito bem; na nossa, é preciso um esforço.

Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica no Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, você não precisa saber onde ela começou e você não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu pergunto a você: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você, ou não? Quer conhecer realmente o que determina sua vida?

Note que não estamos falando de causas sobrenaturais, estamos falando de causas sócio-econômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo". Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho — o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível.

A partir desse momento, mesmo o esforço que o sujeito faça para atender aos seus impulsos vitais, seus desejos, estará atendendo apenas a um instinto de morte. Qual é o resultado final da vida biológica? A morte. É o único resultado a que a vida biológica pode levar. Portanto, na hora em que você limita sua vida ao biológico, por encantadora que ela ainda possa parecer, você sabe que está indo apenas na direção da morte e de mais nada. A renúncia ao sentido leva embora consigo a própria vida.

Conhecer o sentido da vida pressupõe conhecer o sentido das coisas que vão acontecendo enquanto ela se passa. Mas a apreensão desse sentido às vezes implica o conhecimento de forças terríveis, forças de escala histórica, social, planetária ou supra-planetária. Suponha, por exemplo, que os planetas exerçam alguma influência sobre a sua vida. Suponha que um planeta se deslocando em sua órbita planetária possa causar um efeito na sua vida. Como é que você vai dialogar com um monstro desse tamanho?

A maior parte das pessoas não deseja, por medo, levantar os olhos para ver o que determina a sua vida. Mas a aquisição do sentido da vida pressupõe a aquisição do sentido do cenário cósmico em que você está; não em si mesmo, como se faz ecologicamente, mas como cenário da peça que é a sua vida. Partindo do ponto onde você está, a consciência pode ir se alargando em círculos concêntricos cada vez maiores, para compreender gradativamente o conjunto de fatores que determinam objetivamente a sua existência. E à medida que esta consciência se amplia, mais nítido se torna o dever pessoal que dá sentido à sua vida. E aí você não busca mais proteção na inconsciência covarde (fingida no começo, mas que com o tempo se torna inconsciência mesmo), e sim no dever, que lhe infunde coragem cada vez maior.

Acontece que, quando alguém faz isso, vê que é quase um milagre tomar alguma decisão em meio a todos esse fatores enormemente poderosos. Nessa hora, o indivíduo é obrigado a enxergar a realidade mais brutal da vida humana: a fragilidade do poder individual.

A expansão da consciência pressupõe uma retração das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa.
Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme, Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeiro twice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito.

É óbvio que há fatores que ele pode ignorar, mas que jamais o ignoram. Nós podemos ignorar os fenômenos cósmicos, ou históricos, mas eles nos atingem; nós não sabemos deles, mas eles sabem de nós. Como um judeu na Alemanha nazista: ele podia ignorar o Führer, mas o Führer não o ignorava. Como um cristão na URSS: ele pode ignorar Stálin, mas Stálin o conhece muito bem. Em certo momento, esse cenário assume de fato uma configuração sinistra. E você agüenta enxergá-la? Você quer saber, ou não?

Nesta passagem é que se decide se o homem vai ser digno da condição humana ou se ele vai se imputar aquela autocastração espiritual, que é a pior perda por que um sujeito pode passar, e que nenhuma reparação material pode compensar. O homem que desistiu de saber pelo quê são determinadas sua vida, sua biografia, desistiu dessa vida e dessa biografia. Ele já não lhe dá mais valor, jogou-a no lixo. Agora, no máximo, ele está reduzido a uma criança que, ignorando tudo em volta, pede milagres ou amaldiçoa o destino, a socieadde, o próprio Deus; Deste ponto em diante, só um milagre, mesmo. Mas o pedir milagre é uma coisa amaldiçoada pelo próprio Cristo. "Maldita a geração humana que pede prodígios". E como é que o sujeito vai obter prodígios se não quer sequer olhar para a natureza em torno, olhar para o mundo real onde esses prodígios se sucedem a todo instante?

Aqui é preciso citar uma frase do velho Gurdjieff (não gosto dele, mas ele tem uns achados verbais incríveis), que diz que a maior parte das preces consiste em pedir que dois mais dois dêem cinco. O indivíduo não sabe exatamente o que pedir. Ora, se ele não olha nem a realidade em torno, ele não sabe onde está, portanto também não sabe o que quer. Vai pedir uma coisa qualquer, uma bobagem. Ao fazer isso, está recusando o dom do Espírito, está cometendo o pecado primeiro: "Eu não quero ser um ser individual consciente e responsável, eu quero ser um bichinho que não sabe de nada, quero permanecer no estado de inocência animal." Ele quer pecar contra o Espírito e ainda quer que Deus faça um milagre? Todos os pecados são perdoados, menos esse.

É por isso que vejo uma blasfêmia profunda na apologia vulgar da "vida simples", das "pessoas simples". Esse é um aspecto que nunca foi muito bem estudado. A autêntica simplicidade evangélica consiste justamente em pedir pouco, em não precisar de muito, e não em levar a vida de um bichinho que ignora o mundo que o cerca. Este ignorar é recusar o dom do Espírito, e este é o pecado que não é perdoado nem nesta vida nem na outra, o pior dos pecados. Tudo é perdoado menos o pecado contra o Espírito Santo. Qual é este pecado? A ignorância voluntária — e ainda há quem chame isso de "simplicidade evangélica".

A falta de interrogação sobre o sentido da vida, a depreciação desta busca ou sua redução a uma curiosidade acadêmica, como se algo desligado do eixo da vida, isto é o desprezo pelo Espírito. Se o sujeito faz isso e depois vai ler a Bíblia, vai rezar, ele está perdendo tempo. É uma besteira: ele já informou a Deus que não quer nada com Ele.
Essa desespiritualização é a total absorção do indivíduo nas tarefas de subsistência, incluindo as tarefas de prazer, que também são para subsistência. Você precisa de uma certa quota de prazer sexual, gastronômico, etc., simplesmente para sobreviver, assim como, para sobreviver, precisa de uma certa dose de esforço dolorido. Enquanto o indivíduo está limitado a essas duas coisas, ele optou pela vida natural, não quer saber do sobrenatural. Se ele quiser saber do sobrenatural, terá de passar por essa interface, que é o sentido da vida dele mesmo.

Para você saber o sentido de uma coisa, primeiro precisa saber que coisa é esta. "Que é que eu sou?", "Onde é que eu estou?", "Que é que eu estou fazendo aqui?", "Que é que está me acontecendo?" e "Em que rumo está indo o curso da minha vida?"

Por exemplo: Você deseja realmente saber todos os impulsos hereditários malignos que herdou de seus antepassados? Assassinos, estupradores, traficantes, contrabandistas, proxenetas, dedos-duros — quer? Quer ver tudo isto? A isto Dante chama descida aos infernos: reconhecer as possibilidades inferiores que ainda estão em você. Você quer ver isto? Não, não quero. diz a maioria. Então, se não quer, não adianta ir rezar, porque a função do Espírito Santo é revelar precisamente isso para você.

Pelo olhar firme e inteligente é que você supera todo o mal que há em você: se você é capaz de saber, de olhar, você já está acima do seu próprio mal interior; agora, se você não quer ver, você ainda está em baixo. Não temos medo daquilo que nos é inferior. Só quando você quer ver esse conjunto é que, pelo simples fato de ser vistas, essas possibilidades então são queimadas, passam a fazer parte do seu mundo cognitivo e você de certo modo já está colocado acima delas.

Então, se formos pensar a ferro e fogo, a idéia que se tem hoje da preocupação "realista" com o cotidiano repetível é uma fuga do Espírito, uma sucessão de analgésicos. Quando acontece uma grande desgraça, o indivíduo se pergunta "por que isso aconteceu a mim?". Boa pergunta, mas antes de perguntar pela desgraça, já devia ter perguntado uma série de outras coisas. Não, ele deixa para fazer perguntas só quando acontece a desgraça. Ora, a desgraça pode ser complicada, e ele talvez não a entenda.

A situação do personagem do filme é uma situação evidentemente ideal, portanto artisticamente simplificada. É o indivíduo que nunca tinha pensado em nada e repentinamente tem de entender tudo. E ele entende. Ora, ele entende porque é um filme, é um esquema simplificado, simbólico, da vida. Na verdade, se o indivíduo passar a vida toda ignorando solenemente tudo o que se passa, quando ocorrer a desgraça ele também não vai entender, vai ficar ainda mais burro do que estava antes.

Não acredito que deixar tudo para o último minuto possa adiantar, exceto no filme. No filme, há um idiota jogado de repente numa situação trágica, onde ele tem de entender tudo e realmente entende, e, na hora em que entende, sua compreensão tem uma função catártica. Na hora em que toma consciência do que aconteceu, ele descarrega o mal que havia na situação e esse mal instantaneamente se converte em bem e sua esposa é resgatada.
Eu não nego que possa haver, neste sentido, uma atuação mágica do ser humano sobre o cenário histórico e até mesmo o cósmico, na medida em que entende o mal e, entendendo, o expressa e sublima de alguma maneira, exatamente como dizia Thomas Mann, que algumas previsões a gente faz justamente para que não aconteçam.

Mas, e se ninguém quer ver o mal? Aí vai acontecer mesmo. Se você não quer ver, você deixa tudo atuando na esfera da mecanicidade, das causas que já estão atuando independentemente de você e que vão chegar fatalmente às suas finalidades. Se você percebe e absorve este impacto, é possível que a sua tomada de consciência tenha uma função catártica capaz de beneficiar muitos seres humanos em torno.

É por isso que em geral profetas e grandes místicos são pessoas que tendem a ser mais tristes do que alegres, porque sabem o que está se passando. Podem antever certos resultados que os outros não antevêem e já sabem o que vai dar errado. Maomé olhava para um sujeito e sabia que o sujeito já estava no inferno, sabia que não podia fazer nada por ele, então chorava. Mas esta é uma última instância. Não é preciso antever o sujeito no inferno, mas um sujeito na câmara de gás ou num pelotão de fuzilamento é impossível que não haja ninguém capaz de antever. Entretanto, nas situações em que esse mal se aproxima, muitos esperam para tomar consciência no último momento.

Toda tragédia tem esse elemento: ver ou não querer ver. Na tragédia antiga, esse não ver não envolve culpa. A tragédia antiga parte do princípio de que existe uma certa limitação da inteligência humana. É um caso extremo, onde, mesmo agindo no melhor de suas capacidades, o homem não conseguiria entender, então ele se torna uma vítima inocente do jogo cósmico.

Na esfera cristã, já não se admite isso e sempre há um sentido culposo, e por isso mesmo o gênero trágico não floresce muito aqui. No mundo cristão, o que não quis ver tem culpa. Sempre há uma margem de manobra: as coisas poderiam ser de outra maneira. Pode haver um desenlace horrível, mas não trágico, porque não fatal. Foi uma escolha errada. De maneira aparentemente paradoxal, a culpa restaura a liberdade, porque ao assumir a culpa o sujeito vence, de certo modo, o destino fatal. As pessoas que hoje falam levianamente contra o senso cristão da culpa não entendem ou fingem não entender que a única alternativa a isso é o retorno à fatalidade trágica grega onde o inocente é sempre condenado. Os inimigos do sentimento de culpa são inimigos da liberdade.

Mas há maneiras distintas de entender, por exemplo, a história de Adão. Adão erra por fatalidade, ou tinha margem de manobra? Ele podia enxergar o que estava acontecendo ou foi uma pobre vítima dos acontecimentos? A interpretação muçulmana diz que foi um simples lapso intelectual, por isso não aceitam o pecado original: ali onde Adão errou qualquer um erraria. Mas é preciso compreender que a perspectiva islâmica, nesse caso, está referida à espécie humana e não ao indivíduo. No plano das ações individuais existe culpa, sim. O que o islamismo professa no fundo é apenas que o pecado de Adão foi de ordem cognitiva, e não propriamente moral.

Epílogo em junho de 1997
A gravação desta aula termina assim, abruptamente. Mas lembro que encerrei dizendo que Aurora, obra de um cineasta que foi um profundo estudioso da filosofia, da religião, do simbolismo e do esoterismo, era um cume de realização artística que o cinema nunca havia ultrapassado, precisamente porque nele as imagens condensavam diretamente e sem qualquer linguagem enigmática os problemas mais altos da metafísica do destino e da providência, com uma sutileza digna de Sto. Agostinho e Leibniz. Continuo dizendo isto e Friedrich Wilhelm Murnau continua sendo para mim o maior diretor de cinema de todos os tempos, até prova em contrário.
 
Olavo de Carvalho, livro A DIALÉTICA SIMBÓLICA)

 

sexta-feira, 24 de abril de 2009

CRIME E CASTIGO

Original: Преступление и наказание
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra.
Editora: Editora 34
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Edição: 1ª
Ano: 2001
Páginas: 568

Sinopse: Publicado em 1866, 'Crime e Castigo' é a obra mais célebre de Dostoievski. Neste livro, Raskólnikov, um estudantezinho pobre e desesperado que acha que é um gênio, que acha que pode mudar o mundo perambula pelas ruas de São Petersburgo até cometer um crime que tentará justificar por uma teoria - grandes homens, como César ou Napoleão, foram assassinos absolvidos pela História, então ele também poderia sê-lo. Este ato desencadeia uma narrativa labiríntica que arrasta o leitor por becos, tabernas e pequenos cômodos, povoados de personagens que lutam para preservar sua dignidade contra as várias formas da tirania.

O livro é uma história de suspense envolvida por teorias políticas e sociais da época. Escrito 50 anos antes da revolução russa, refletia a visão mais ameaçadora de Dostoiévski, de que o assassinato destruiria a alma de seus compatriotas e da sociedade russa.

O livro se baseia numa visão sobre religião e existencialismo com um foco predominante no tema de alcançar salvação pelo sofrimento, sem deixar de comentar algumas questões do socialismo e niilismo.

Dostoiévski identifica o problema central dos limites da liberdade da ação humana, mas também sugere as possibilidades de redenção pelo crime.

Enredo
É julho de 1865 em São Petersburgo, Rússia.
Novas teorias da Europa Ocidental consumiram um jovem e destacado estudante das províncias. Ele é Rodion Românovitch Raskólnikov, e acabou de cometer um assassinato.

Raskólnikov ficou possuído pelas teorias de um homem grandioso, queria mostrar que era extraordinário, destinado a ser grande, livre para criar suas próprias leis e matar se julgasse correto.

Durante algumas semanas antes do assassinato, Raskólnikov manteve-se fechado em seu quarto. Perguntava-se se era mesmo extraordinário, capaz de matar por um objetivo.
Uma coisa ele sabia: Não queria ser um homem comum, atado por códigos morais comuns. Assassinato, segundo ele, poria à prova a teoria que revelaria a sua natureza. Mas alguma coisa deu errado. Um homem extraordinário aproveitaria o seu direito nato, ignorando as leis comuns, sem olhar para trás.

Raskólnikov não encontrou essa liberdade. Desde o crime foi torturado por lembranças e por um sentimento de fracasso. O castigo de Raskólnikov havia começado. É o pesadelo do caos moral.
A personagem principal, apesar de professor de línguas, é um homem paupérrimo e que vive angustiado pela sombra de se tornar alguém melhor ou fazer algo importante. Ele divide o homem em ordinário e extraordinário, numa tentativa de explicar a quebra das regras em prol do avanço humano.

Seguindo este preceito --- fazer algo que mude a sociedade ou em pró dela --- a personagem planeja, em meio a uma luta consigo, a morte de uma usurária (alguém que empresta dinheiro a juros) e, finalmente, o cumpre.

Antes de fugir da cena do crime, porém, Raskólnikov também comete, a contragosto, o assassinato de Lisavieta, irmã da velha usurária, após ela ter visto o cadáver recém-assassinado no chão.

Este personagem principal rouba algumas jóias, mas não chega a usufruir deste ganho. A polícia, apesar de estar o investigando, termina por prender um inocente que se intitulou culpado por uma razão pessoal (bem explicado no livro). Entretanto, o personagem acaba confessando o crime que cometera, devido, principalmente, a enorme influência de uma prostituta chamada Sônia, que, antes disso, compartilha com Raskólnikov algumas leituras do Novo Testamento.
Enfim, Raskólnikov acaba preso. Porém, devido à sua confissão e ótimo histórico, sua pena acaba por ser reduzida a sete anos em uma cadeia na Sibéria, durante os quais Sônia, seguindo o condenado durante toda a história, manteve-se muito presente, também servindo de mensageira a sua família em São Petersburgo.

Comentários:
Apesar de já ter se passado 143 anos este livro de Fiódor Dostoiéviski continua sendo comovente e ao mesmo tempo impressionante. A partir do crime de Raskólnikov cometido para comprovar uma polêmica teoria, Dostoiéviski traça uma complexa trama cujo pano de fundo social e político nos mostra uma época em que a Rússia estava totalmente tomada pelo caos e que faria com que ocorresse a Revolução Bolchevique, em 1917 e a tomada do poder pelo povo com conseqüências desastrosas. Apesar de dar ênfase no crime de Raskólnikov criando cenas de muita tensão e angústia, o que mais chama a atenção nesta obra de Dostoiéviski é forma com que este retrata a situação de miséria e degradação social em que vivia a maioria da população russa. Destaque também para o ótimo trabalho de Paulo Bezerra e o cuidado da edição cheia de notas explicativas sobre os costumes literatura e História da Rússia. Crime e Castigo é sobre a ocorrência de um crime em circunstâncias e por um motivo absurdo mais acima de tudo trata-se de uma estória que demonstra que única forma de se redimir do mal que foi causado é através do amor. Sem dúvida é uma obra-prima e que deve ser lida por aqueles que apreciam uma leitura de qualidade que não é apenas uma forma de entretenimento, mas também de reflexão nestes tempos tão confusos e difíceis. Os tempos mudaram mais infelizmente algumas preocupações continuam as mesmas.

Crime e Castigo é um romance que descreve o funcionamento da mente revolucionária que é a base dos movimentos totalitários contemporâneos.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

EM BUSCA DE SENTIDO

UM PSICOLOGO NO CAMPO DE CONCENTRAÇAO
Autor: Viktor E. Frankl (1905-1997).
Editora: Sinodal e Co-editora Vozes
Assunto: Ensaio psicológico
Edição: 18ª
Ano: 1991
Páginas: 137
Nota 1: Em 2006 já foi editada a 22ª edição
Nota 2: Ao final você encontrará dois vídeos: uma palestra sobre Viktor Frankl e uma entrevista do próprio Viktor Frankl [A descoberta de um sentido no sofrimento], legendada.

Sinopse: Viktor E. Frankl descreve, nesta obra, como se sentiu e observou a si mesmo e as demais pessoas e seu comportamento na situação-limite e como foi a sua própria experiência em busca do sentido da vida num campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Ao fazê-lo, toca na essência do que é ser humano: usar a capacidade de transcender uma situação extremamente desumanizadora, manter a liberdade interior e, desta maneira, não renunciar ao sentido da vida, apesar dos pesares. Na segunda parte do livro, apresenta os Conceitos Fundamentais da Logoterapia.


Comentários: Um livro sobre uma verdadeira lição de vida! Uma obra de observação psicológica, ao mesmo tempo, um testemunho da grande humanidade, capaz de animar ainda hoje pessoas que, em situações aparentemente sem sentido, ficam abertas para os pequenos sinais de sentido perceptíveis no dia-a-dia. Tais sinais tornam-se frestas pelas quais podemos vislumbrar o sentido mais profundo e transcendente da vida.


Há na vida do Viktor um episódio famoso, em que ele não sabia se ia estudar nos EUA, que era o que ele queria fazer, ou se ficava na Alemanha com os pais que estavam velhinhos. Aconteceu, então, de ele encontrar uma pedra que havia caído de uma sinagoga, onde estava gravado o mandamento “honrar pai e mãe”, e ele entendeu aquilo como uma mensagem de Deus para que ele ficasse com os pais. Tendo permanecido com os pais, acabaram todos num campo de concentração.


Poderia parecer que dentro do projeto de vida dele isso foi uma desgraça, uma ruptura, um elemento fortemente opositivo que apareceu para destruir todos os seus sonhos, mas na verdade o que aconteceu foi exatamente o contrário, porque toda a substância da investigação médica a que Viktor Frankl se dedicaria pelo resto da vida foi dada pela experiência que ele teve no campo de concentração. E a pergunta que ele fez, e que orientou a sua investigação, o seu estudo, repetia de algum modo a mesma experiência que ele estava vivendo: “Por que algumas pessoas resistem bem à experiência do campo de concentração e saem de lá até fortalecidas, enquanto outras desabam, são totalmente destruídas?” Ou, em outras palavras: “Se a situação é a mesma para todos nós, por que uns reagem de uma maneira e outros reagem de outra?” Essa pergunta pode ser transposta, transformada algebricamente em uma outra ainda: “Por que em alguns indivíduos o fator unificante prevalece, e em outros o fator dispersante é o que acaba ganhando?” Era, portanto, exatamente o mesmo problema que ele estava tentando resolver, ou seja, como é que ele perseveraria na sua vocação em uma situação que parecia não só hostil, mas absolutamente antagônica. Como é que alguém vai poder se realizar, fazer uma carreira médica dentro do campo de concentração? Uma carreira de cientista, de acadêmico, seria impossível dentro de um campo de concentração; na verdade, porém, o que parecia ser mais oposto e mais hostil acabou não só ajudando como dando a inspiração a ele.


Isso mostra que se você estiver firmemente disposto a ser quem você quer ser, e se você não ficar contando sempre com circunstâncias favoráveis, mas aceitar de bom coração as circunstâncias desfavoráveis e tentar sempre integrá-las e negociar com elas, você acaba absorvendo todos esses elementos.


Comentário de Olavo de Carvalho: A mensagem de Viktor Frankl. No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado - e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser "homens do seu tempo", alguém muito maior do que o século.


Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.

Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.


O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor - o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.


O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda.


Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.

Assim ele registra, no seu livro Man's Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:


"Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: 'Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita'."


Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer "proveniente do espírito". Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido."


Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.

Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.

Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.
Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos - é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.

A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais - os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:

"Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente." (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)

Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüência, o destino das gerações futuras.

Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: "SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus."


Trecho do livro: “Dostoievski afirmou certa vez: ´Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento´. Essas palavras ficavam passando muitas vezes pela cabeça da gente quando se ficava conhecendo aquelas pessoas cujo comportamento no campo de concentração, cujo sofrimento e morte testemunham essa liberdade interior última do ser humano, a qual não se pode perder. Sem dúvida, elas poderiam dizer que foram ´dignas dos seus tormentos´. Elas provaram que, inerente ao sofrimento, há uma conquista, que é a conquista interior. A liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe, até o último suspiro, configurar a sua vida de modo que tenha sentido (...) Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá.”


Breve Biografia: Viktor E. Frankl, M.D., Ph.D. (26/3/1905-2/9/1997) foi professor de Neurologia e Psiquiatria de Viena e também professor de Logoterapia na Universidade Internacional da Califórnia. É fundador da Logoterapia, muitas vezes chamada de “terceira escola vienense de psicoterapia” (as duas primeiras são: a Psicanálise de Freud e a Psicologia Individual de Adler). Lecionou ainda nas universidades de Harvard, Stanford, Dallas e Pittsburgh.
Frankl publicou 32 livros, que foram traduzidos para 27 línguas, incluído o japonês e o chinês. Além disso, foram publicados 151 livros sobre Frankl e sua obra por outros autores.
Esteve no Brasil em 1984.

PALESTRA: VIKTOR FRANKL E O SENTIDO DA VIDA

ENTREVISTA LEGENDADA

quinta-feira, 9 de abril de 2009

PEQUENO MILAGRE

Título Original: Simon Birch
Gênero: Drama
Atores: Ashley Judd, Joseph Mazello, Oliver Platt, Dana Ivey, Ian Smith, David Strathairn
Diretor: Mark Steven Johnson
País: EUA-Canadá
Ano: 1998
Duração: 104 min.

Sinopse: Simon Birch (Ian Smith) foi o menor bebê a nascer no Gravestown Memorial Hospital. Com sérios problemas de crescimento, os médicos o declararam um verdadeiro milagre. Convencido de que Deus o pôs no mundo para tornar-se um herói, o pequeno Simon divide suas fantasias e altas aspirações com o melhor amigo, Joe (Joseph Mazzello), filho de uma adorável mãe solteira (Ashley Judd) que se nega a revelar a identidade do pai do garoto.

Enquanto Deus não o transforma na figura heróica e grandiosa que imagina, Simon discute a fé com a tirânica professora de catecismo (Hooks) e com o reverendo Russell (David Strathairn). Em um lance trágico que irá mudar para sempre o destino dos dois, Joe e Simon se unem para encontrar o que falta em suas vidas. Para Joe, é a identidade do pai que não conheceu. Para Simon, é descobrir o desígnio divino para o qual foi criado.

Comentários:
Todos nós somos instrumentos de Deus e Ele tem um plano para cada um de nós, tal qual para Simon Birch. Assim como Simon, todos nós deveríamos descobrir o desígnio divino para o qual cada um de nós foi criado, e não acreditar que a física quântica pode nos transformar em Deus!

Este filme trata-se de um verdadeiro antídoto ao documentário “Quem Somos Nós?” feito por psicopatas para psicopatas. Pequeno Milagre inspira e eleva a todos que o assistem. (Anatoli Oliynik).

sexta-feira, 3 de abril de 2009

EUGÉNIE GRANDET

Título original: Eugénie Grandet
Autor: Honoré de Balzac (1799-1850)
Tradutor: Moacyr Werneck de Castro
Assunto: Romance (Literatura estrangeira)
Editora: Difel
Edição: 1ª
Ano: 1961
Páginas: 201

Sinopse: Na cidadezinha francesa de Saumur, vive a família Grandet, cuja filha única é a doce Eugénie. O sr. Grandet, pai de Eugénie, é um comerciante de vinhos que enriqueceu no período pós-Revolução Francesa. E é, segundo consenso dos críticos, um dos maiores avaros da literatura universal. Eugénie, prestes a atingir a maioridade, passa a ser disputada pelas boas famílias da região, que desejam casar um dos seus com a herdeira do rico comerciante. Tudo vai bem, nos suaves vagares da rotina da província, até que surge Charles Grandet, rapaz típico da sociedade parisiense e filho do irmão do sr. Grandet que, tendo ido mal nos negócios, suicidara-se. O sobrinho acaba sendo acolhido, e o convívio suscita a paixão entre os primos Charles e Eugénie. O romance trata deste amor ardente e ao mesmo tempo resignado, em que Eugénie simboliza o amor total, que resiste a tudo à separação, à distância e as desilusões. Um amor tão formidável que dificilmente estará à altura do amado.

Comentários:
Neste livro, Balzac elabora uma exímia análise das estruturas sociais, psicológicas e existenciais que permeiam a trajetória das personagens. Por trás da mera seqüência de acontecimentos marcantes, há o desmascaramento das convenções sociais subordinadas às regras do poder e do dinheiro. Esses elementos, somados ao inigualável talento narrativo de Balzac, tornam este brilhante romance uma das mais importantes obras da literatura universal.

O romance oscila entre duas grandes paixões, a paixão de Eugénie pelo primo e a paixão do velho Grandet pelo dinheiro. E se para Balzac a primeira era mais importante – e tanto assim que o livro tem o nome de Eugénie – para muitos é no retrato que ele nos dá da avareza de Félix Grandet que reside o ponto alto da obra. Como sempre a verdade está no meio termo, porque no estudo desses dois caracteres Balzac insuflou uma grandeza admirável.

A tímida, a quieta Eugénie – que se julgava feia, mas em cujos olhos cinzentos transparecia, por inteiro, a pureza da sua vida casta – filha obediente e submissa que sempre curvou-se ante as imposições e os desejos do pai, sabe, na defesa do seu amor, enfrentá-lo com uma energia e coragem que ninguém lhe pode imaginar e que ninguém vislumbra em seu manso caráter de moça que se estiola num casarão silencioso e frio de província, em que a única lei era a vontade paterna.

A avareza de Gandet – “que parecia economizar tudo, até mesmo os movimentos” – é descrita com tal veracidade que o antigo comerciante de Saumur passou a figurar como um dos tipos clássicos de avarento, criados pela literatura.

O livro é todo o drama das vidas que se desenrolam nas pequeninas cidades interioranas, existência que, como o próprio Balzac dizia, tem sua grandeza muito menos nas ações que no pensamento e das quais é preciso salientar, através de insignificantes detalhes, de fatos e atitudes aparentemente sem importância, a riqueza oculta das paixões que nelas estuam.